Publicado em 15 de abril de 2020 às 11:14
Diante da crise provocada pelo novo coronavírus, poder público e iniciativa privada anunciam medidas para reduzir os impactos econômicos já sentidos em pouco mais de um mês e previstos para o futuro breve. Nas empresas, mais de um milhão de trabalhadores tiveram jornada e salário reduzidos no país após medida provisória editada pelo governo federal. No setor público, o mesmo tipo de corte para servidores, sobretudo efetivos, não é tão simples.
A Gazeta procurou especialistas para explicar se há a possibilidade e de que forma Estados e municípios podem reduzir salários dos servidores, já que eles possuem a garantia de irredutibilidade salarial, ou seja, de que seus salários não podem ser reduzidos.
Segundo eles, cortes nos salários e demissões de efetivos só são possíveis com mudanças na Constituição Federal. Cortes em verbas indenizatórias, no entanto, são aceitas. No caso dos comissionados, demissões são permitidas. Já para a redução salarial, é necessária a aprovação de projeto de lei. (Veja a explicação detalhada abaixo.)
Nesta segunda-feira (13), em entrevista coletiva, o governador Renato Casagrande (PSB) foi questionado sobre a possibilidade de reduzir os gastos com pessoal para o enfrentamento à crise econômica provocada pela pandemia, adotando medidas como reduzir seu próprio salário, o de seus secretários ou servidores comissionados.
Ele afirmou que nada está descartado. No Estado, já há iniciativas de vereadores e projetos de deputados estaduais para cortar os próprios salários. Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) anunciou a suspensão da antecipação de pagamento do 13º salário e do terço de férias remuneradas dos servidores públicos estaduais, além de corte dos bônus por resultados.
Renato Casagrande (PSB)
Governador do Espírito Santo, em entrevista coletiva na segunda-feira (13)Casagrande considerou que esta pode ser uma alternativa para que os servidores públicos não sejam os únicos imunes à crise econômica. Também mencionou outros Poderes, além do Executivo.
"Falar de outros Poderes é muito ruim para um chefe de um Poder, mas compreendo que todos terão que dar a sua dose de contribuição. Tem quem já está contribuindo porque está com prejuízo pelo comércio fechado, quem está perdendo o emprego, e a administração pública também terá que dar a sua contribuição, e tenho certeza que os demais Poderes também poderão dar essa contribuição", disse.
Outros Poderes são o Judiciário e o Legislativo. E o Ministério Público é outra instituição, independente.
Casagrande foi procurado novamente nesta terça-feira (14) para explicar se há algum planejamento de cortes no funcionalismo público. Por nota, a assessoria de imprensa dele negou: "O governador citou a possibilidade, porém está aguardando o impacto da receita".
ENTENDA O QUE PODE SER FEITO EM RELAÇÃO AOS SERVIDORES:
O professor da Fucape e mestre em Contabilidade João Eudes diz que cortes nos salários e demissões de efetivos só são possíveis com mudanças na Constituição Federal. Ela prevê, no artigo 37, inciso XV, que "o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis". Esta garantia foi inserida na Constituição para dar uma especial proteção, de caráter financeiro, contra eventuais ações arbitrárias do Estado.
Segundo Eudes, o que Estados, municípios e outros entes públicos podem fazer é retirar as verbas indenizatórias dos servidores, pois elas não são incorporadas à remuneração de forma definitiva. Auxílio-alimentação, auxílio-saúde, gratificações e bônus podem ser suspensos.
Sim. Para demitir, basta um ato administrativo do gestor responsável pela contratação, já que os cargos comissionados são de livre nomeação e exoneração. Para reduzir os salários desses funcionários, no entanto, é necessário que seja por meio de lei, alterando as tabelas ou os planos de cargos e salários de cada função. Servidores em designação temporária também podem ser demitidos.
A Prefeitura de Viana já tomou medidas deste tipo, nos últimos dias. O município reduziu a carga horária de trabalho de 40 para 30 horas de seus 380 servidores comissionados, além de 25% dos salários como medida para enfrentar a queda de receita por conta do coronavírus.
Não. Uma decisão do governador só afetaria os servidores do Poder Executivo. Cada um dos outros Poderes possui autonomia e independência administrativa e financeira, e cabe a eles gerir seus cargos. A única possibilidade de que sejam atingidos é em caso de alteração na Lei do Estatuto dos Servidores Públicos Estaduais.
Não. Segundo o professor João Eudes, apesar de que, em geral, os reajustes e aumentos salariais também beneficiem os inativos, não seria possível aplicar a eles algum corte de salários. Quando um servidor se aposenta, a remuneração deve obedecer aos princípios do direito adquirido e da irredutibilidade salarial.
No momento, isso não se aplica, de acordo com os especialistas. A Lei de Responsabilidade Fiscal dispõe que a despesa com pessoal não pode extrapolar determinados limites: de 49% da receita corrente líquida, no caso dos servidores do Executivo estadual, por exemplo.
Se um Estado gasta mais do que 49%, fica obrigado a adotar medidas de cortes, sendo, na sequência: reduzir pelo menos 20% das despesas com cargos em comissão e funções de confiança, exonerar servidores não estáveis, e, em última hipótese, exonerar servidores efetivos.
