Ataques a moradores de rua são face mais cruel de uma série de violências

Casos recentes no Espírito Santo acendem alerta sobre os milhares de brasileiros que são alvos constantes de agressões e assassinatos devido à falta de amparo do Estado e à visão higienista de uma parcela da população

Publicado em 28/07/2020 às 06h00
Religiosos fazem ato ecumênico em memória ao morador em situação de rua queimado vivo
Religiosos fazem ato ecumênico em memória ao morador em situação de rua queimado vivo. Crédito: Lorraine Boldrini/ Divulgação

As três vítimas baleadas em Vila Velha, na noite do último sábado (25), são a faceta mais explícita de um sem-número de violências a que estão sujeitas as pessoas em situação de rua no Brasil. À margem dos direitos mais básicos para garantir cidadania, milhares de brasileiros são alvos constantes de preconceito, agressões e assassinatos devido à falta de amparo do Estado e à visão higienista que grassa entre uma parcela da população – pequena, mas virulenta.

O caso ocorrido no Ibes, em que homens atiraram a esmo, em direção a um conhecido ponto de concentração de desabrigados, é apenas o mais recente episódio de selvageria no Espírito Santo. Três dias antes, uma mulher que dormia na calçada foi acordada com chutes e teve pertences queimados em Vitória. Há 20 dias, um morador de rua morreu após ser queimado em Itararé, também na Capital. No mesmo bairro, em fevereiro, criminosos dispararam contra um grupo de moradores de rua, assassinando um jovem.

Pelo menos outras duas barbáries foram cometidas no Estado neste ano, ambas em março. Na Vila Rubim, quatro homens armados atiraram em direção em a um grupo de moradores de rua, matando uma pessoa e ferindo outras oito à luz do dia. O fato ocorreu apenas um dia depois de terem ateado fogo em um casal em Vila Velha.

Os ataques no Espírito Santo empilham-se a inúmeros outros ocorridos com desabrigados no Brasil, como o de grupo envenenado em São Paulo e o de vítima que teve o rosto desfigurado na Paraíba, para citar apenas casos que ganharam alguma evidência nos últimos dias. Invisíveis para a maioria da sociedade, tidas como estorvo a ser ocultado sobretudo nas áreas nobres das cidades, pessoas em situação de rua também são ignoradas nas estatísticas. Crimes de menor potencial ofensivo nem chegam a ser registrados. Quando são, muitos permanecem impunes.

Os dados mais recentes do Ministério da Saúde foram divulgados no ano passado, mas são relativos ao período entre 2015 e 2017. Apontam que o Brasil contabilizou 17.386 casos de violência contra moradores de rua nesse intervalo. O número inclui apenas ocorrências em que a motivação principal era o fato de a pessoa estar em situação de rua.

Opiniões afobadas indicariam acertos de contas e envolvimento com o tráfico de drogas entre as causas mais frequentes de agressões e mortes. Estendem o cenário de indigência a que pessoas em situação de rua são submetidas a uma degradação também moral. Essa visão turva da realidade está na raiz de tratamentos discriminatórios que, em última instância, descambam em violência, a fim de promover justiçamento ou faxina social.

Por isso o primeiro passo para combater a violência contra os cidadãos sem endereço e emprego certos é conhecer essas pessoas. Saber quem elas são e por que estão nas ruas é o pontapé não apenas para que o aparato do Estado funcione, com serviços e abrigo, mas também para acabar com os estigmas negativos a elas associados, como “criminosas” e “vagabundas”.

Levantamento do Médicos sem Fronteiras, que historicamente atende sem-teto no país, lança pequeno feixe de luz sobre o assunto. Dos 600 moradores de rua atendidos pelo programa no Rio de Janeiro, apenas 1% era pedinte e 1,5% praticava furtos e roubos. A maioria trabalhava horas a fio em bicos, sem ganhos suficientes. Entre comprar remédios e alimentação e arcar com as despesas de uma casa, ficam com medicamento e comida.

Neste contexto de pandemia, a crise aumenta. Não apenas porque as misérias habituais, como fome e desemprego, somam-se à contaminação pelo novo coronavírus, mas também porque o índice de desabrigados tende a aumentar com a recessão econômica, amplificando o problema.

Mas muitas cidades ainda ignoram completamente essa parcela da população. Não sabem nem mesmo quantos são. Os dados nacionais mais recentes são do Ipea, de 2016, com números do ano anterior. Em 2015, o Brasil somava 101 mil pessoas nessas condições, quase oito a cada dez delas nos grandes centros urbanos. A máquina estatal, que já emperra para tratar das camadas mais pobres, é ainda mais enferrujada para lidar com a extrema vulnerabilidade dos moradores de rua. O Brasil precisa primeiro conhecer o Brasil se quiser avançar. E isso vale para qualquer um de seus dramas históricos.

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