Terminar o relacionamento, não fazer tarefa de casa, dúvidas sobre paternidade. As alegações dos suspeitos são as mais variadas, mas nada justifica a violência que levou à morte de 16 mulheres e crianças no primeiro semestre deste ano no Espírito Santo. Elas são vítimas de feminicídio, cujos autores dos crimes, conforme aponta a polícia, são homens com quem tinham proximidade: namorados, companheiros, ex, numa relação que deveria ser de afeto, mas se transforma em morte.
Cruzamento dos dados do Observatório de Segurança Pública com publicações de A Gazeta mostra que a tragédia cotidiana da violência doméstica e de gênero no Estado não poupa nem mesmo as meninas — Ana Victória, de 8 anos, foi morta a socos e pauladas; e Maya, de 1 ano, apresentava lesões no pescoço e mordida quando foi encontrada sem vida. As agressões, segundo as investigações, foram praticadas pelos pais e ambos foram indiciados por feminicídio.
"As estatísticas mostram que, no geral, os feminicídios, a violência de gênero, vão ocorrer principalmente nas relações afetivas e familiares. A violência que afeta a mulher é diferente da que afeto o homem, que é urbana, da porta para fora de casa. A mulher sofre violências da porta para dentro", observa Monique Silva de Paiva Garcia, psicóloga da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Vitória. Os casos do início de 2025 representam bem essa realidade. Confira:
JANEIRO
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1Sonhos interrompidos
A jovem Fernanda Prates Santos Bernardo, de 19 anos, planejava concluir a educação básica e fazer o curso de Medicina Veterinária, mas seus sonhos foram interrompidos na tarde de 5 janeiro. O namorado Luiz Paulo Lucas de Araújo Rosa a agarrou pelo pescoço para asfixiá-la e a matou a facadas, no bairro Residencial Vista do Mestre, na Serra.
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2
Fim de relacionamento
Uma mulher de 40 anos foi assassinada a facadas pelo ex-companheiro na noite de 18 de janeiro no bairro Nossa Senhora Aparecida, em Colatina, no Noroeste do Espírito Santo. A irmã da vítima contou à PM que o homem não aceitava o término do relacionamento. Os nomes de vítima e autor não foram divulgados pela polícia.
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3Filho ficou sem mãe
A servidora municipal Damiana Aparecida dos Santos, 50 anos, foi espancada e morta pelo namorado Leandro Kuster, 42, em Marechal Floriano, no dia 19 de janeiro. O crime foi praticado dentro da casa dele e o corpo foi encontrado em um quarto. Damiana deixou um filho de 9 anos.
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4Golpes de machado
Ana Cristina Neves de Medeiros, de 49 anos, foi assassinada com golpes de machado no dia 25 de janeiro, em Itapemirim, no litoral Sul do Espírito Santo, pelo namorado. Carlos Antônio Ribeiro Simão, de 59 anos, mantinha um relacionamento com a vítima havia alguns meses e disse à PM que a atacou após uma discussão.
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5Ameaça e duas mortes
A jovem Caroline Santiago, de 29 anos, morreu após levar um tiro do ex-companheiro Luiz Augusto Veloso Pinto, 36, no dia 28 de janeiro, em Guarapari. Antes, segundo a PM, ele havia ameaçado atear fogo na casa da ex. Mas acabou atirando nela e se matou em seguida. Caroline tinha uma medida protetiva contra Luiz.
A base da violência de gênero, sustenta a psicóloga Monique Garcia, está na rigidez dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres e, quanto mais desiguais esses papéis, maior a probabilidade de violência nas relações. "Nesse processo, como é cultural e estrutural, as violências acabam sendo naturalizadas. Muito do que é dito para ela é: 'isso é normal', 'homem é assim mesmo', 'faz parte da relação', mas, na verdade, não faz."
Regina Célia Almeida, cofundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha (IMP) — organização nacional que atua no enfrentamento à violência doméstica e de gênero — ressalta que a ideia da mulher como propriedade ainda não saiu dos lares nem dos relacionamentos. "A ideia de posse, controle, poder sobre os corpos, o pensamento, como se veste, até onde trabalha e se trabalha ainda faz parte da cultura do país, do machismo estrutural."
