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ES também vetou distribuição gratuita de absorventes. Entenda

ES também vetou distribuição gratuita de absorventes. Entenda

Inconstitucionalidade de projetos gera divergência entre especialistas. No Espírito Santo, proposta foi vetada em agosto pelo governador, que alegou vício de iniciativa

Publicado em 19 de outubro de 2021 às 15:52

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Menstruação
Menstruação é tema pouco debatido em um país onde muitas mulheres não têm acesso a absorventes. (Freepik)
Errata Atualização
19 de outubro de 2021 às 19:42

Após a publicação da reportagem, o governo do Estado anunciou a assinatura de um decreto para autorizar a Sedu a distribuir absorventes para alunas em situação de vulnerabilidade social. O texto foi atualizado com a informação.

Assim como fez o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), também vetou, em agosto deste ano, um projeto de lei para distribuir absorventes a estudantes de escolas públicas. As motivações para os vetos, contudo, foram diferentes.

O governo federal argumentou que o texto aprovado pelo Legislativo não previa a fonte de custeio do programa, enquanto que no âmbito estadual, o argumento foi vício de iniciativa, ou seja, a proposição deveria partir do Executivo porque criava uma nova função à administração estadual. 

Embora a inconstitucionalidade tenha baseado as justificativas de ambos os vetos, isso não foi um problema para oito Estados e o Distrito Federal sancionarem leis nesse sentidoNem mesmo para o município de Vitória, onde desde de 2020 vigora uma legislação que prevê a distribuição do produto de higiene feminino nas escolas.  A iniciativa partiu da Câmara Municipal. 

Especialistas em Direito Constitucional consultadas por A Gazeta divergem sobre o assunto, e afirmam que é possível ter interpretações diferentes. Mas, independentemente dos projetos serem ou não constitucionais, elas ressaltam que há falta interesse dos governantes em propor políticas públicas para as mulheres.

De 2019 para cá, cinco projetos e três indicações foram protocolados por deputados na Assembleia Legislativa do Espírito Santo para implementar ações que garantissem o acesso de mulheres em vulnerabilidade social ao absorvente. Não houve, no entanto, nenhuma proposta de lei  por parte do Estado.

Procurado inicialmente por A Gazeta, o governo disse que a Secretaria de Estado da Educação (Sedu) estava concluindo um levantamento para quantificar o número de alunas que estão em situação de pobreza menstrual e que medidas vão ser anunciadas nos próximos dias.

Após a publicação da reportagem, porém, o Estado anunciou que foi assinado um decreto pelo governador Renato Casagrande (PSB) autorizando a Secretaria da Educação (Sedu) a distribuir absorventes para alunas da rede pública em vulnerabilidade social. Ao todo, devem ser atendidas cerca de 50 mil alunas de 10 a 19 anos.

CONHEÇA O PROJETO VETADO PELO GOVERNADOR DO ES

A pobreza menstrual é o nome dado à falta de acesso de meninas, mulheres e homens trans a produtos básicos de higiene no período da menstruação. Não se restringe somente à dificuldade financeira para comprar absorventes, mas também à ausência ou precariedade de infraestrutura no ambiente onde vivem, como banheiros, água e saneamento.

De acordo com levantamento realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), 25% das meninas brasileiras entre 12 e 19 anos já deixaram de ir à aula alguma vez por não ter absorventes.

Em maio deste ano, o deputado estadual Rafael Favatto (Patriota) apresentou o Projeto de Lei 165/2021 que instituía o Programa de Fornecimento de Absorventes Higiênicos (PFAH) nas escolas públicas de ensino fundamental e ensino médio no Espírito Santo.

No texto, o parlamentar cita como exemplos a lei que foi sancionada na cidade do Rio de Janeiro em 2019, assim como o projeto que foi aprovado na Câmara dos Deputados, que visam a combater a pobreza menstrual. 

A proposta de Favatto passou em todas as Comissões na Assembleia e foi aprovada à unanimidade pelos deputados, por meio de uma votação simbólica. Mas ao ser encaminhada para o governador, foi vetada.

No entendimento do Estado, o projeto de lei ampliava as funções de agentes e órgãos da administração pública, o que, de acordo com a Constituição Estadual, só caberia ao Executivo fazer.

De acordo com a justificativa de veto enviada pelo governo ao Legislativo,  a proposta interferia "diretamente na execução dos serviços prestados pelas escolas públicas de ensino fundamental, estabelecendo novas atribuições e, com isso, elevando os custos cotidianos destes órgãos".

Ainda, segundo o governo, naquele momento, a Secretaria de Educação não tinha dados que indicassem a correlação entre o período menstrual das alunas da rede pública e a evasão nas escolas. 

