Aos 80 anos, Elisardo Corral Vasquez demonstra o mesmo encantamento pela ciência de quando descobriu este mundo em uma famrácia, em Santos, logo após chegar ao Brasil
Aos 80 anos, Elisardo Corral Vasquez demonstra o mesmo encantamento pela ciência de quando descobriu este mundo em uma famrácia, em Santos, logo após chegar ao Brasil. Crédito: Fernando Madeira

O espanhol que mudou a história da pesquisa científica no ES e deu o próprio nome a museu

Ainda adolescente, Elisardo Corral Vasquez se encantou pela ciência atrás de um balcão de farmácia. Em décadas, ele estudou, se formou e doou todo o conhecimento obtido à criação de cursos de mestrado e doutorado na Ufes

Tempo de leitura: 9min
Vitória
Publicado em 20/12/2025 às 19h41

Entre prateleiras com instrumentos antigos e frascos de vidro, surge um homem de jaleco branco, com fala mansa e olhar sempre curioso e atento. É neste ambiente, tipicamente de um laboratório, que, aos 80 anos, o cientista Elisardo Corral Vasquez se realiza dia após dia. Desde que "se entende por gente", ele prefere os experimentos ao descanso que a aposentadoria permitiria. É ali, entre microscópios, livros e memórias, que este espanhol se sente em casa.

Nascido na Espanha e radicado no Espírito Santo desde o fim dos anos 1970, o professor construiu uma trajetória marcada pela curiosidade e pela persistência. Foi o responsável por implantar o primeiro mestrado e doutorado da área da saúde no Estado, ambos voltados para Ciências Fisiológicas. Mais recentemente, criou o Museu de Biociências, em Vila Velha, espaço gratuito e pioneiro que preserva parte da história da medicina e da fisiologia no Brasil.

Antes de se tornar referência em Fisiologia, ele era apenas um menino de 12 anos que cruzava o Oceano Atlântico em um navio repleto de crianças órfãs. O ano era 1956, e a miséria da Europa empurrava famílias inteiras para diferentes cantos do mundo. Os pais de Elisardo haviam deixado a região espanhola da Galícia rumo ao Brasil em busca de trabalho.

“Na embaixada, disseram a eles que seria mais fácil conseguir visto se viessem sem os filhos, pois o Brasil queria casais para trabalhar”, lembra. O pai foi operário na gráfica da revista Manchete; a mãe, caseira na casa dos donos.

O casal não se adaptou no Rio de Janeiro e se mudou para Santos, no litoral de São Paulo. Já os filhos ficaram na Espanha, até serem trazidos pelas missões católicas no fim de 1957. “Eu e meu irmão viemos num navio com cinquenta crianças órfãs. Era a última viagem do navio, depois ele seria desmontado em Buenos Aires”, contou.

Quando o barco atracou no Rio, quase todas as crianças já tinham alguém à espera, menos os dois irmãos, que ficaram desesperados. O capitão, com pena, prometeu deixá-los com as autoridades em Santos, a última parada da embarcação.

O que os irmãos não esperaram era que o pai deles, Don Alfonso Vilariño, iria aparecer inesperadamente em meio à multidão, proporcionando um reencontro digno de cinema. “Meu pai lia o jornal todos os dias, acompanhando os navios que chegavam. Quando viu nosso nome do nosso, percebeu que era o nosso barco”, recorda.

Ao atracar, Elisardo olhou do convés e avistou o pai. “Gritei: ‘Capitão! Capitão! Meu pai está lá embaixo!’ Ele subiu, me pegou no colo e levou meu irmão também. Foi um milagre a gente se encontrar”, disse.

O despertar da curiosidade

Já em Santos, ainda adolescente, o pai de Elisardo o levou até o dono de uma farmácia, insistindo para que o menino fosse contratado. O patrão acabou cedendo e, sem imaginar, deu o primeiro emprego ao futuro cientista. No início, a função dele era simples: limpar vidros, bancadas e instrumentos. Mas o jovem curioso queria entender o que acontecia nos bastidores do estabelecimento.

Elisardo Corral Vasquez

Cientista

Eu via o farmacêutico preparar xaropes, pomadas, cápsulas. Eu observava tudo e, com o tempo, aprendi a fazer. Fazia escondido. Quando percebi, já fazia curativos, aplicava injeções e esterilizava instrumentos

Aos 15 anos, já era mais do que um ajudante. O cientista diz que a farmácia foi a primeira universidade dele. E a vida ainda guardava um empurrão inesperado para o jovem em formação. Certa noite, uma vizinha, cantora, o ouviu tentando acompanhar uma música em inglês e decidiu intervir. “Ela me disse: ‘Por que você não estuda inglês? É a língua do futuro’”, relembrou.

