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Quase mil candidatos do ES mudaram declaração de cor para a eleição de 2020

Quase mil candidatos do ES mudaram declaração de cor para a eleição de 2020

Cerca de 41% alteraram a declaração de branco para negro, mas há também, em menor quantidade, quem tenha feito o caminho contrário, mudando de negro para branco. Este ano, pretos e pardos terão garantida uma parcela do fundo eleitoral

Publicado em 2 de outubro de 2020 às 06:45

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Reportagem sobre mudança na autodeclaração
Definição sobre cor/raça fica a cargo do próprio candidato. (Pixabay)

Ao menos 921 candidatos que disputam os cargos de prefeito ou vereador no Espírito Santo mudaram a autodeclaração de cor/raça em relação à última eleição municipal. O número equivale a 27% dos 3.358 inscritos que concorreram em 2016 e participam novamente da disputa em 2020.

A maior parte das mudanças  – 41% do total – foi de branco para negro (preto ou pardo), mas há também quem tenha feito o caminho contrário, passando de negro para branco. O levantamento foi feito por A Gazeta com base nos dados obtidos no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e acessados às 12h de terça-feira (29). O cadastro de candidaturas é atualizado diariamente. 

Entre os candidatos que fizeram alterações na declaração, a maioria concorre ao cargo de vereador, mas há 38 que vão disputar as prefeituras, cinco deles na Grande Vitória. Os partidos que registraram mais alterações foram Republicanos, com 8,25% do total de candidatos que "mudaram de cor", PSB (8%) e PSDB (7,5%).

Esse movimento acontece no momento em que candidaturas negras têm sido impulsionadas por mobilizações na sociedade civil. Apesar de serem a maior parte da população, pretos e pardos – que juntos compõem o grupo de negros, de acordo com a classificação do IBGE– estão em menor quantidade em posições de poder e têm mais dificuldade para acessar esses espaços.

Mas há ainda um novo fator em jogo. Nas eleições deste ano os partidos serão obrigados a financiar campanhas eleitorais de pretos e pardos por meio da verba do fundo eleitoral. No início de setembro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski determinou que o dinheiro seja distribuído pelas legendas de forma proporcional à quantidade de candidatos negros.

Isso quer dizer que se um partido tiver 10% de candidatos negros, também 10% dos recursos devem ser destinados a eles. Se forem 30%, segue-se a mesma lógica.

A medida, que ainda tem caráter provisório, tem como objetivo ampliar o acesso das minorias raciais ao fundo eleitoral. Em muitos partidos, candidatos negros são deixados de lado e não recebem dinheiro para financiar campanhas. Sem verba, as chances de um candidato se eleger são menores.

Embora não seja possível atribuir as alterações de cor e raça à criação da cota financeira, para o professor de Direito Eleitoral da Faculdade Mackenzie, Alberto Rollo, parte delas pode ter sido feita com intuito de obter recursos por meio de uma autodeclaração falsa.

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Não são todos, mas provavelmente há uma parcela de candidatos que fez a migração de raça no registro eleitoral pensando em ter mais dinheiro para campanha e obter vantagens. Já vimos isso acontecer em cotas nas universidades

Alberto Rollo
Professor da Faculdade Mackenzie e especialista em Direito Eleitoral
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Outra razão que pode explicar esse movimento é o maior reconhecimento dos próprios negros a respeito de sua identidade étnico racial. De acordo com o sociólogo e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ Carlos Costa Ribeiro, muitos candidatos podem ter mudado a forma como se veem devido ao debate racial que vem sendo feito na sociedade.

“Historicamente os negros sempre foram marginalizados e havia uma espécie de incentivo da própria sociedade para que eles se embranquecessem. Quando começam a surgir campanhas antirracistas e ações afirmativas, essas minorias passam a assumir sua origem étnica com um sentimento de pertencimento."

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É natural que, com o aumento da representatividade, mais pessoas se reconheçam como negras

Carlos Costa Ribeiro
Sociólogo
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Em 2020, pela primeira vez desde que o TSE passou a contabilizar a raça dos candidatos, em 2014, pretos e pardos são maioria nas eleições no Espírito Santo. No entanto, eles ainda estão em menor quantidade na corrida pelo cargo de prefeito. Isso se dá, sobretudo, pela falta de incentivo dentro dos partidos, muitas vezes comandados por pessoas brancas.

Até as 16h30 de terça-feira (29) haviam sido registradas 12.271 candidaturas, sendo 6.433 de pessoas negras (52%) e 5.421 de pessoas brancas (44%). Em 2016, dos 10. 462 candidatos inscritos, 5.264 eram brancos (50%) e 4.982 eram negros (49%).

