Publicado em 10 de julho de 2020 às 21:37
As Câmaras Municipais da Grande Vitória aprovaram, nas últimas semanas, projetos de lei para classificar as igrejas como atividades essenciais em períodos de calamidade de saúde pública, como o da pandemia do novo coronavírus. Em Cariacica e Vila Velha, inclusive, as leis já foram sancionadas. Seguindo a tendência e a pressão de líderes religiosos, a Assembleia Legislativa do Estado também aprovou uma lei de mesmo teor, que seguiu para sanção do governador. >
O pano de fundo dessa movimentação, no entanto, vai além da necessidade de que as igrejas estejam abertas e perpassa por interesses políticos. Em ano de eleições municipais, a maioria dos parlamentares, incluindo os proponentes das matérias, pleiteiam a reeleição ou a cadeira de prefeito das cidades.>
Os mais diversos segmentos religiosos representam grandes comunidades, o que, na perspectiva eleitoral, pode se converter em votos. Por isso, é comum que políticos mantenham a aproximação com lideranças religiosas e busquem atender a seus pedidos, principalmente em período eleitoral. >
Com as igrejas consideradas atividades essenciais, celebrações podem voltar a ser convocadas com a presença de fiéis e dos próprios políticos, que, muitas vezes, durante as campanhas, utilizam os templos para "serem vistos" e até discursarem. >
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Especialistas ouvidos pela reportagem avaliam que legislar para atender a pedidos de grupos que formam uma boa base eleitoral é comum no Brasil, mas compromete a função do legislador, que deveria agir de forma democrática, considerando o que é o melhor para o coletivo, e não priorizando alguns segmentos.>
Apesar da tendência para uma estabilização na transmissão da Covid-19 na Grande Vitória, autoridades de saúde reafirmam que não é o momento para relaxar as restrições, e que, para manter essa estabilização, é preciso que as medidas de isolamento social sejam respeitadas. A doença continua avançando pelo Estado. Mais de 2 mil capixabas já morreram e 68 mil foram contaminados pelo novo coronavírus. >
Além dos números que continuam altos, ainda não há vacina ou medicamentos com eficácia comprovada para combater o coronavírus, o que significa que o distanciamento entre os cidadãos ainda é a principal forma de prevenção da doença. É isso que preocupa cientistas políticos e autoridades em saúde, ouvidos por A Gazeta, sobre a reabertura de templos e o retorno de cerimônias religiosas. >
Mesmo com a criação de protocolos para maior segurança dos fiéis, cultos e missas em locais fechados, com reunião de grupos de pessoas, representam risco de contaminação. Especialistas pontuam que líderes responsáveis não deveriam colocar os membros das igrejas em risco. Para eles, o fechamento dos templos não impede a assistência espiritual.>
Os argumentos que justificam as medidas, em todas as Casas Legislativas, é semelhante. Parlamentares afirmam que igrejas são "hospitais para alma e coração" das pessoas, que neste momento de pandemia têm se sentido "emocionalmente e espiritualmente carentes". >
Para o vereador Pastor Ailton (PSC), autor do projeto de lei aprovado na Câmara da Serra, a criação das leis só ocorreu agora, após quatro meses de pandemia, porque as lideranças religiosas acreditavam que o fechamento das igrejas não seria tão demorado. Para ele, no entanto, as instituições religiosas precisam ficar abertas mesmo em um possível "lockdown", medida preparada para o mais alto grau de risco da pandemia, na escala do governo estadual. >
Esses argumentos também aparecem na justificativa do projeto de lei aprovado na Câmara da Capital, de autoria do vereador Leonil (Cidadania).>
Em Vila Velha, onde a lei já foi sancionada, o vereador Reginaldo Almeida (PSC), que também é ministro do Evangelho na Igreja Assembleia de Deus, sustenta que todas as medidas de precaução, ditadas pela Secretaria de Saúde e pela Organização Mundial de Saúde (OMS), estão sendo cumpridas. >
"Está lá [na lei] todos os requisitos e as orientações. Distanciamento social, higienização das mãos e dos espaços, grupos de risco estão sendo orientados a não ir", disse. Um dia depois da aprovação da lei na Câmara Municipal, um casal de pastores da Igreja Quadrangular morreu, vítimas da Covid-19, com horas de diferença.>
O autor da proposta na Câmara de Cariacica, Itamar Freire (PDT) é membro da Assembleia de Deus. O parlamentar admite que a lei foi uma forma de atender a pedidos que recebeu de lideranças religiosas.>
De acordo com ele, com a divergência entre o discurso do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e dos governos estaduais e municipais, a "cabeça das pessoas ficou confusa" e agora, com a lei, a reabertura das igrejas vai ocorrer de forma mais organizada.>
Desde o início da pandemia, Bolsonaro se declara contra a medida imposta por Estados e municípios de todo o país. "Tem gente que quer fechar igreja, [que] é o último refúgio das pessoas", disse, em março.>