E deixar essas relações abusivas, pontua Regina Célia, não é simples nem indica falta de vontade. "O problema maior é a dependência psicológica. O agressor diz: 'isso é para o seu bem, eu te amo, sem você não posso viver.' Outra conduta é: 'se me largar, vou matar os filhos, a mãe. Eu mato você e depois me mato'. Talvez eu ou você, ouvindo isso, entenda que é um blefe. Acontece que a mulher em situação de violência, não." Veja mais estes casos:
FEVEREIRO
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1
Morta no quintal
Vanessa Santos de Sousa, 34 anos, foi morta a tiros no quintal de casa, no bairro Céu Azul, em Piúma, no Sul do Espírito Santo, em 19 de fevereiro. Um mês depois, um homem de 37 anos, que não teve o nome divulgado pela polícia, foi preso pelo crime. Eles tinham um relacionamento e, segundo a Polícia Civil, o suspeito controlava a vítima, que era forçada a cometer furtos para sustentar o vício dele em drogas.
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2Emboscada
A gerente comercial Laís Leoterio das Neves Silva, de 25 anos, foi morta a tiros pelo ex-marido enquanto voltava para casa no dia 22 de fevereiro, após o trabalho, em Guarapari. Ela teve o carro fechado por Gleyson dos Santos Rosa, 25, que estava na garupa de uma moto. O ex não aceitava o término do relacionamento, os dois discutiram e ele disparou. Depois, se matou. Laís chegou a ser socorrida, mas não sobreviveu.
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3Filha testemunha crime
A jovem Joyce Moura dos Santos, 20 anos, foi assassinada com golpes de faca e pedaços de concreto, em Itacibá, Cariacica, no dia 23 de fevereiro. O principal suspeito é o ex-companheiro Domingos Vieira dos Santos, 32, que já havia sido preso após agredir Joyce, mas, em audiência de custódia, foi liberado sem fiança. A filha do casal testemunhou o assassinato da mãe.
Para Regina Célia, é necessário fazer um trabalho articulado entre poder público e sociedade para enfrentar o problema. "Sou uma pessoa que acredita no fim do feminicídio, no fim da violência, mas precisamos de uma força-tarefa", defende.
Além de escolas, a vice-presidente do IMP sugere que outros espaços, como igrejas e associações comunitárias, sejam usados para disseminar informação e, assim, promover a paz. É possível fazer encontros, afirma Regina Célia, e não é preciso nem mesmo usar a palavra violência como mote, mas, se houver debate sobre cidadania, direito das mulheres, empoderamento, o conhecimento se espalha e é um modo de prevenção.
Essa prática é importante porque, conforme constata a psicóloga Monique Garcia na sua rotina profissional, a violência pode atingir qualquer mulher, independentemente de origem social, instrução, crença, idade ou cor da pele. Até entre aquelas que nunca presenciaram no ambiente familiar, em gerações anteriores. "Muitas mulheres não tiveram referência na família e têm dificuldade de reconhecer quando acontece a violência." Confira a história de mais vítimas:
MARÇO
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1No trabalho
A vendedora Carla Gobbi Fabrete, de 25 anos, foi esfaqueada enquanto trabalhava em uma loja do Polo de Moda da Glória, em Vila Velha. Ela foi surpreendida por Wenderson Rodrigues de Souza, que se passou por cliente e, em seguida, esfaqueou a jovem no interior do estabelecimento. Socorrida, ela morreu em 11 de março, dia seguinte ao ataque. Os dois não se conheciam. Wenderson foi preso e morreu dentro da unidade prisional em circunstâncias ainda investigadas.
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2Facão e barra de ferro
Josiely Ferreira Rosa, de 27 anos, foi assassinada a golpes de facão e barra de ferro na tarde de 26 de março, no bairro Rosário I, em Baixo Guandu, no Noroeste do Espírito Santo. O suspeito é um homem de 28 anos, identificado como José Henrique da Silva, que confessou ter matado a vítima durante uma discussão.
ABRIL
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1Venceu câncer, mas não a violência
Mãe de três filhos, Maria Francisca de Souza, de 38 anos, superou um câncer de mama, mas foi vítima de feminicídio, com sinais de estrangulamento. O suspeito do crime é o companheiro dela. Imagens de videomonitoramento mostram que, após uma discussão, Maxssuel Gonçalves puxou a mulher pelo pescoço e depois a jogou em um valão, entre os bairros Boa Sorte e Maracanã, em Cariacica, onde o corpo dela foi encontrado no dia 5 de abril.
