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Publicado em 18 de agosto de 2025 às 18:52
Juiz criminal há quase 30 anos e professor universitário de Direito Penal, Carlos Eduardo Ribeiro Lemos está numa cruzada contra o terrorismo imposto por facções no país. Apesar de suas credenciais, não é dele a caneta que pode escrever as mudanças no cenário de conflitos entre grupo criminosos, como os registrados, mais recentementes em Vila Velha, ou nos episódios em comunidades de Vitória, ou mesmo no interior. O magistrado propõe alterações na legislação federal, mas esse papel cabe aos deputados e senadores. E Carlos Eduardo deixa claro que é necessária a mobilização da sociedade para que a classe política seja mais célere em sua atuação. >
No entanto, Carlos Eduardo usou sua caneta para escrever o livro "Terrorismo à brasileira. A guerra é real. A cegueira é legal", lançado na última quinta-feira (14) retratando a atuação dessas organizações criminosas, os riscos para o Espírito Santo — sim, o Estado pode vivenciar realidade do Rio de Janeiro em pouco tempo, se nada for feito — e a proposta de mudança na lei antiterrorismo, hoje vinculada a questões religiosas e políticas. >
Em entrevista para A Gazeta, o juiz, titular da 7ª Vara Criminal de Vitória, pontua alguns dos levantamentos que fez em dois anos de pesquisas e trabalho de campo que o ajudaram a mapear as facções e sustentar seu entendimento para a urgência na mudança da lei. Ele espera que o debate possa se fortalecer antes das eleições de 2026, independentemente de siglas partidárias. "Quando há domínio territorial de facções, não há democracia", ressalta. Confira! >
Foram dois anos de pesquisa, levantando informações e dados que eu tenho certeza que o leitor vai achar que eu tinha informação privilegiada, e não é. Tudo o que eu coloco, e provo no livro, está em alguns documentos oficiais, seja no Brasil, seja fora do Brasil, como também analisando notícias que saíram na mídia em algum momento. O interessante é que notícias que saíram, como não atraem a sociedade, não reverberaram. Saiu e parece que nunca saiu. Mesmo que a informação seja tão grave como em relação a uma facção, aquilo saiu, mas ninguém viu.
Então, isso me assusta porque eu vejo a sociedade hoje como se estivesse congelada, não entendendo o que está acontecendo. E (com o livro) esse é o meu objetivo: tentar mostrar essa realidade para que eles entendam e saibam cobrar dos seus representantes.
É o que a gente chama na filosofia de distopia, ou seja, a normalização da violência. Eu tenho usado uma frase em todas as entrevistas: o que é terrorismo em qualquer lugar do mundo, aqui no Brasil virou mais um dia comum, não nos incomoda mais. A gente ouviu que botaram fogo em ônibus com passageiros dentro, em qualquer lugar do mundo isso é terrorismo. Aqui, não, é um mero crime de dano. Então, a gente vê que está tudo errado. A sociedade hoje está acuada e as facções estão nadando de braçada, cada vez crescendo mais, protegidas pela omissão de todos.
Então, essa é uma situação que não incomoda. Essas notícias saem e não incomodam. Semana passada saiu a notícia que foram apreendidos quatro fuzis em Vitória e isso não chama a atenção da população. Apreendeu um fuzil, queimou um ônibus ali na Praia do Canto, na ponte. Não incomodam mais. A gente está vivendo uma distopia, a normalização da violência.
E nesses anos que vim pesquisando, eu fui muito ao Rio de Janeiro para conhecer aquela realidade, que é a pior do mundo em matéria de criminalidade com domínio territorial.
A gente tem tráfico de droga no mundo inteiro, ok. Mas domínio territorial, como as facções fazem no Brasil, não existe em nenhum lugar do mundo. E quando há domínio territorial, não tem democracia. Ou seja, aquela comunidade dominada pela facção é a que sofre, é o pobre que sofre, porque ali ele é obrigado a se submeter a tudo o que a facção determina.
A venda de drogas hoje é o menor dos lucros das facções. A exploração daquele território é o que dá muito dinheiro.
Tudo, tudo. Para se ter uma ideia, no Rio de Janeiro, 60% da energia elétrica produzida é furtada pelas facções, 60% de prejuízo para a companhia de produção de energia elétrica. Aí, você fala assim: ‘ah, mas, então, a facção furta e dá o gato para o morador’. Dá o ‘gato’ para o morador, mas cobra aquela energia, cobra o gato net, cobra tudo do morador. O gás na Rocinha (comunidade da periferia do Rio de Janeiro) é R$ 30 mais caro do que em Copacabana (zona Sul carioca). E o morador não pode comprar fora de lá. Ele é obrigado. A gente sabe que a facção é muito eficiente na aplicação da lei deles, né? Enquanto na nossa lei normal, eu estou expedindo uma intimação para chamar o cara, lá eles já executaram a pena.