O conselho mudou o rumo da vida de Elisardo. Ele foi até o Instituto Brasil–Estados Unidos e conseguiu uma bolsa para estudar inglês. “Estudei dois anos, e lá descobri uma biblioteca cheia de livros de química, física e biologia. Li tudo. Foi ali que percebi que podia sonhar com a universidade”, disse.

Destino: Brasília

Elisardo Vasquez na época em que trabalhava na farmácia em Santos. Foram 10 anos de trabalho, indo de faxineiro a gerente do estabelecimento
Elisardo Vasquez na época em que trabalhava na farmácia em Santos. Foram 10 anos de trabalho, indo de faxineiro a gerente do estabelecimento. Crédito: Arquivo pessoal

Aos 22 anos, Elisardo foi aprovado na Universidade de Brasília (UnB). Começou em Medicina, mas logo percebeu que queria mergulhar mais fundo nas causas das doenças. Por isso, passou a cursar Ciências Biomédicas, que formava professores e pesquisadores. “Queria entender como o corpo funcionava antes de aprender a tratar”, contou.

A escolha o levou até Ribeirão Preto, onde ficava a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Usp), um dos maiores centros de pesquisa da América Latina. “Era o meu sonho. Lá se fazia ciência de verdade. Entrei para o mestrado em 1976, no Laboratório de Pesquisa Cardiovascular, e fui orientado pelo professor Eduardo Moacir Krieger, um dos nomes mais respeitados do país".

 Elisardo e Eduardo Moacir Krieger, um dos pesquisadores mais importantes do Brasil
Elisardo (à direita) e Eduardo Moacir Krieger, um dos pesquisadores mais importantes do Brasil . Crédito: Arquivo pessoal

Sob a orientação de Krieger, aprendeu a unir rigor científico e paixão pelo ensino. A partir disso, Elisardo começou a dar aulas e palestras para alunos de Medicina e descobriu a vocação para ensinar. Na USP, participou de projetos pioneiros sobre hipertensão e estudou formas de registrar a atividade cardíaca de ratos acordados, algo inédito no país. “Desenvolvemos um sistema que permitia monitorar o coração por 15 dias seguidos. Foi uma revolução para a fisiologia da época", recorda-se.

A convivência com cientistas formados por Bernardo Houssay, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, consolidou o espírito de pesquisador que o acompanharia por toda a vida. “Esses professores trouxeram para o Brasil uma cultura de disciplina e curiosidade. Aprendi que ciência é insistir até entender”, destacou.

A vez de Vitória...

O convite para vir ao Espírito Santo surgiu por acaso, entre um mestrado e um doutorado em Ribeirão Preto. O diretor do Centro Biomédico da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) havia enviado uma carta à USP pedindo indicações de jovens cientistas. Ribeirão Preto era referência na formação em Biomedicina e o nome de Elisardo apareceu na lista.

Ele aceitou o desafio sem saber exatamente para onde estava indo. O encanto com o Espírito Santo foi imediato, mas a realidade da Ufes era dura. “Não tinha estrutura, nem ratos de laboratório. Eu trouxe o primeiro casal de Ribeirão Preto, eles comeram a gaiola e fugiram. Tive que catar os dois pelo campus”, relembra.

O professor Elisardo Vasquez
Nas décadas de pesquisa, Elisardo desenvolveu muitas delas com a utilização de ratos de laboratórios, que no museu deram lugar a bichinhos de pelúcia. Crédito: Fernando Madeira

Entre improvisos e boa vontade, o professor recém-chegado começou a construir do zero o espaço para pesquisa em Fisiologia. Transformava aparelhos velhos em instrumentos de medição e criava soluções para fazer a ciência acontecer. “Eu dizia que a criatividade era o nosso financiamento”, reforçou.

O período também coincidiu com os anos mais duros da ditadura militar. Os jornais eram censurados, e os alunos viviam sedentos por informação. “Eu viajava para São Paulo a cada quinze dias e trazia (os jornais) Folha, Estadão, Pasquim. Eles devoravam tudo. Era o nosso jeito de resistir”, conta.

Com o tempo, o professor também passou a se envolver na vida política universitária. Tornou-se presidente da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Espírito Santo (Adufes) e ganhou respeito pela oratória firme e presença nos debates. Mesmo nos anos de militância, Elisardo nunca se afastou da ciência. “Eu fazia política fora do expediente. Das oito às seis (da tarde), eu estava dentro do laboratório”, relembra.

Liderança reconhecida

Quando Elisardo chegou à Ufes, o cenário científico capixaba era praticamente desértico. Cada professor pesquisava sozinho, em áreas distintas, sem infraestrutura ausência de equipamentos modernos. “Um estudava Química, outro Biologia Agrícola, um terceiro estava em Serviço Social. Eu pensei: se cada um continuar isolado, ninguém vai sair do lugar”, conta.

