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Licença médica precisa mudar no serviço público, afirmam especialistas

Licença médica precisa mudar no serviço público, afirmam especialistas

Em cada esfera, municipal, estadual ou federal, as normas para concessão do afastamento são específicas. Analistas apontam, entretanto, para a facilidade de acesso quando comparado ao setor privado

Publicado em 9 de novembro de 2020 às 16:06

Retorno do atendimento ao público no INSS.
Sala adaptação para atendimento de perícia médica do INSS: serviço é diferente na iniciativa privada para o setor público. Crédito: Vitor Jubini

Enquanto o Congresso Nacional se debruça sobre a reforma administrativa, que promete equalizar condições de trabalho entre futuros servidores e trabalhadores da iniciativa privada, chama a atenção a história do policial militar que agrediu um frentista no Estado, no começo deste ano, e, desde então, tem tirado licença médica atrás de licença médica.

Essa história emblemática levanta o debate sobre a necessidade de mudança no modelo de concessão desse benefício para garantir menos efeitos nas contas públicas e mais produtividade. Para especialistas, o serviço público precisa ter mais rigor antes de liberar o pagamento de auxílio-doença ao funcionário, exigindo comprovação de que existe realmente um quadro que incapacita ao trabalho.

O primeiro e mais longo dos afastamentos teve início em 28 de janeiro – cinco dias depois do policial apontar a arma e bater no rosto de um frentista em um posto de combustíveis na Praia de Itaparica, em Vila Velha. Câmeras de segurança flagraram as agressões.

Alegando sigilo entre médico e paciente, a Polícia Militar nunca revelou por qual problema de saúde o sargento está afastado. Apenas informou que "o militar passou por avaliação médica e a licença foi renovada por mais 60 dias" e que ele "está respondendo a Processo Administrativo Disciplinar de rito sumário, em andamento na Corregedoria da Polícia Militar".

Durante todo o período em que não tem trabalhado devido às licenças médicas, o sargento segue recebendo o salário. O valor já soma mais de R$ 50 mil, conforme informações disponíveis no Portal da Transparência do governo do Estado. Vale ressaltar que esse é um direito previsto em lei.

Na iniciativa privada, por outro lado, a concessão do auxílio-doença, que é um benefício similar, não é tão simples. Os trabalhadores, conforme relatos de advogados e situações já retratadas em reportagens de A Gazeta, muitas vezes levam meses para conseguir o benefício que permitirá o afastamento para cuidar da saúde.

Um dos requisitos é a avaliação da perícia médica, para a qual há milhares de pessoas, muitas vezes com doenças incapacitantes, aguardando. E mesmo quando tem acesso ao benefício, não recebe o mesmo valor do salário que receberia normalmente.

Outra questão avaliada pela Previdência Social é que o trabalhador às vezes realmente tem uma doença, comprova por exames. Mas, no entendimento dos médicos peritos, a enfermidade não é suficiente para incapacitar.

PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE A LICENÇA MÉDICA E O AUXÍLIO-DOENÇA

Enquanto o auxílio-doença é previsto pelo Regime Geral da Previdência Social (RGPS), e gerenciado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a licença médica é prevista pelo Regime Próprio da Previdência Social (RPPS), e é gerenciada por Institutos instituídos por cada Administração Pública.

A União e os Estados já têm Institutos Previdenciários regidos pelo Regime Próprio da Previdência. Na esfera estadual, a responsabilidade fica a cargo do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado do Espírito Santo (IPAJM). No caso dos militares, há um regime especial, separado. E alguns municípios, por não criarem seus institutos previdenciários, inscrevem seus servidores junto ao RGPS.

Para cada um desses modelos, há variáveis que influenciam na forma como a licença-médica é concedida. Entretanto, a necessidade de passar pela avaliação de peritos médicos independe da esfera e do regime previdenciário.

“Em ambos os benefícios devem ser comprovados a qualidade de segurado, bem como a incapacidade laboral deve ser demonstrada por laudo pericial claro e fundamentado. No RGPS, o auxílio-doença exige ainda carência de 12 meses”, explicou o advogado e professor universitário Eduardo Sarlo.

Ele destaca que, uma vez comprovada a incapacidade laboral por força de um acidente ou doença, tanto o servidor público como o trabalhador privado tem o direito de se afastar de suas funções garantindo os seus rendimentos, mas em ambos os casos isso tem que ser provado por meio de laudos médicos idôneos e perícias médicas a serem produzidas por profissionais competentes e especialistas no assunto.

O advogado especialista em direito público, Ronyelsen Bastos, observa que a licença médica precisa ser renovada periodicamente, caso a doença não esteja curada. Neste caso, o servidor passa por nova avaliação e repete todo o processo para manter o afastamento.

“Durante o afastamento, o servidor geralmente continua a receber o salário integral. Entretanto, deixa de receber alguns incrementos, como hora extra, entre outros.”

A depender do caso, o servidor perde o auxílio-alimentação, por exemplo. No caso de policiais militares, há chance de perda da escala especial.

