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Pizza, açaí e marmita: vítimas de violência usam 'códigos' para pedir socorro no ES

Pizza, açaí e marmita: vítimas de violência usam 'códigos' para pedir socorro no ES

Mulheres ligam para a Polícia Militar e simulam conversas que escondem, na verdade, um pedido de socorro contra agressões; do outro lado da linha, atendentes treinados identificam os sinais e encaminham a ajuda necessária

João Barbosa

Repórter / [email protected]

Publicado em 15 de agosto de 2025 às 08:09

Mulheres ligam para a polícia e usam códigos para denunciar que estão em perigo; do outro lado da linha, atendentes treinados encaminham ajuda em segundos

Uma ligação para o 190, da Polícia Militar do Espírito Santo, começa com um pedido inusitado: “Queria uma marmita”. À primeira vista, poderia ser um engano. Mas, na verdade, é o código usado por uma mulher para denunciar que está sendo vítima de violência doméstica. Em outras ligações, o disfarce é pedir pizza, açaí ou até medicamentos. Do outro lado da linha, atendentes treinados identificam o sinal, fazem perguntas rápidas e diretas e acionam, o mais rápido possível, equipes policiais para socorrer a vítima.

No início de agosto, mês que marca o aniversário da Lei Maria da Penha, um caso inusitado no Mato Grosso do Sul ganhou repercussão nacional após uma mulher pedir dipirona para denunciar que estava sendo agredida pelo marido. O caso não é isolado.

No Espírito Santo, por exemplo, só de vítimas de violência doméstica são cerca de 8 mil ligações recebidas pelo 190, telefone da Polícia Militar, todos os meses. Em 2024, o acumulado desse tipo de chamada para o 190 foi superior a 71 mil.

No Estado, um dos principais caminhos para vítimas em busca de amparo é o Centro Integrado de Operações de Defesa Social (Ciodes), órgão que recebe as ligações em telefones de emergência como o 190 e o 193, encaminhando as ocorrências para diversas forças de segurança pública.

Rony Natale, major da PMES e coordenador do teleatendimento do Ciodes, explica que, quando identificadas, essas chamadas são tratadas em alerta vermelho. Para os casos em que os agressores estão perto das vítimas — o que não permite que a mulher fale diretamente que está em perigo —, a atenção dos atendentes é redobrada para que as vítimas encontrem meios para relatar que estão em um contexto de violência.

Major Rony Natale, Coordenador do Ciodes
Major Rony Natale, coordenador do Ciodes Crédito: Ricardo Medeiros

“Toda vez que nosso atendente escuta uma situação inusitada (como um pedido de pizza ou de açaí no 190) ele está preparado para seguir um protocolo de questionamentos de modo que a conversa possa continuar. Se é um pedido de pizza, por exemplo, o atendente combina com a mulher sobre o tipo de queijo: se a resposta for muçarela, ele sabe que o agressor está no local”, detalha o major.

Em uma das chamadas, uma das vítimas simulou o pedido de um açaí. Em menos de seis segundos, o atendente do Ciodes identificou que era um pedido de ajuda e prosseguiu com o atendimento com perguntas objetivas para auxiliar a mulher. Veja abaixo um trecho da conversa:

  • Vítima: “Tem açaí ainda? Eu queria um açaí para mais tarde”
  • Atendente: “Ok, senhora. Está ocorrendo alguma coisa aí? Alguma emergência?”
  • Vítima: “É só mandar o açaí para mim”
  • Atendente: “A senhora fala de qual cidade e bairro?”
  • Atendente: “Vou fazer uma pergunta para a senhora e a senhora me responde com sim ou não: tá acontecendo algo aí com a senhora?”
  • Vítima: “Sim”
  • Atendente: “A senhora pode falar algum ingrediente que a senhora queira [no açaí] para disfarçar um pouco”
  • Vítima: “Aí você coloca aí leite em pó… coloca todos os ingredientes”

Após reunir os dados do endereço e pontos de referência, o atendente confirmou o registro da ocorrência e avisou que enviaria ajuda à mulher. O protocolo, segundo o major Rony Natale, é o ideal para ligações de mulheres que estão próximas ao agressor.

