Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

Pobreza menstrual: Ei, Bolsonaro, que tal umas dicas da Netflix?

Ao vetar distribuição gratuita de absorventes para mulheres carentes, Jair Bolsonaro não é apenas cruel, ele também se mostra pouco inteligente. Alguns filmes da Netflix poderiam ajudá-lo...

Vitória
Publicado em 08/10/2021 às 21h28
Filme
Filme "Homem-Absorvente", disponível na Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não foi apenas cruel ao vetar o Projeto de Lei 4968/19, que traz a iniciativa de distribuição de absorventes higiênicos a mulheres pobres, em situação de rua, de vulnerabilidade social extrema e presidiárias, ele também foi pouco inteligente na sua ânsia de negar dignidade a quem mais necessita.

Hoje, no Brasil, uma em cada quatro meninas deixa de ir à escola quando menstruada por não ter condições financeiras de comprar absorventes - mais de quatro milhões de jovens não têm itens básicos de higiene nas escolas quando estão menstruadas e 713 mil delas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio, segundo dados do relatório “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”.

Mais do que uma questão de “privilegiar uma minoria”, como o presidente argumentou, o projeto é uma questão de saúde pública. Com a desculpa de que “seria inconstitucional, pois contraria o interesse público e privilegia um grupo específico”, Bolsonaro se mostra sádico e transforma esse recorte populacional necessitado em uma casta inferior, em uma categoria de pessoas cujo bem-estar e a saúde não são “de interesse público”. Habituado a dialogar para os seus fãs (sim, o presidente do Brasil tem fãs), o presidente se esquece de algo simples: um voto é um voto.

Você já ouviu falar de Arunachalam Muruganatham? No início dos anos 2000, o empreendedor indiano revolucionou a saúde pública de seu país com a invenção de um absorvente higiênico barato para mulheres de baixa renda, um produto que custava menos de 5% do valor de mercado de marcas estabelecidas no país. Ainda, ele optou por não vender a patente de sua premiada invenção para grandes empresas, buscando estimular pequenas fábricas comandadas por mulheres nos vilarejos e garantindo a elas uma autonomia com a qual nem sonhavam, além de tornar o absorvente - e a menstruação - um assunto do dia a dia. Na Índia, vale ressaltar, a menstruação é um tabu ainda maior do que no Brasil, principalmente o interior do país.

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Filme "Absorvendo o Tabu", disponível na Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

Por motivos religiosos, as mulheres menstruadas são consideradas impuras, doentes e até mesmo amaldiçoadas durante o período, sendo impedidas de cozinhar (tirar a pureza dos alimentos) ou participar de eventos sociais e religiosos (suas rezas não seriam ouvidas), ficando excluídas dentro da própria casa. Nem entre mulheres, às vezes, se fala sobre o assunto com naturalidade.

Mas por que, afinal, você está no quinto parágrafo deste texto, de um colunista de cultura, lendo sobre pobreza menstrual no Brasil e a situação da Índia? Bem, bastava Bolsonaro procurar na Netflix (com certeza algum funcionário de seu gabinete compartilha a senha com ele…) e ele encontraria a história de Arunachalam no filme “Homem-Absorvente”, de R. Balki, uma superprodução de Bollywood que mostra, com uma linguagem bem novelona melodramática, como o empreendedor se tornou um dos homens mais populares da Índia com uma simples preocupação: a saúde pública das mulheres menos favorecidas.

Ao voltar sua atenção para pessoas que usavam até espiga de milho para conter o fluxo menstrual por vergonha de falar sobre o assunto, inclusive com outras mulheres da família, Arunachalam deixou de ser uma piada, um “pervertido”, para se tornar um dos indianos mais influentes mundo afora, um sujeito que discursa na ONU, uma pessoa que transformou vidas.

Bolsonaro, que passa por uma crise de popularidade, poderia, apenas por um momento, mesmo que por interesse próprio e como parte da campanha que nunca abandonou, pensar em seus diferentes, deixar de olhar para o Brasil dos grandes empresários, do agro, dos aliados políticos, dos latifundiários, dos populares pastores neopentecostais, e olhar para o Brasil que vive sem a mínima condição sanitária. Era a chance de talvez ganhar alguns votos entre mulheres de baixa renda, mas sua ânsia pela crueldade o impede de enxergar até as mais óbvias possibilidades de investimento no social.

Nem vale aqui apelar para o argumento da empatia, mas o presidente poderia buscar também, na própria Netflix, o documentário “Absorvendo o Tabu”, de Rayka Zehtabchi. O vencedor do Oscar de Melhor Documentário em Curta-Metragem em 2019 é um filme que inspirou movimentos independentes de distribuição de absorventes no Brasil . Veja bem… é um curta-metragem de 25 minutos, algo a que Bolsonaro poderia assistir em um voo, em algum intervalo entre reuniões. Na verdade, tempo é o que não falta ao presidente, que não tem nenhum compromisso agendado para o feriado segundo o site da Presidência da República.

A questão é: Bolsonaro poderia tentar se inspirar em Arunachalam Muruganatham, poderia tentar fazer alguma diferença na vida de alguém, mas ceder a uma pauta “social” parece ser um absurdo. A boa notícia é que ainda existe a forte possibilidade de o veto ser derrubado pela Câmara e pelo Senado, veja só, duas casas presididas por apoiadores do presidente. Enquanto isso, a ministra Damares Alves (PP), responsável pelo ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, faz contorcionismos narrativos para justificar o veto em um país em que 600 mil mortos por Covid-19 não incomodam o governo federal, uma instituição que defende que todos deveriam ter um fuzil. Armas tudo bem, mas distribuir absorventes? Ah… aí já foram longe demais.

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