Há muitos anos a gente passou por um erro muito grande na academia de falar que eram vítimas da sociedade, quase como uma ‘bandidolatria’. Isso não ajudou o país, a gente está chegando ao caos, a gente está virando efetivamente o narcoestado. Então, acho que o livro é um chamado à honestidade institucional do país, é um chamado à coragem dos nossos políticos para mudar a lei para que a polícia tenha ferramentas, o Ministério Público tenha ferramentas e o Poder Judiciário tenha ferramentas para tentar ajudar o país.
Eu fui várias vezes. Tenho muitos amigos no Rio de Janeiro e essas amizades me levaram a conhecer várias pessoas nas polícias. Eu acompanhei o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) em incursões em comunidades. Acompanhei a Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), que é a tropa de elite da Polícia Civil, em incursões nas comunidades. Acompanhei dentro dos blindados da polícia e vi realidades que são muito surreais. Vou te dar um exemplo:
Eu estava no ‘caveirão’ (nome popular de carro blindado usado pela polícia) com a Core, entrando na comunidade, e o policial me falou assim: ‘doutor, nós vamos entrar aqui, o senhor vai ver que eles fizeram uma passarela e ali ficam três caras com fuzis vigiando a entrada da favela. Quando eles vêm a gente, eles se escondem na proteção que eles têm, nas barricadas que eles têm e a gente vai passar embaixo deles.’ Eu falei: ‘Como assim?’ Entramos na rua, eu vi os três caras de fuzil, eles entraram para a proteção deles e o caveirão passou.
Nós passamos a um metro e meio, dois metros deles apontando o fuzil para a gente, o caveirão apontando o fuzil para eles e fomos embora como se nada tivesse acontecido. Em qualquer lugar do mundo, se um indivíduo aparece com um fuzil — na Champs-Élysées (Paris), no Central Park (Nova York) —, esse cara vai ser abatido em defesa da sociedade. Aqui, não, a nossa cultura jurídica deturpada, nessa ‘bandidolatria’, o entendimento é que o policial só pode atirar se ele atirar no policial antes.
Isso não existe em nenhum lugar do mundo. Então, está tudo distorcido na nossa legislação e eu quero fazer um alerta para que as pessoas entendam os problemas e que exijam dos seus representantes — deputados federais, senadores e presidente da República. E mais, independentemente de partido. Aqui não tem nenhuma questão partidária. Eu acho que todos tinham que comprar essa lógica sobre a necessidade de mudar a nossa legislação.
Elas não podem fazer nada porque as facções têm uma lei muito forte, que é a lei do silêncio. Se aquele morador da comunidade reclamar da facção, amanhã ele está morto, a família dele está morta. Então, na verdade, a gente tem que resgatar essas pessoas da comunidade atuando contra as facções.
Uma coisa que quero chamar sempre a atenção da sociedade: há comunidade no Rio de Janeiro que tem 1.500 fuzis. São mais fuzis do que os batalhões da polícia ao redor.
No Espírito Santo, nós ainda estamos numa situação em que a polícia capixaba entra em qualquer comunidade, mas eu provo no livro que, o que acontece no Rio de Janeiro, é questão de tempo para chegar aqui. A logística do crime lá vem sendo trazida para cá há anos. E o que acontece lá hoje, se nada for feito, em mais 10 anos, nós vamos estar aqui na Grande Vitória tendo que sair dos nossos carros na Leitão da Silva, deitar no chão, esperar acabar a troca de tiro de fuzil, igual acontece na Linha Amarela (via expressa no Rio).
Eu fiz alguns levantamentos de dados que provam isso. Em 2010, a gente não teve nenhum fuzil apreendido em Vitória. Fechamos 2024 com 19 fuzis e 280 submetralhadoras e metralhadoras, ou seja, quanto mais a gente demora para tirar essas armas de guerra dessas comunidades, pior vai ser. Se hoje tem um efeito colateral, daqui a 5 anos vai ter 5 vezes mais esse efeito colateral. Acho que chegou o momento do Estado Brasileiro pensar com a clareza necessária da urgência de resgatar essas comunidades dominadas pelo tráfico.
Eu vejo o seguinte: a gente tem um silêncio ensurdecedor por parte dos nossos políticos e acho que é um silêncio muito suspeito. Interesses existem nesse sentido e eu provo no livro. As facções hoje estão em bancadas (parlamentares) e essas bancadas estão crescendo.
Em 2023, o PCC (Primeiro Comando da Capital - com origem em São Paulo, mas já com ramificações internacionais) movimentou R$ 8 bilhões para eleger políticos no interior de São Paulo, financiando campanhas políticas, ou seja, o PCC hoje tem prefeituras. E quando tem prefeituras, a facção explora a limpeza urbana, o transporte público, o posto de gasolina e só vai crescendo sob a omissão de todos nós. O problema está ficando realmente cada vez maior e vai engolir a todos.