“A principal dificuldade é quando o agressor está muito perto. Isso porque temos a questão da temporalidade, então, temos que ser rápidos. O atendimento tem que ser breve, não podemos titubear e questionar muitas coisas”, explica Natale.

Treinamento na rotina do trabalho

Ciodes - Centro integrado Operacional DE Defesa Social
Atendentes do Centro Integrado Operacional de Defesa Social (Ciodes) no Espírito Santo Crédito: Ricardo Medeiros

Como as ligações de vítimas de violência doméstica tratam de um assunto delicado, os atendentes passam por um treinamento específico para atuação nas chamadas. Batizado de “Formação Continuada”, o treinamento também garante aos atendentes um suporte em caso de abalo emocional com as ocorrências.

“Se o atendente tem algum problema, alguma dificuldade, ele tem o momento para falar sobre isso. E, no atendimento, se tiver algum mal-estar, ele pode sair da sala do Ciodes para buscar esse suporte”, pontua Rony.

Segundo o major, as ligações de vítimas de violência doméstica são registradas, principalmente, no período noturno. Nos horários críticos, o Ciodes atua com 30 profissionais atendendo as chamadas e encaminhando as ocorrências para as forças de segurança, como a PM, a Polícia Civil e as guardas municipais.

Ciodes - Centro integrado Operacional DE Defesa Social
Entrada do Centro Integrado Operacional de Defesa Social (Ciodes) no Espírito Santo Crédito: Ricardo Medeiros

Rony Natale ainda destaca que, de 2020 para 2025, o número anual de ligações saltou de 50 mil para 71 mil. Esse crescimento, segundo o major, significa o aumento da coragem de mulheres em denunciar os agressores.

Por outro lado, além de haver mais denúncias desse tipo, números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho, também mostram que os casos de violência doméstica e sexual aumentaram no Espírito Santo.

➥ No último ano, foram 93 assassinatos de mulheres, sendo 39 feminicídios, quando as vítimas são mortas em um contexto de menosprezo ou discriminação ao sexo feminino. Já no recorte das tentativas de crime contra a vida das mulheres, o número saltou de 78 para 85.

➥ Os dados ainda expõem que as lesões corporais dolosas (aquelas feitas necessariamente com a intenção de ferir terceiros) contra mulheres também aumentaram no território capixaba. Em 2023, foram 2.460 casos, em comparação aos 2.552 registrados em 2024.

Dilson Carvalho Junior, advogado especialista em Direito de Família e representante de vítimas no contexto da Lei Maria da Penha, aponta que as mulheres têm buscado mais ajuda devido ao aumento dos canais de comunicação para pedir socorro e também pelo maior nível de instrução das mulheres que podem estar em uma situação de risco.

“Existe uma articulação entre justiça, saúde e educação para que jovens meninas tenham desde cedo conhecimento sobre o que é um relacionamento saudável. Inclusive, meninos que estão se tornando homens também devem ter uma campanha direcionada a eles para promover a masculinidade não violenta”, defende Dilson.

O advogado ainda explica que o aumento no número das denúncias mostra que as mulheres estão se sentindo mais amparadas pelos canais que procuram para pedir ajuda.

A violência doméstica é um ponto preocupante da realidade. Mas mudanças estruturais nos eixos que citei podem garantir mais segurança

Dilson Carvalho Junior

Advogado especialista em Direito de Família

Saiba onde e como pedir socorro

Além do canal de comunicação com a Polícia Militar por telefone, mulheres vítimas de violência doméstica também podem contar com pontos de atendimento em todo o Estado.

  • Os pontos de atendimento incluem:

    Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams);
    Centros de Referência de Atendimento à Mulher (CRAMs);
    Centros de Referência de Assistência Social (CRAS);
    Defensorias Públicas e Promotorias com atuação em casos de violência doméstica;
    Serviços de saúde que realizam atendimento emergencial e psicossocial.

Não é preciso esperar a agressão física acontecer para pedir socorroA Lei Maria da Penha prevê cinco tipos de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Insultos, ameaças, controle financeiro, isolamento e vigilância excessiva são formas de violência e devem ser denunciadas.

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