Além da Covid, Brasil enfrenta pandemia da falta de noção

O jeitinho brasileiro está dando as caras na vacinação, com denúncias de políticos e apaniguados furando a fila para receber a dose que deveria ir para grupos prioritários

Publicado em 22/01/2021 às 07h34
Vacina
País tem registrado denúncias de pessoas furando a fila de vacina. Crédito: Fernando Madeira

liberação das vacinas pela Anvisa foi em caráter emergencial, dada a urgência de enfrentamento da crise sanitária. Já foi amplamente divulgado que o Brasil possui em estoque 6 milhões de doses da CoronaVac, número insuficiente para a primeira etapa de vacinação. Há um plano nacional de imunização que, mesmo que desorganizado e com algumas lacunas, deixa bem claro quais são os grupos que devem ser priorizados nesta primeira fase.

 E, mesmo assim, com uma vacinação que será a conta-gotas até a produção plena de imunizantes no país, com a chegada dos insumos necessários, como bem ressaltou o governador Renato Casagrande, há aproveitadores e oportunistas de todos os tipos furando a fila na base da carteirada. 

O jeitinho brasileiro se disseminou como um vírus, como mostram os episódios que se sucedem no país desde a segunda-feira (18), dia em que o Ministério da Saúde iniciou a distribuição das doses para todos os Estados. A picadinha no braço não é só a garantia de proteção contra a Covid-19, mas uma imunização política, com direito a foto e legenda nas redes sociais. Prefeitos de municípios menores do país têm furado a fila na cara dura, mas se justificando com nobreza.

No interior da Bahia, Reginaldo Prado (PSD), prefeito de Candiba, foi o primeiro vacinado no município. Com a imagem devidamente divulgada nas redes sociais da prefeitura, vieram os inevitáveis questionamentos. Em nota, a prefeitura informou que o prefeito foi imunizado em "um ato de demonstração de segurança, legitimidade e eficácia da vacina, como forma de incentivo para a população que está desacreditada". A cidade tem 15 mil habitantes e recebeu apenas cem doses da CoronaVac.

O apadrinhamento político da vacina se espalhou na forma da carteirada, em um momento no qual somente os mais vulneráveis deveriam estar sendo imunizados. Reportagem de O Globo mostra que em pelo menos cinco Estados — Amazonas, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe — é possível já estar havendo interferência política na vacinação, em benefício de familiares e aliados. O Ministério Público investiga as denúncias.

Nem mesmo bolsonaristas que criticavam com veemência a CoronaVac ficaram imunes à febre da vacina. O jornal O Globo também informou que o deputado federal Filipe Barros (PSL-PR) é um dos que não perderam a chance de criticar a "vacina do Doria" nos últimos meses. Até o dia da aprovação do uso emergencial pela Anvisa, ele ainda não havia sido contagiado, mas bastaram as doses chegarem ao Paraná, no dia seguinte, para o discurso mudar. Inclusive com fotos ao lado dos profissionais de saúde que receberam as vacinas naquele dia. O deputado, contudo, não foi vacinado, vale ressaltar.

O proselitismo de ocasião, como o do parlamentar, acaba sendo o menor dos problemas. Grave mesmo é a ingerência regional sobre a distribuição das vacinas, que possui regras nacionais, mesmo que a vacinação em si fique a cargo da municipalidade. Manaus, que já passa por uma crise dramática de abastecimento de oxigênio, volta aos holofotes com denúncias de favorecimentos de parentes de empresários locais na fila da vacina. Além disso, o governo do Amazonas está sendo cobrado por 60.727 doses que não aparecem na contabilidade das vacinas recebidas no Estado.

No Espírito Santo, as autoridades estão atentas.  A Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) definiu, em portaria publicada no Diário Oficial do Estado nesta quinta-feira (21), que é considerada uma falta grave para o servidor, com demissão ou suspensão do cargo, a aplicação da vacina em pessoas fora da ordem de prioridade estabelecida pelo plano de vacinação. A punição também caberá ao servidor da Saúde que tomar a vacina mesmo estando fora dos grupos prioritários. Os municípios também terão de se adequar, estabelecendo punições. Os entes municipais devem estar dispostos a punir irregularidades, com rigor, para que o plano siga o rumo certo.

No Brasil, há a carência de um aspecto relevante para exterminar essa malandragem: o poder do exemplo é quase nulo. O Ministério da Saúde, que deveria ser um modelo de conduta na fila de vacinação, acaba de se sujeitar a um lobby do próprio diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis da pasta, Laurício Monteiro Cruz , ao reforçar a inclusão de veterinários no grupo prioritário de profissionais de saúde que devem ser vacinados contra a Covid-19.  Laurício é também presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Distrito Federal (CRMV-DF).

Das autoridades dos municípios mais recônditos às altas esferas do poder, o patrimonialismo brasileiro se manifesta das formas mais inusitadas, até mesmo quando o que está em questão é a vacina mais almejada deste século. A farra da vacina é emblemática das relações de poder e compadrio que são um traço cultural lamentável demais do país. O tempo passa, e parece não haver vacina para o jeitinho brasileiro.

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