Publicado em 9 de novembro de 2020 às 16:06
Enquanto o Congresso Nacional se debruça sobre a reforma administrativa, que promete equalizar condições de trabalho entre futuros servidores e trabalhadores da iniciativa privada, chama a atenção a história do policial militar que agrediu um frentista no Estado, no começo deste ano, e, desde então, tem tirado licença médica atrás de licença médica. >
Essa história emblemática levanta o debate sobre a necessidade de mudança no modelo de concessão desse benefício para garantir menos efeitos nas contas públicas e mais produtividade. Para especialistas, o serviço público precisa ter mais rigor antes de liberar o pagamento de auxílio-doença ao funcionário, exigindo comprovação de que existe realmente um quadro que incapacita ao trabalho.>
Depois de ficar afastado por 274 dias cerca de nove meses devido a três licenças médicas, o sargento passou por uma nova avaliação no dia 27 de outubro, e continuará longe do trabalho, pelo menos, até o dia 26 de dezembro deste ano, segundo a Polícia Militar do Espírito Santo (PM-ES).>
O primeiro e mais longo dos afastamentos teve início em 28 de janeiro cinco dias depois do policial apontar a arma e bater no rosto de um frentista em um posto de combustíveis na Praia de Itaparica, em Vila Velha. Câmeras de segurança flagraram as agressões.>
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Alegando sigilo entre médico e paciente, a Polícia Militar nunca revelou por qual problema de saúde o sargento está afastado. Apenas informou que "o militar passou por avaliação médica e a licença foi renovada por mais 60 dias" e que ele "está respondendo a Processo Administrativo Disciplinar de rito sumário, em andamento na Corregedoria da Polícia Militar".>
Durante todo o período em que não tem trabalhado devido às licenças médicas, o sargento segue recebendo o salário. O valor já soma mais de R$ 50 mil, conforme informações disponíveis no Portal da Transparência do governo do Estado. Vale ressaltar que esse é um direito previsto em lei.>
Na iniciativa privada, por outro lado, a concessão do auxílio-doença, que é um benefício similar, não é tão simples. Os trabalhadores, conforme relatos de advogados e situações já retratadas em reportagens de A Gazeta, muitas vezes levam meses para conseguir o benefício que permitirá o afastamento para cuidar da saúde.>
Um dos requisitos é a avaliação da perícia médica, para a qual há milhares de pessoas, muitas vezes com doenças incapacitantes, aguardando. E mesmo quando tem acesso ao benefício, não recebe o mesmo valor do salário que receberia normalmente.>
Outra questão avaliada pela Previdência Social é que o trabalhador às vezes realmente tem uma doença, comprova por exames. Mas, no entendimento dos médicos peritos, a enfermidade não é suficiente para incapacitar.>
Enquanto o auxílio-doença é previsto pelo Regime Geral da Previdência Social (RGPS), e gerenciado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a licença médica é prevista pelo Regime Próprio da Previdência Social (RPPS), e é gerenciada por Institutos instituídos por cada Administração Pública. >
A União e os Estados já têm Institutos Previdenciários regidos pelo Regime Próprio da Previdência. Na esfera estadual, a responsabilidade fica a cargo do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado do Espírito Santo (IPAJM). No caso dos militares, há um regime especial, separado. E alguns municípios, por não criarem seus institutos previdenciários, inscrevem seus servidores junto ao RGPS.>
Para cada um desses modelos, há variáveis que influenciam na forma como a licença-médica é concedida. Entretanto, a necessidade de passar pela avaliação de peritos médicos independe da esfera e do regime previdenciário.>
Em ambos os benefícios devem ser comprovados a qualidade de segurado, bem como a incapacidade laboral deve ser demonstrada por laudo pericial claro e fundamentado. No RGPS, o auxílio-doença exige ainda carência de 12 meses, explicou o advogado e professor universitário Eduardo Sarlo.>
Ele destaca que, uma vez comprovada a incapacidade laboral por força de um acidente ou doença, tanto o servidor público como o trabalhador privado tem o direito de se afastar de suas funções garantindo os seus rendimentos, mas em ambos os casos isso tem que ser provado por meio de laudos médicos idôneos e perícias médicas a serem produzidas por profissionais competentes e especialistas no assunto.>
O advogado especialista em direito público, Ronyelsen Bastos, observa que a licença médica precisa ser renovada periodicamente, caso a doença não esteja curada. Neste caso, o servidor passa por nova avaliação e repete todo o processo para manter o afastamento.>
Durante o afastamento, o servidor geralmente continua a receber o salário integral. Entretanto, deixa de receber alguns incrementos, como hora extra, entre outros.>
A depender do caso, o servidor perde o auxílio-alimentação, por exemplo. No caso de policiais militares, há chance de perda da escala especial. >
Marcos Vasconcellos Paula, procurador municipal de Rio Novo do Sul, que atua na área previdenciária, explica que se o acúmulo de licenças chegar a dois anos, por exemplo, e o problema alegado não estiver solucionado, é feita uma avaliação sobre a possibilidade de aposentadoria por invalidez.>
