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Como conversa entre amigos deu origem a ciclovia na Terceira Ponte

Como conversa entre amigos deu origem a ciclovia na Terceira Ponte

Conheça a história dos Ciclistas Urbanos Capixabas e como o empenho deles acabou levando a construção do espaço para quem anda de bicicleta na Terceira Ponte

Publicado em 26 de agosto de 2023 às 08:18

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Da esquerda para a direita: Luiz Son, Leonardo Chamovitz, Detinha Son e Rafael Darrouy. (Edson Chagas)
Felipe Sena
Estagiário / [email protected]

A ideia de construir uma ciclovia na Terceira Ponte não veio do nada. Quem já cogitou ir da Praia do Suá, em Vitória, ao Centro de Vila Velha de bike pode até dizer: “Eu já tinha pensado isso antes”. Afinal, o trajeto que separa esses pontos é de quase 4 km feito de carro e se transforma em uma jornada de quase 18 km caso a rota seja a Ponte Florentino Avidos, por onde é possível ir de bicicleta.

Mas realmente houve quem não só pensou na possiblidade, como resolveu batalhar para que se tornasse realidade. De um jeito até despretensioso no início, mas que, no fim, acabou dando à obra uma história de origem com mais camadas do que só concreto, prazos e burocracia.

Para começar, vamos um "pouquinho" mais longe do que de Vitória a Vila Velha: até o norte do continente americano, no Canadá.

O acidente que virou uma causa

Rafael Darrouy, que hoje é empresário, morou um tempo em Vancouver, na Costa Oeste do Canadá, em 2008. Lá, segundo ele, teve uma ótima experiência de mobilidade. Os lugares em que precisava ou queria ir estavam a algumas pedaladas de distância, o que foi despertando uma paixão pelo ciclismo.

"Lá em Vancouver, eu comecei a andar de bike para bastantes coisas. Eu não tinha carro, e aí um mundo se abriu para mim. Na época, eu pensei: 'É muito bom isso aqui, andar de bicicleta e chegar nas coisas'. E chegava mais rápido e fazia exercício junto. Comecei a perceber que eu nem precisava ir para academia, porque eu já fazia meu exercício diário", lembra Rafael.

De volta ao Espírito Santo em 2012, ele estava empolgado para continuar levando o mesmo estilo de vida. O mesmo, não. Afinal, diferentemente das paisagens cinzas e frias do Canadá, aqui, ele teria o horizonte da Praia de Camburi como vista. Não tem como dar errado, certo?

Resultado: ele foi atropelado na Praia do Canto, na Capital.

Porém Rafael não desistiu. Pelo contrário, foi aí que ele decidiu que se dedicaria a lutar para ter, no Espírito Santo, uma estrutura de mobilidade urbana parecida com a que ele teve fora do país. Para isso, resolveu documentar em vídeo a vida de ciclista na Grande Vitória

"Eu comprei uma câmera e coloquei no capacete. Comecei a fazer os vídeos para me proteger mesmo. Aí vi que os vídeos estavam ficando interessantes. Tinha materiais ali para educação", contou o ciclista. Os vídeos que ele fazia começaram a ter repercussão, um pouco do que, hoje, conhecemos como "viralizar".

'O ciclista capixaba'

Uma câmera na cabeça, um desejo no coração (e, possivelmente, tomando um pouco mais de cuidado ao atravessar a rua), Rafael começou a documentar sua jornada. O ano era 2013 e, no Brasil todo, as pessoas levavam suas causas à rua. Aqui no Espírito Santo não foi diferente. Milhares de pessoas compareceram às chamadas "jornadas de junho". Darrouy também colocou para fora suas reivindicações. Entre elas, uma ciclovia para a Terceira Ponte.

Rafael, neste ponto da história, não estava mais sozinho. Ao lado dele, estavam os Ciclistas Urbanos Capixabas (CUC). E, no coletivo, também estão outras personagens muito importantes para nossa história, entre elas, Deusdedet Alle Son, a Detinha. Guarde esse nome. 