Assim, apesar de considerar o projeto nobre, o Estado considerou a proposta inconstitucional por vício de iniciativa.

Na avaliação da professora de Direito Constitucional da FDV Elda Bussinguer, uma proposição desse tipo cabe ao Executivo, seja ele federal, estadual ou municipal. "Eu acho fundamental que o Estado distribua absorvente. Mas eu penso que a competência para propor a iniciativa é do Poder Executivo", opinou.

Como o Direito tem uma característica interpretativa, há divergências em relação a constitucionalidade ou não de um projeto, pontua Bussinguer. Isso explica alguns Estados terem sancionado leis semelhantes.

"Temos Estados que aprovaram sem questionar a competência da propositura e sem levantar portanto inconstitucionalidades, e outros que a suscitaram. A própria Procuradoria Geral da República, que sustentou o veto de Bolsonaro, não suscitou a questão da competência da propositura, mas a questão da verba para garantir o direito. Já o Espírito Santo suscitou a competência da propositura de ação que envolva Organização Administrativa", ressalta.

Diferente de Bussinger, a professora de Direito Constitucional da PUC São Paulo Gabriela Zancaner não vê problema de inconstitucionalidade nos projetos. Na interpretação dela, os absorventes podem ser adquiridos e distribuídos de diferentes formas, sem necessariamente alterar a organização administrativa do Estado e com ajuste de recursos.

"Eu vejo como uma atribuição que cabe à assistência social. O artigo 6 da Constituição Federal fala sobre direitos sociais, que devem ser assegurados por meio de políticas públicas. Absorvente faz parte do mínimo existencial da pessoa, do indivíduo. A princípio, não vejo inconstitucionalidade", avalia.

ES TEVE OUTRAS PROPOSTAS PARA ENTREGA DE ABSORVENTES A MULHERES POBRES

A discussão sobre a pobreza menstrual não é nova no Espírito Santo, e Favatto não foi o único parlamentar a apresentar propostas nesse sentido. 

De acordo com o portal da Assembleia Legislativa, o primeiro projeto sobre o tema foi protocolado em junho de 2019,  e é de autoria da deputada estadual Janete de Sá (PMN). Ela previa o fornecimento de absorventes para estudantes cuja renda familiar fosse igual ou inferior a três salários mínimos.

 A proposta, no entanto, teve parecer pela inconstitucionalidade da Procuradoria da Casa, que alegou que o texto criava uma nova função para o Estado, o que a Constituição estadual só permite que seja feito por meio de iniciativa do Executivo. 

Depois de Janete, outros dois parlamentares – Iriny Lopes (PT) e Luciano Machado (PV) – tentaram, por meio de projetos de lei, implementar ações que visavam a resolver o problema da pobreza menstrual. As propostas estão em tramitação.

Houve também três indicações – de Emílio Mameri (PSDB), Luiz Durão (PDT) e do próprio Rafael Favatto- para que medidas fossem tomadas. As indicações são instrumentos legislativos que os parlamentares usam para sugerir a um órgão que tome providência em relação a determinados assuntos. 

Para a professora da FDV Elda Bussinguer, há desinteresse político em garantir um direito básico a mulheres e corrigir uma desigualdade de gênero e de classe. 

Aspas de citação

Precisamos pensar que é um direito fundamental das mulheres e que o Estado, em garantia a esse direito, deveria propor projetos de lei nesse sentido. O Estado Brasileiro é pouco sensível aos direitos das mulheres

Elda Bussinguer
Professora de Direito Constitucional da FDV
Aspas de citação

Gabriela Zancaner ainda pontua que as inconstitucionalidades apontadas pelos governantes poderiam ser facilmente resolvidas com os projetos propostos pelo próprio Executivo, mas escondem, na avaliação dela, uma visão machista sobre o assunto. 

"Se a questão é o vício de iniciativa, o governo pode elaborar o projeto. Se é fonte de despesa, ele pode suprir recursos. Essas justificativas me parecem um pano de fundo de machismo, uma dificuldade do governo em compreender que garantir absorvente é o mínimo e afeta sobremaneira a saúde e a vida de mulheres", completa.

O QUE DIZ O GOVERNO DO ES

Procurado pela reportagem, o governo do Espírito Santo informou que o veto ao projeto de lei de autoria do deputado Rafael Favatto foi motivado por vício de iniciativa. "Contudo, a Secretaria da Educação (Sedu) está concluindo um levantamento para quantificar o número de alunas que estão em situação de pobreza menstrual. Nos próximos dias, serão anunciadas medidas para atender a este público", disse por meio de nota. 

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