Marcos Vasconcellos Paula, procurador municipal de Rio Novo do Sul, que atua na área previdenciária, explica que se o acúmulo de licenças chegar a dois anos, por exemplo, e o problema alegado não estiver solucionado, é feita uma avaliação sobre a possibilidade de aposentadoria por invalidez.

“Há uma série de moléstias que já dão direito a aposentadoria de cara, como câncer incurável, problemas renais e outras doenças incapacitantes. O governo federal tem um rol de doenças nessa lista de problemas incuráveis e que dão direito à aposentadoria por invalidez. Mas, novamente, são problemas que não tem cura.”

Num caso em que o profissional é diagnosticado com depressão, por exemplo, não é considerado incapaz, e deve retornar após tratar a doença.

Na avaliação do procurador, as perícias do IPAJM são bastante rígidas. Se o servidor estadual adoece, vai ao médico, busca um atestado e depois passa por avaliação da perícia, que poderá solicitar outros exames, e, se constatar um problema, poderá conceder uma licença de, em média, dois meses.

“Se precisar de mais tempo, vai ter que repetir o processo: passar no médico, pegar atestado, pegar documento e passar por perícia de novo. Mas nem todos os locais são assim.”

Uma fonte próxima à PM explicou que afastamentos de policiais militares por motivos de saúde, quando superiores a 15 dias, são concedidos por Junta Médica, composta por três médicos do quadro de saúde da polícia militar. Entretanto, ela alega que o corpo de saúde da PMES está defasado, o que poderia abrir espaço para a convocação de médicos que não são militares.

POR QUE MUDAR?

Ao passo que o afastamento para tratar da saúde é um direito necessário aos trabalhadores do setor público, assim como do setor privado, para especialistas, é preciso repensar alguns pontos na forma como a concessão do recurso acontece.

O primeiro ponto é o acesso ao benefício, que é muito mais difícil no setor privado, tanto em relação ao atendimento, que demora diante da inexistência de pessoal suficiente, quanto aos critérios para concessão do auxílio.

No setor público, a eficiência nesse sentido não pode ser questionada, afinal, há uma quantidade muito menor de pessoas a serem atendidas.

O segundo ponto – e talvez o mais importante, na visão de especialistas – é o salário, que permanece inalterado para os servidores, ainda que existam eventuais perdas de benefícios e adicionais. Essa garantia de salário seria um incentivo à busca por licenças, às vezes desnecessárias.

“Há casos inclusive de servidores que fazem alguma atividade por fora enquanto recebem o salário do funcionalismo durante o afastamento. Uma equiparação coibiria essa situação, e até valorizaria a qualidade do serviço público”, observou a advogada previdenciária Catarine Mulinari Nico.

Para o economista Ricardo Paixão, não se deve precarizar a concessão de benefícios aos servidores que de fato necessitam, mas é preciso considerar que há um peso no orçamento público, já exaurido pela folha de pagamento.

“É preciso ter mais critérios. Quando o servidor se afasta, deixa uma lacuna no serviço, diminui a taxa de produtividade, sobrecarrega outros colegas, ou, dependendo do período da licença, o órgão vai ter que contratar outro servidor em regime de designação temporária. Então, é uma questão que precisa ser discutida.”

Segundo Paixão, é preciso ter maior rigor na concessão dos afastamentos, verificar se o servidor realmente tem o problema que alega, se está mesmo se tratando, e até mesmo desenvolver ações que tornem a licença desnecessária.

“Há muitos casos de afastamento por questão psicológica. E a pessoa deixa a situação estourar para buscar ajuda. Então é preciso entrar com outras ações até para evitar que isso chegue a esse ponto, fazer campanhas, dar apoio aos servidores. Porque isso tudo tem impactos no custo da folha de pagamento quanto na produtividade.”

Economista especialista em gestão pública, Wallace Millis, pondera ainda que é preciso criar formas de realizar auditorias periódicas das licenças, para identificar possíveis indícios de fraudes.

“É preciso investir em inteligência de dados, para encontrar pontos fora da curva. Uma coisa é um comportamento normal. Em média, tantos professores tiram licença por mês. Tantos policiais tiram licença por mês. Outra coisa é um caso em que os casos disparam em determinado período, ou um médico está dando muitas licenças.”

Millis frisa que é preciso ter uma base de dados que permita identificar essas situações a fim de avaliar se há algo extraordinário acontecendo, que mereça uma atenção extra.

“É difícil levar direto para o âmbito administrativo porque o paciente diz que sente uma dor terrível, e quem vai dizer que não? Mas é preciso criar mecanismos que permitam avaliar essas questões, e punir quem por ventura possa estar cometendo alguma fraude, ou algum excesso.”

O advogado e professor universitário Eduardo Sarlo explica que, caso seja identificada alguma conduta fraudulenta, os envolvidos poderão ser responsabilizados, e, inclusive, já existem mecanismos para isso.

“Uma vez comprovada as práticas criminosas podem os envolvidos sofrer exoneração, rescisão por justa causa e ainda serem punidos em processos de natureza criminal, administrativo e cível para se reparar os danos materiais supostamente sofridos pelo poder público.”

*Com informações de Larissa Avilez.

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