Há uma série de moléstias que já dão direito a aposentadoria de cara, como câncer incurável, problemas renais e outras doenças incapacitantes. O governo federal tem um rol de doenças nessa lista de problemas incuráveis e que dão direito à aposentadoria por invalidez. Mas, novamente, são problemas que não tem cura.>
Num caso em que o profissional é diagnosticado com depressão, por exemplo, não é considerado incapaz, e deve retornar após tratar a doença.>
Na avaliação do procurador, as perícias do IPAJM são bastante rígidas. Se o servidor estadual adoece, vai ao médico, busca um atestado e depois passa por avaliação da perícia, que poderá solicitar outros exames, e, se constatar um problema, poderá conceder uma licença de, em média, dois meses.>
Se precisar de mais tempo, vai ter que repetir o processo: passar no médico, pegar atestado, pegar documento e passar por perícia de novo. Mas nem todos os locais são assim.>
Uma fonte próxima à PM explicou que afastamentos de policiais militares por motivos de saúde, quando superiores a 15 dias, são concedidos por Junta Médica, composta por três médicos do quadro de saúde da polícia militar. Entretanto, ela alega que o corpo de saúde da PMES está defasado, o que poderia abrir espaço para a convocação de médicos que não são militares.>
Ao passo que o afastamento para tratar da saúde é um direito necessário aos trabalhadores do setor público, assim como do setor privado, para especialistas, é preciso repensar alguns pontos na forma como a concessão do recurso acontece.>
O primeiro ponto é o acesso ao benefício, que é muito mais difícil no setor privado, tanto em relação ao atendimento, que demora diante da inexistência de pessoal suficiente, quanto aos critérios para concessão do auxílio.>
No setor público, a eficiência nesse sentido não pode ser questionada, afinal, há uma quantidade muito menor de pessoas a serem atendidas.>
O segundo ponto e talvez o mais importante, na visão de especialistas é o salário, que permanece inalterado para os servidores, ainda que existam eventuais perdas de benefícios e adicionais. Essa garantia de salário seria um incentivo à busca por licenças, às vezes desnecessárias. >
Há casos inclusive de servidores que fazem alguma atividade por fora enquanto recebem o salário do funcionalismo durante o afastamento. Uma equiparação coibiria essa situação, e até valorizaria a qualidade do serviço público, observou a advogada previdenciária Catarine Mulinari Nico.>
Para o economista Ricardo Paixão, não se deve precarizar a concessão de benefícios aos servidores que de fato necessitam, mas é preciso considerar que há um peso no orçamento público, já exaurido pela folha de pagamento.>
É preciso ter mais critérios. Quando o servidor se afasta, deixa uma lacuna no serviço, diminui a taxa de produtividade, sobrecarrega outros colegas, ou, dependendo do período da licença, o órgão vai ter que contratar outro servidor em regime de designação temporária. Então, é uma questão que precisa ser discutida.>
Segundo Paixão, é preciso ter maior rigor na concessão dos afastamentos, verificar se o servidor realmente tem o problema que alega, se está mesmo se tratando, e até mesmo desenvolver ações que tornem a licença desnecessária.>
Há muitos casos de afastamento por questão psicológica. E a pessoa deixa a situação estourar para buscar ajuda. Então é preciso entrar com outras ações até para evitar que isso chegue a esse ponto, fazer campanhas, dar apoio aos servidores. Porque isso tudo tem impactos no custo da folha de pagamento quanto na produtividade.>
Economista especialista em gestão pública, Wallace Millis, pondera ainda que é preciso criar formas de realizar auditorias periódicas das licenças, para identificar possíveis indícios de fraudes. >
É preciso investir em inteligência de dados, para encontrar pontos fora da curva. Uma coisa é um comportamento normal. Em média, tantos professores tiram licença por mês. Tantos policiais tiram licença por mês. Outra coisa é um caso em que os casos disparam em determinado período, ou um médico está dando muitas licenças.>
Millis frisa que é preciso ter uma base de dados que permita identificar essas situações a fim de avaliar se há algo extraordinário acontecendo, que mereça uma atenção extra.>
É difícil levar direto para o âmbito administrativo porque o paciente diz que sente uma dor terrível, e quem vai dizer que não? Mas é preciso criar mecanismos que permitam avaliar essas questões, e punir quem por ventura possa estar cometendo alguma fraude, ou algum excesso.>
O advogado e professor universitário Eduardo Sarlo explica que, caso seja identificada alguma conduta fraudulenta, os envolvidos poderão ser responsabilizados, e, inclusive, já existem mecanismos para isso.>
Uma vez comprovada as práticas criminosas podem os envolvidos sofrer exoneração, rescisão por justa causa e ainda serem punidos em processos de natureza criminal, administrativo e cível para se reparar os danos materiais supostamente sofridos pelo poder público.>
*Com informações de Larissa Avilez.>
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