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Isolamento desestruturado e caótico do Brasil não está funcionando

Não consigo vislumbrar consumo normal e feliz com mortes e colapso de hospitais. As pessoas vão comprar os bens essenciais se tiverem condições de fazê-lo

  • Lauro Ferreira da Silva Pinto Neto
Publicado em 12/05/2020 às 14h47
Atualizado em 12/05/2020 às 15h10
Mesmo com a orientação de isolamento social, a orla de Itapoã, em Vila Velha, registrou a presença de muitos frequentadores neste domingo (29).
Mesmo com a orientação de isolamento social, a orla de Itapoã, em Vila Velha, registrou a presença de muitos frequentadores em um domingo de abril. Crédito: Carlos Alberto Silva

Tempos difíceis à frente! A espécie humana tão poderosa, inquieta e soberba no seu domínio, tantas vezes descuidado, sobre a natureza, é posta de joelhos por um ser microscópico, que surgiu na China e se espalha com rapidez, sem respeitar fronteiras. Na verdade, a humanidade enfrenta pandemias há muitos séculos. A peste bubônica (peste negra) destruiu cidades inteiras na Idade Média, ceifou as vidas de pelo menos um terço da Europa na época, mudou reinados e governos.

A gripe espanhola, que surgiu nos Estados Unidos, a despeito do nome, matou mais que as duas guerras mundiais, colocou cidades inteiras em quarentena e instituiu na época o uso de máscaras, como pode ser constatado em fotos antigas.

Existe um esforço monumental na corrida por vacinas e antivirais eficazes contra o novo coronavírus. Trabalhos são publicados, muitos sem a necessária e criteriosa revisão por pares (peer review), numa desesperada tentativa de disseminar informações aos profissionais de saúde no front.

No momento em que escrevo este texto, o FDA, órgão americano de controle de medicamentos, liberou uma autorização excepcional de uso de um novo antiviral, antes da publicação do trabalho que teria comprovado vantagens de seu uso. Natural, que em época de redes sociais, a internet amplifique e dissemine este debate, com paixões e desvarios, para o bem e para o mal. Como a boa ciência não depende de votações, enquetes e claques, há que se ter paciência e serenidade para separar as boas e concretas soluções e medicamentos de fogos de artificio do momento.

Área da saúde, pesquisa e medicina
Pesquisadores se empenham em busca por vacina. Crédito: Chokniti Khongchum/Pixabay

Até o presente, sem vacina e sem remédio, da China à Coreia do Sul, da Itália, Espanha, Alemanha à cidade de Nova York, em vários continentes, essa doença foi enfrentada com medidas concretas e reprodutíveis aqui e ali. Em primeiro lugar, com testagem agressiva dos casos suspeitos, com resultados disponíveis no mesmo dia, buscando e isolando os contatos e bloqueando as cadeias de transmissão.

Em Singapura, uma cidade-estado que era mais pobre que o Brasil décadas atrás, para cada pessoa imediatamente diagnosticada, todos os contatos desta eram rastreados 14 dias para trás (contatos anteriores) e investigados! Essa batalha estamos perdendo.

Perdemos tempo precioso no Brasil, quando podíamos ter estruturado uma cadeia nacional de máquinas, testes moleculares e de pessoal treinado para executá-los. Agora, mal damos conta de testar casos graves e profissionais de saúde. Não conseguimos acompanhar a epidemia em tempo real. Pior, temos uma parafernália de testes rápidos confusos e ineficientes.

Em segundo lugar, são essenciais medidas de isolamento social rigorosas que tornem difícil ou impossível o contágio. O isolamento tem dois objetivos: um imediato, de achatar a curva de contágio, dando tempo à estruturação dos serviços de saúde para suportar uma doença que leva ao hospital 20% dos casos sintomáticos. Esse primeiro objetivo foi atendido em parte: muitas vidas foram poupadas inclusive em nosso Estado, embora diversas capitais sintam já a sobrecarga dos serviços de saúde como Manaus, Fortaleza e Rio de Janeiro.

O segundo objetivo, mais ambicioso, é inverter essa curva, o que se consegue quando o chamado número de reprodução da epidemia (R0) é menor que 1 (ou seja, 10 pessoas estão infectando menos que dez pessoas no ciclo seguinte). Quando a curva se inverte (R0 <1), o número de casos irá apresentar consistente declínio ao longo de semanas, mostrando que a epidemia foi controlada e é possível afrouxar os cuidados de isolamento.