Inicialmente, o conteúdo era publicado em uma página do Facebook. Sim, Facebook. Lembre que estamos falando de dez anos atrás. Mas "O ciclista capixaba" — como a página se chamava — também virou blog no antigo portal de A Gazeta, o Gazeta Online. Até que, em 2015, uma ideia que parecia absurda começou a tomar corpo.

Uma sugestão (nem um pouco) absurda

Em 2015, o governo do Estado deu início ao Orçamento Participativo, um processo que permite que a população participe da decisão de onde serão empregados os recursos. Os amigos, então, decidiram sugerir uma ideia que, até o momento, parececia absurda: uma ciclovia na Terceira Ponte. 

No verso da música "Por Você", em que o cantor Frejat diz que "iria a pé do Rio a Salvador", o ouvinte entende que se trata de um exagero, não de uma promessa. Era mais ou menos assim o sentimento de Rafael e seus amigos. "Na época, nós fizemos como uma piada com fundo de verdade. Realmente queríamos a obra, mas não acreditávamos que fosse possível" , conta Darrouy. 

Post original pedindo votos à proposta. (Reprodução)

A proposta dos ciclistas, no entanto, foi ficando séria. Um post feito na página O ciclista capixaba pedindo votos para a proposta foi impulsionado e teve bastante repercussão. Durante esses anos, a causa foi ganhando força. Muito disso, por causa do ativismo.

Reprodução da página de audiências públicas para discutir o orçamento em 2015. (Reprodução)

Protestos e obra falsa

A partir 2013, então, os ciclistas partiram para a ação. Fosse subindo a ponte, mesmo que proibido e recebendo avisos de policiais que poderiam ser presos, fosse indo até a frente da casa do governador gritar pela ciclofaixa. Vale ressaltar, inclusive, que, de lá para cá, os dois governadores que passaram pelo Palácio Anchieta foram exaustivamente cobrados pelo grupo.

Uma das ações mais curiosas foi a encenação de um início de obras para construção de uma ciclovia. A "Ciclovia das Docas", como sinalizaram no projeto fake, era apenas uma iniciativa para chamar atenção para o tema.

Em 2014, ciclistas encenaram o começo de uma obra. (Reprodução Redes Sociais)

O projeto de uma ciclovia na Terceira Ponte acabou como o mais votado para o Orçamento Participativo de 2015.  Isso não significa, no entanto, que o grupo tinha vencido. Os ciclistas ainda participaram de reuniões com o governo, pressionando para que o projeto saísse do papel.

O passar dos anos até os dias atuais

Rafael Darrouy, hoje, não mora mais no Espírito Santo. O empresário conta que vem ao Estado com frequência, mas que não tem muito tempo para pedalar. Mas pretende vir conhecer a obra que foi cadastrada no orçamento participativo com o CPF dele e será inaugurada neste domingo (27). 

Detinha, porém, morreu em 2016 em um acidente. Estava em uma bicicleta, meio de transporte pelo qual lutou durante a vida. De acordo com relato dos familiares, ela dava uma  palestra sobre mobilidade urbana na 6ª Conferência das Cidades, em Bento Ferreira, Vitória. Depois da participação, ainda no estacionamento, um motorista abriu a porta do carro, atingindo Detinha, que se desequilibrou e caiu da bicicleta, batendo com a cabeça no chão.

Ela chegou a ficar internada em estado grave no Hospital São Lucas, hoje chamado Hospital Estadual de Urgência e Emergência (HEUE). Infelizmente, no dia 1° de julho de 2016, Detinha Son faleceu. "Quando ela morreu, eu lembro exatamente onde eu estava.  Assim como todo mundo lembra onde estava quando Senna morreu, quando morre uma grande personalidade. Isso mostra o tamanho do impacto que isso gerou em todo mundo do movimento", lembra Darrouy. 

Mesmo que não possa ver a conclusão, a história de Deusdedet Alle Son continuará a fazer parte da vida dos capixabas. Em dezembro de 2022 foi sancionada a Lei nº 10.975 que dá o nome de "Ciclovia da Vida Detinha Son" à ciclovia da terceira ponte.

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