Na Assembleia Legislativa do Estado, os deputados também se articularam para aprovar a matéria sobre o tema. O texto, assinado pelos deputados Danilo Bahiense (PSL) e pastor Marcos Mansur (PSDB), ambos evangélicos, chegou a ter o regime de urgência rejeitado, na metade de junho. A lei vedava a determinação de fechamento total das igrejas. >
Semanas depois, uma emenda do vice-líder do governo na Casa, Dary Pagung (PSB), alterou o trecho, dispondo que a lei "estipula regras para seu funcionamento nesse período", e a matéria foi aprovada sem votos contrários. Foram favoráveis os parlamentares que são médicos e pré-candidatos a prefeituras de municípios da Grande Vitória.>
Os argumentos utilizados para defender os projetos de lei se assemelham à opinião do presidente da Associação de Pastores Evangélicos da Grande Vitória, pastor Enoque de Castro. Para o líder religioso, a igreja é essencial e é importante que "os membros estejam unidos para buscar a Deus". O pastor afirma que "existe o essencial para o físico e o essencial para o espiritual". "Os irmãos querem estar juntos, orando, buscando a Deus neste momento de angústia. Pesquise o quanto aumentou o número de casos de depressão e ansiedade.">
Nem todos os religiosos, no entanto, pensam assim. Apesar da liberação para cultos, algumas igrejas evangélicas já comunicaram a seus membros que não vão retomar as atividades por enquanto. A Convenção Batista do Espírito Santo, que possui 722 igrejas em todo Estado, recomendou aos seus líderes que sigam o que está estipulado pela Secretaria estadual de Saúde. >
O presidente da entidade, pastor Diego Bravim, explica que cada igreja tem autonomia para decidir. Ainda que considere a fé como elemento essencial, não avalia que seja urgente a retomada dos cultos. "A igreja somos nós, as pessoas. O próprio Cristo disse que nosso corpo é o templo. As celebrações coletivas são para comunhão, mas a fé não carece disso", disse.>
A Arquidiocese de Vitória enviou uma carta com as recomendações necessárias para a reabertura das paróquias. Contudo, de acordo com a assessoria, nenhuma igreja foi aberta porque "nenhum município apresenta condições para isso".>
Para o doutor em Ciências da Religião e professor da Ufes Edebrande Cavalieiri, cresce no Brasil a tendência de instrumentalizar a religião para uso como força política. O movimento, de acordo com o professor, começou nos Estados Unidos com o grupo da "direita cristã" e tem se espalhado pelo mundo. >
Essa influência religiosa, na avaliação de Cavalieri, é perigosa. "Vai contra o estado laico, a separação entre Igreja e política. Para ser democrático, é preciso abrir o leque das pautas legisladas para todas as religiões e, até mesmo, ateus.">
A tradicional crença de que a família brasileira é cristã, para o doutor em Ciências da Religião, é equivocada. "Temos ateus, religiões de matrizes africanas, espiritismo... E o que preocupa é que esse movimento que tem crescido não é um movimento aberto para o diálogo e de tolerância. É um movimento que interpreta textos bíblicos ao pé da letra, e a partir dele promove escolhas políticas." Os candidatos, completa o professor, por saberem disso, muitas vezes, dão um apoio quase incondicional ao interesse de grupos religiosos.>
Cavalieri discorda, ainda, do paralelo feito pelos líderes religiosos entre a essencialidade de igrejas e outras atividades como hospitais e padarias. "A dimensão religiosa é parte da cultura, da natureza humana. As pessoas tendem a buscar essa ajuda sobrenatural no momento de dor, doenças e dificuldades. Nesse sentido, é uma atividade importante, talvez essencial. Mas não essencial como uma padaria ou um supermercado. Porque nem todas as pessoas têm essa dimensão como uma necessidade.">
O cientista político e médico Fernando Pignaton acredita que esse movimento nos Legislativos aponta para um sistema político que "cada dia mais busca o interesse de grupos e corporações". Para Pignaton, a decisão é irresponsável e anticientífica tanto do ponto de vista político quanto do médico. "A pandemia, que deveria ser uma discussão científica, vira uma discussão política, porque a agenda está livre e grupos de influência podem monopolizar a pauta com os próprios interesses.">
O forte interesse no apoio do grupo de eleitores evangélicos e católicos fez, segundo ele, com que parlamentares ignorassem o pedido que é repetidamente feito para que o isolamento social seja mantido até que a curva de contágio comece, de fato, a cair. "Esse zigue-zague de atender a um grupo depois a outro, à medida que eles fazem pressão, torna enfraquecida a política de desenvolvimento do país como nação e torna o Estado desfuncional, porque os legisladores atuam ao sabor dos grupos de influência", complementou. >
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