De 6 a 7 de maio, estimava-se que cerca de 2% da população do Espírito Santo tinha sido exposta ao vírus (algo em torno de 90 mil pessoas), com um número de reprodução da epidemia de 1,57 (cada dez pessoas contaminam 15 ou 16 novas pessoas). Todos os países/ cidades que estão saindo do isolamento o estão fazendo em declínio de casos sustentado (acompanhados por 1 a 2 semanas de queda consistente) e com enormes cuidados de distanciamento nos negócios, máscaras, etc, porque o vírus pode ser reintroduzido na comunidade.

Enfim, já com 6 a 7 semanas sem escolas e sem comércio, estamos caminhando para uma profunda recessão e sem vislumbrar controle da epidemia no horizonte (cadê o pico? Não está sequer à vista...). Pior, nenhum Estado o conseguiu. Santa Catarina está um pouco melhor, com R0 estimado em 1,14. Estamos pagando o enorme ônus da economia parada sem o bônus do controle do surto. Quais as razões deste desastre?

IMPORTÂNCIA DO DISCURSO ÚNICO

O New England Journal of Medicine, um dos mais respeitados periódicos científicos do mundo, definiu em editorial há poucas semanas uma receita para enfrentar este que é o maior desafio de nossa geração. Em primeiro lugar, um discurso único com uma liderança unificada! Complicado para o Brasil! Desde o primeiro momento, a liderança máxima do país subestimou e minimizou a doença, e, dia sim e outro também, conclama ao abandono do isolamento.

Um ministro da Saúde popular, que bem ou mal liderava uma equipe que dialogava e tentava mobilizar a população, é substituído por outro, sonolento, hesitante, que parece com extrema dificuldade de convencer a si próprio da estratégia a ser seguida. Unidade e articulação essenciais para enfrentar um tremendo desafio viram disputa entre poderes e instituições e uma crise sucede à outra numa interminável pantomima que confunde e desespera.

Por outro lado, governadores e prefeitos, pressionados pelo medo e mortes que se avizinham, tomam medidas restritivas muito semelhantes para situações epidemiológicas distintas. Medidas duras de restrição de comércio e escolas, absolutamente necessárias em grandes cidades com mortes sucessivas, foram precipitadas em muitos locais sem transmissão significativa, tornando mais difícil e dolorosa a sua manutenção.

Na prática, assistimos a duas ou três semanas de isolamento seguidas de varias semanas de “meia boca”, um mistura confusa de isolamento e relaxamento, onde pessoas circulam, bares abrem, enfim, a vida continua... Para tornar o cenário ainda mais desafiador, a doença chegou com força às periferias das nossas metrópoles, onde as condições de vida e moradia tornam muito mais difícil o distanciamento exigido para dificultar o contágio. Como orientar adequadamente moradores onde, às vezes, avós, pais e netos dividem o mesmo cômodo?

Entendo perfeitamente o desespero honesto e sincero de empresários e trabalhadores que veem suas empresas e empregos destruídos. Mas alerto que muito disso é reflexo de uma pandemia única em um século, e inevitável. Defendo que a única opção viável de retorno às atividades econômicas “normais” é com segurança. Retomar atividade normal e esperar por imunidade de rebanho é marcar encontro certo com a catástrofe e o colapso do sistema de saúde. Defendo que se não tivermos competência para segurar o contágio, só prolongaremos a agonia da desestruturação econômica com recessão ainda pior.

Não consigo vislumbrar consumo normal e feliz com mortes e colapso de hospitais. As pessoas vão comprar os bens essenciais se tiverem condições de fazê-lo. Com perdão e permissão dos psiquiatras, há limites à loucura humana. Histórias como a da orquestra tocando enquanto o Titanic afundava e pessoas morriam são histórias de heroísmo em condições muito adversas e não correspondem ao dia a dia da vida humana. Talvez reconhecer francamente que o isolamento atual desestruturado e caótico em todo o país não é o bastante e só prolonga nossa agonia seja um primeiro passo para decidirmos o que fazer a seguir.

O autor é infectologista e professor da Emescam

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