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2Vítima do pai
Ana Victória Silva dos Santos, de 8 anos e no espectro autista, foi morta com socos e pauladas dadas pelo próprio pai, Welington Caio Silva Nogueira, 28, no bairro Itaquari, em Cariacica, no dia 11 de abril. As agressões começaram na véspera e a menina foi atingida principalmente nas costelas e na cabeça. Ela apresentou dificuldade respiratória e, foi levada para o PA, mas não sobreviveu. O pai alegou que a violência foi motivada porque a filha não teria feito a tarefa escolar e estaria bagunçando a casa.
MAIO
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1
Lanche envenenado
Zenilda Fernandes da Silva, de 46 anos, morreu no dia 10 de maio, na região de Soído, em Domingos Martins, após consumir um lanche e um caldo de cana. Quando começou a passar mal, a filha percebeu vestígios de um pó branco no fundo da garrafa, que a perícia confirmou depois se tratar de veneno. O suspeito do crime, que foi preso e não teve o nome divulgado pela polícia, mantinha um relacionamento com a vítima havia quatro anos.
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2Bebê morta
A pequena Maya Simor Pereira, de um ano, foi encontrada morta com sinais de agressão em Porto de Cariacica, em Cariacica, no dia 17 de maio. O Samu registrou que a criança tinha lesões no nariz, pescoço e uma marca de mordida no braço. O pai, Thiago Colodoni Barcelos, confessou o crime e foi preso em flagrante. Segundo a mãe, ele tinha dúvidas sobre a paternidade da criança.
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3Colega de trabalho
A operadora de caixa Quezia Maciel Machado, de 23 anos, foi assassinada a facadas em frente a uma escola no bairro Aroeira, em São Mateus, na noite de 28 de maio. Ela chegou a ser socorrida, mas não resistiu aos ferimentos. O suspeito do crime, Rafael Medeiros de Araújo, 34, foi preso no início de junho. Segundo a polícia, os dois eram colegas de trabalho em um supermercado, onde o suspeito passou a assediar a vítima, que rejeitava as investidas. Quézia deixou o marido e dois filhos, de 3 e 6 anos.
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4Medo da morte
A assistente administrativa Poliana Santos do Vale, de 28 anos, foi morta a facadas pelo ex-marido, na frente do filho, no dia 29 de maio, em Viana. Ela estava separada havia um mês de Daniel Ribeiro de Oliveira e tinha solicitado uma medida protetiva contra ele, que, segundo familiares, era agressivo. Ela comentava que tinha medo de ter o mesmo fim da mãe, que também havia sido assassinada.
Em junho, não houve registro de feminicídio no Espírito Santo. Então, no primeiro semestre, foram contabilizados esses 16 casos. O dado está atualizado até a primeira quinzena de julho, mas, conforme o andamento das investigações sobre a morte de uma mulher, pode haver mudança na tipificação criminal do suspeito e esse número ser alterado. A Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) afirma que todos os casos tiveram inquéritos policiais instaurados, dos quais 12 foram concluídos até o dia 15 do mês passado.
Sobre a situação dos autores, os dados da Sesp apontavam que:
- 12 foram presos;
- 2 estavam em liberdade por alvará de soltura;
- 1 morreu;
- 1 estava foragido.
Em 2025, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) até 31 de maio, o Judiciário capixaba havia recebido 58 processos de feminicídio para apreciar. Desde 2020, a quantidade de casos julgados tem aumentado. Naquele ano, foram 90; em 2021, saltou para 123, e, assim, sucessivamente, até os 152 em 2024.
Vale lembrar que o feminicídio é o ápice da violência que, muitas vezes, começa de maneira sutil, com cenas de ciúmes, controle das amizades, restrição de contatos familiares. É preciso buscar ajuda ao menor sinal de comportamento abusivo no relacionamento.
"A violência vai escalonando, o feminicídio é a ponta do iceberg. Então, não podemos aceitar certos comportamentos como se fossem naturais. É preciso fazer o movimento contrário, que possibilite a equidade entre homens e mulheres, meninos e meninas, promovendo uma cultura de paz, de resolução de conflitos pelo diálogo, a não violência. Também falar como a violência funciona porque, quando se tira isso do silêncio, desnaturaliza", pontua Monique Garcia.
A psicóloga ressalta que, para as mulheres que sofrem a violência doméstica e de gênero, há iniciativas, como delegacias especializadas e centros municipais de referência, que podem ajudá-las a se livrar dessa condição. "Existem saídas, existem serviços que sabem cuidar dessa situação. É possível viver sem violência!", conclui.
Confira os contatos e horário de atendimento de delegacias na sua cidade. Se não houver o serviço especializado, busque informações e ajuda pelo 180.
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