DE BRANCOS PARA NEGROS

Dos 921 candidatos que modificaram a autodeclaração no registro eleitoral, 377, ou seja, 41% deles se consideravam brancos em 2016, mas em 2020 se declararam negros. Dentro desse grupo, 22 candidatos (2%) declararam-se pretos e os outros 355 (39%) pardos. 

Entre os nomes identificados pela reportagem há candidatos a prefeito nas quatro maiores cidades da Grande Vitória: Fábio Duarte (Rede) na Serra, o deputado estadual Capitão Assumção (Patriota) em Vitória, o vereador Celso Andreon (PSD) em Cariacica; e o atual prefeito de Vila Velha, Max Filho (PSDB). Todos eles alegaram erro no registro deste ano e disseram que já solicitaram a correção.

"O candidato não preenche esses dados, são as próprias pessoas do partido. Não sei quem preencheu na primeira vez e não sei quem preencheu agora", alegou Fábio Duarte.

Capitão Assumção também disse que não foi o responsável pelo preenchimento e que “jamais faria uma autodeclaração falsa para obter vantagem no processo eleitoral”. “Não me considero nem pardo e nem branco, a minha autodeclaração é indígena por causa da minha ascendência. Já pedi para retificar”, declarou.

Celso Andreon disse que houve um equívoco no preenchimento das informações do sistema. “Já estamos providenciando a correção e manteremos a declaração como branco, como sempre foi.”

Sobre o registro de Max Filho, a presidente do PSDB em Vila Velha, Neymara Carvalho, informou que houve um erro no momento do cadastro da candidatura do prefeito. “Já pedimos para consertar, foi um erro. Max se autodeclara branco, é isso que está na certidão de nascimento dele”, afirmou.

DE NEGRO PARA BRANCO

O caminho oposto foi feito por 32% dos candidatos: 303 concorrentes se autodeclararam negros em 2016 e passaram a brancos em 2020. Dentro desse grupo, 13 candidaturas passaram de pretos para brancos (1%). A maior mudança foi de pardos para brancos (31%), com 290 candidatos nessa situação. Um deles é do deputado estadual e candidato a prefeito de Vitória Fabrício Gandini (Cidadania).

De acordo com a assessoria do parlamentar, houve erro na autodeclaração de 2016, quando Gandini foi registrado como pardo. Essa informação foi corrigida em 2018, quando ele se candidatou e foi eleito deputado estadual. “O registro foi feito de forma equivocada e depois ajustado. Gandini se declara branco”, disse a assessoria por nota.

Para Alberto Rollo, é difícil dizer o que pode ter levado os candidatos a realizar a alteração, mas ele não descarta a possibilidade de erro, justificada pelos candidatos.

“Quem preenche esses pedidos costuma ser o partido, é possível que alguém tenha errado na hora de preencher ou fez uma percepção do que ela acha que a pessoa é”, afirma.

Houve ainda 23% de candidatos que alteraram a cor/raça de pardo para preto ou preto para pardo, o que não representa nenhuma mudança do ponto de vista de distribuição de recursos eleitorais e nem mesmo na classificação do IBGE, mas que, segundo Costa Ribeiro, chama atenção para uma questão de percepção racial.

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Quem tem autoridade para dizer quem é ou não negro? O que é pardo, o que é preto, o que é branco? Não acho que seja uma relação tão fácil de ser estabelecida

Carlos Costa Ribeiro
Sociólogo e professor da UERJ
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“Essa questão de identidade é bem delicada, porque parte de diferentes percepções e como a pessoa se enxerga. E isso leva em conta não apenas a cor da pele, o fenótipo, mas o contexto social, que precisa ser considerado nesta análise", complementa.

Nesse sentido, a autodeclaração pode ser um desafio para a Justiça Eleitoral na identificação de fraudes para obter recursos do fundo eleitoral. Isso porque a decisão do STF não estabelece critérios para a cota financeira. É o candidato que vai dizer se ele é branco, negro, indígena ou amarelo, com base na percepção dele. Para Rollo é necessário uma definição da legislação para cuidar dessa questão, que hoje não é clara no Brasil.

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A cota financeira para negros é um avanço para corrigir distorções do passado. No mérito, eu acho justo, mas do ponto de vista teórico é absurdo, porque não há critérios na autodeclaração

Alberto Rollo
Especialista em Direito Eleitoral
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"Uma autodeclaração vai ser considerada falsa baseado em quê? Em uma foto? E essa análise vai ser feita por quem? Isso ainda não sabemos. É necessário uma lei para estabelecer isso", finalizou. 

Apesar de ainda haver muitas dúvidas a respeito dos critérios que serão usados para classificar uma autodeclaração como falsa, Rollo explica que a fiscalização será feita pela própria Justiça Eleitoral, no momento de prestação de contas de cada candidato. Assim, caso seja confirmada a fraude, o candidato pode ter que devolver o dinheiro do fundo eleitoral e também responder criminalmente por isso.

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