O reconhecimento pelo esforço cresceu rápido e chamou atenção da reitoria. O reitor da época o convidou para liderar a criação do primeiro mestrado do Centro Biomédico.“Ele queria tudo pronto antes de encerrar o mandato. Fui atrás de uma empresa que fazia construção rápida, pré-moldada. Cada viga pesava duas toneladas. A gente montou o prédio em tempo recorde”, lembra.

Para equipar o novo programa, Vasquez foi ao Rio de Janeiro, na sede da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Ele fez uma proposta e conseguiu apoio financeiro. “Eu comprava cada aparelho com o máximo de acessórios, para transformar um em três. Era o nosso jeito de multiplicar recursos”, esclareceu. O mestrado foi inaugurado em 1987 e se tornou um marco na história da ciência capixaba.

Convite e felicidade

O passo seguinte viria de forma ainda mais simbólica. Enquanto fazia pós-doutorado nos Estados Unidos, Elisardo recebeu um convite para criar o primeiro doutorado do Espírito Santo. “Foi uma alegria enorme. Eu lembro de comemorar no laboratório, sozinho”, destacou. De volta ao Brasil, ele liderou a criação do primeiro curso de doutorado da área da saúde no Espírito Santo.

O doutorado formou os primeiros médicos doutores do Estado e colocou a universidade federal no mapa nacional da ciência. “A engenharia disputava comigo quem tinha sido o primeiro doutorado do Espírito Santo, mas eu ganhei a corrida”, brinca.

O legado em movimento

Após quatro décadas na Ufes, Elisardo Vasquez se aposentou das salas de aula, mas descansar ainda não é opção. Pouco tempo depois, recebeu um convite da Universidade Vila Velha (UVV), que pretendia fortalecer a pesquisa e pós-graduação. Na nova casa, o cientista ajudou a estruturar o mestrado, o doutorado e, mais tarde, viu a unidade conquistar o título de universidade.

O que move Elisardo, mesmo aos 80 anos, não é a posição acadêmica, é o prazer de aprender e compartilhar. Durante os anos de pesquisa nos Estados Unidos, ele começou a reunir equipamentos antigos de laboratórios. “As universidades americanas leiloavam os aparelhos e eu os disputava com chineses e russos. Comprava o que podia com o dinheiro da bolsa, como balanças, estereotáxicos, medidores de pressão, aparelhos de registro neural”, disse.

Ao final de tudo, juntou cerca de 70 caixas cheias de materiais científicos. Décadas depois, este acervo virou o coração de um novo projeto: o Museu de Biociências, espaço gratuito e aberto ao público, instalado no campus de Biopráticas da Universidade de Vila Velha. “Eu sempre quis um lugar para preservar e mostrar a história da ciência. Falei com a reitoria e fiz um acordo. Eu doava o museu, desde que nunca cobrassem entrada. Eles aceitaram", conta.

O professor Elisardo Vasquez
O Museu de Biociências da UVV recebeu o nome do cientista espanhol e boa parte do que está nele, foi obtido por meio dos esforços de Elisardo. Crédito: Fernando Madeira

Hoje, o professor dedica entre dez e doze horas por dia ao espaço. “Os seguranças até brincam que sou o que mais trabalha aqui. Não me deixam entrar sábado e domingo, dizem que preciso descansar”, conta, sorrindo.

No museu, nada é estático. Cada equipamento é restaurado, desmontado, limpo e remontado pelo próprio cientista. Tudo o que está exposto funciona e o que não funciona, não entra em exibição. As visitas são guiadas e quem conduz o passeio é o próprio Elisardo. “É o primeiro museu do Brasil onde o cientista é o guia”, diz com orgulho.

Além das exposições, o espaço virou um ponto de aprendizado e bem-estar. Vasquez treina 53 alunos de Medicina para atuarem como monitores e planeja atividades voltadas ao público idoso. “Quero fazer oficinas de equilíbrio, dança, jogos cognitivos. O museu também é um espaço de saúde e reabilitação",

Quando indagado sobre o que o motiva a seguir trabalhando, o cientista responde sem hesitar: curiosidade. “Eu gosto de aprender. Se alguém me faz uma pergunta que não sei responder, eu pesquiso. Às vezes, vou até a casa da pessoa levar a resposta. O que me move é a descoberta", orgulha-se.

Olhando para trás, Elisardo Vasquez fala da própria trajetória com a serenidade de quem sabe que deixou marcas profundas. São 80 anos de vida e mais de cinco décadas dedicadas à pesquisa, ao ensino e à formação de gerações de cientistas capixabas.

“Eu gosto de pensar que fui a criança que virou empreendedor da ciência. Um menino pobre, filho de pais analfabetos, que chegou sem falar português e construiu uma vida inteira dedicada ao conhecimento”.

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