A minha proposta é a modificação na lei antiterror. Teremos várias outras a fazer, mas na lei antiterror especificamente. Em qualquer lugar do mundo, terrorismo é matar, impor medo, aterrorizar a sociedade por qualquer interesse. O mundo conceitua terrorismo pelo resultado danoso para a comunidade. No Brasil, não.
A nossa lei antiterror vincula as ações a ideologias políticas ou religiosas, em síntese. Mas as facções não fazem nada por ideologia política ou religiosa, elas fazem por domínio territorial e ganho de capital. Então, tudo de mais aterrorizante que essas facções fazem não se encaixa na lei. E aí a nossa lei fica absolutamente vazia. Eu costumo dizer para os meus alunos que é um sino sem badalo. É um Instagram sem internet.
Para se ter uma ideia da disfunção da lei, se hoje eu fizer uma pichação no muro que sou a favor do Estado Islâmico, isso é terrorismo, com pena de até 18 anos, 8 anos, 15 anos. Mas, se eu boto o fogo em 75 ônibus em um dia, isso não é terrorismo, isso é um dia normal no Brasil. Se eu mato um juiz, como o PCC fez em São Paulo (Antônio José Machado Dias, em março de 2003), isso não é terrorismo.
Em qualquer lugar do mundo, quando uma facção mata um juiz, é terrorismo e as penas são muito mais altas. Os regimes iniciais são sempre fechados e eu consigo prender esses membros de facção sem ter que provar outros crimes. Basta ele ter causado esse terror. Então, facilitaria muito as polícias a agirem sem falar que teríamos muito apoio internacional.
Uma das coisas que a gente precisa no Brasil, quando o Estado for tomar as armas de guerra das facções, é o trabalho de inteligência. A polícia tem que fazer um trabalho muito bom de inteligência para ir aos locais certos e não correr o risco de levar problemas para a comunidade por sair a ermo caçando esses marginais. Então, a gente teria apoio internacional e acho que seria bom país em todos os sentidos.
Já tivemos um projeto de lei, isso só não ecoa, não vai à frente, sempre para. A gente vê a reforma do Código Penal está no Congresso Nacional parada há 15 anos. Só que a gente não pode esperar mais. O Estado está sendo engolido pelo narcotráfico. Na verdade, são de narcoterroristas, como em qualquer lugar do mundo, as ações que fazem aqui. Então, a primeira lei a ser modificada é a antiterror. Depois, todo o resto tem que ser feito. Nossa legislação é extremamente fraca, laxista, não permite a polícia trabalhar direito, não permite o Ministério Público atuar direito e não me permite ser mais justo.
Quando uma facção sai atirando a ermo, só para mostrar para a comunidade que tem o domínio territorial, isso não pode ser um crime comum. Isso é terrorismo. Só que é terrorismo desde que a gente mude a lei. É um absurdo o que está acontecendo, a gente não pode deixar isso acontecer. O Espírito Santo é um pequeno Rio de Janeiro. A nossa geografia é a mesma. Então, é muito fácil implantar a logística das facções que operam no Rio há décadas aqui no Espírito Santo. E isso vem sendo feito. Corremos o risco realmente de nos tornarmos um Rio de Janeiro. Lá teve um problema maior que foi todo o envolvimento da política com a com o crime organizado, os últimos cinco governadores foram presos.
O Espírito Santo não, nós estamos numa situação muito confortável. O Espírito Santo hoje é um Estado que está financeiramente equilibrado. Os investimentos de segurança pública feitos nos últimos anos foram espetaculares. Nossas polícias estão bem treinadas e bem equipadas. Só que não adianta a gente fazer o nosso trabalho só aqui. Isso tem que vir de lá para cá para cessar a vinda do crime para o nosso Estado.
Meu sonho é que a bancada federal capixaba compre esse discurso e consiga convencer nacionalmente. Vamos começar aqui no Espírito Santo o movimento contra as facções e vamos convencer o país todo a fazer isso. Só a bancada federal pode fazer, não sou eu. É um chamado para que a bancada participe disso.
Muito. Como eu falei, o crime já tem bancada, não podemos deixar ela continuar crescendo, né? As facções hoje fazem aqui e copiam o que as facções que fizeram na Colômbia. Durante a guerra que existia na Colômbia, entre Estado e as Farc (Forças Revolucionárias Armadas da Colômbia), em que morreram mais de 30 mil pessoas, a negociação feita foi para que as Farc se tornassem um partido político e hoje têm mais de 40% dos assentos do parlamento colombiano. Então, é isso que as facções tentam fazer aqui há muito tempo.
O PCC tentou autorização para transformar a facção em um partido político — o partido da comunidade carcerária — como se fosse algo bom para tentar defender os oprimidos, mas, na verdade, é uma facção tentando ter mais domínio político ainda sobre tudo que acontece no país. A gente tem que ficar alerta.
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