Como no momento os Estados e municípios já estão sofrendo com a queda de receita, é possível que os limites da LRF fiquem comprometidos. No entanto, o professor João Eudes pontua que a lei que decretou estado de calamidade pública federal até 31 de dezembro suspendeu a exigência do ajuste das despesas com pessoal. Assim, fica permitido algum eventual aumento.
O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) também se posicionou contra a possibilidade de reduzir jornada e salário de servidores quando a despesa estourar o teto da receita corrente líquida, descumprindo a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Este trecho da lei está suspenso desde 2002, por liminar.
O STF já formou maioria, em agosto de 2019, para declarar inconstitucional artigo 23 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que prevê a redução da jornada e salários de servidores para que os órgãos se adéquem aos limites da lei. O argumento é que a Constituição prevê que uma lei não pode prejudicar o direito adquirido, e também que vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis.
O doutor em Direito Constitucional e advogado Cláudio Colnago entende que, apesar de o Supremo ter esse entendimento sobre a impossibilidade da redução de salários, é necessário avaliar a razoabilidade das possibilidades diante da situação de pandemia.
"Qual medida gera menor desgaste: demitir pessoas (mesmo que sejam comissionadas) ou reduzir remunerações? Em uma situação de pandemia, precisamos canalizar recursos para combate ao vírus e auxílio aos mais vulneráveis. A calamidade pública dá fundamentos para isso", argumenta.
Assim, ele avalia que é possível, sim, reduzir salários de servidores públicos, não somente os do Executivo, mas também os de outros Poderes, como o Judiciário, mas faz uma ressalva:
"Servidores do Judiciário e do Ministério Público podem ter salários reduzidos, a meu ver. Mas temos garantia a membros do Judiciário e MP para manter a respectiva independência [no exercício do cargo]." Dessa forma, juízes, desembargadores, promotores e procuradores de Justiça estariam livres da redução no contracheque.
O professor de finanças públicas da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Bocaccio Piscitelli pontua que qualquer mudança para a redução de salários de servidores efetivos ou demissões seria politicamente manobra muito arriscada do governo, a enfrentar uma resistência grande dos servidores e acirrar os ânimos entre os Poderes. Ele considera que o governo tem outras medidas para adotar, com menor impacto do ponto de vista jurídico e do ponto de vista social.
"É muito menos impactante para a ordem jurídica e para a sociedade adiar o pagamento da dívida pública em vez de suspender o pagamento de salários de servidores, que são tão necessários neste momento, diz o professor. Por isso, seria inconstitucional porque fere um artigo e também porque fere a teoria da necessidade pública de urgência", disse.
Com o exemplo da esfera federal, ele também citou alguns órgãos que não podem sofrer redução neste momento: INSS, que cuida dos benefícios previdenciários e assistenciais; Receita Federal, que está participando do comitê de combate à pandemia; e Ministério da Cidadania, que vai comandar junto à Caixa o pagamento do auxílio dos informais, além do Bolsa Família; entre outros.
A Central do Servidor Pública/ES emitiu uma nota de repúdio sobre a possibilidade de redução salarial dos servidores. A Central afirma que os servidores não estão alheios aos problemas sociais.
"Repudia-se a ideia de redução salarial, pois omite a necessidade de adotar medidas eficientes que combatam distorções tais como: isenções fiscais bilionárias, pagamento de auxílios-moradia, nomeação de milhares de comissionados, suplementação orçamentária contínua conforme diário oficial; gastos em contratos de publicidade com dispensa de licitação; contratação de mais de 1 bilhão em investimentos mal avaliados e descontinuados. Por outro lado, há a possibilidade de solicitar autorização legislativa, em caso excepcional, para utilizar arrecadação de royalties na despesa de pessoal", afirma a nota.
Enquanto no serviço público a possibilidade ainda está distante, para a iniciativa privada o governo federal editou a medida provisória 936 que permite a redução proporcional de jornada e salário em até 70%, dependendo do caso, e a suspensão do contrato de trabalho. Em ambas as situações, com possibilidade de acordo individual uma inovação, pois a Constituição permite a redução de salário somente mediante acordo coletivo.
O governo estima que 70% do total de trabalhadores empregados via CLT, ou seja, com carteira de trabalho assinada atualmente, o que significa 24,5 milhões de pessoas, terão seus contratos de trabalho suspensos ou a jornada e o salário reduzidos. A suspensão do contrato é válida por até dois meses e a redução, por até três meses. O governo vai pagar um auxílio aos trabalhadores para minimizar a perda de renda.
A MP está em vigor desde 1º de abril, quando foi publicada no Diário Oficial da União. Ela tem validade de 120 dias. O Congresso agora vai analisar a MP e fazer possíveis modificações.
A equipe do Ministério da Economia do governo federal estava preparando nas últimas semanas uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que propunha a redução de 25% da jornada e do salário dos servidores públicos federais. A minuta do texto permitia a redução até 2024, não somente durante a pandemia, e seria aplicada somente a quem recebesse acima de três salários mínimos.
A ideia inicial era que a PEC tivesse abrangência entre os servidores do Executivo, com possibilidade de extensão para Estados e municípios. No entanto, diante das resistências, por enquanto o ministro Paulo Guedes teria desistido de apresentar esse texto ao Congresso.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta