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Estupro conjugal: mulheres têm dificuldade de identificar abusos do parceiro

Estupro conjugal: mulheres têm dificuldade de identificar abusos do parceiro

Esse tipo de violência sexual é cometida por marido, namorado ou companheiro fixo. Apesar da ausência de consentimento, muitas vítimas não se dão conta no momento que foram violentadas

Publicado em 27 de setembro de 2022 às 14:51

Ícone - Tempo de Leitura 9min de leitura
Violência contra a mulher
Mulher em situação de medo: dúvidas e falta de informações. (Pixabay)
João Vitor Castro*
Curso de Residência em Jornalismo / [email protected]

“Eu não soube lidar com o fato de você ter transado com outro cara, eu queria mostrar que você era só minha.” Foi assim que o ex-namorado de Paloma (nome fictício) respondeu ao ser confrontado com a acusação de estupro, dois meses após o ato. Esse foi o tempo que ela demorou para perceber que havia sido vítima de um estupro conjugal ou marital. Esse crime, previsto na Lei Maria da Penha, ocorre quando a violência sexual é praticada pelo companheiro.

Paloma, que preferiu não ter o nome verdadeiro divulgado, só percebeu ter sido vítima de um estupro ao fazer um boletim de ocorrência contra o ex-parceiro, após seu companheiro tê-la asfixiado. No questionário, ela precisou marcar se já havia praticado sexo sem consentimento. Nesse momento, caiu a ficha, e ela marcou “sim”. “O pior é que eu estava na delegacia, conversando com uma menina que tinha sofrido agressão doméstica também, e falei: ‘Caramba, acabei de me dar conta de que fui estuprada’. Ela perguntou como, e eu falei: ‘Fiz sexo sem ser consensual’. E ela respondeu: ‘Meu Deus! Eu também fui, então’”, conta Paloma.

Embora pouco denunciado, o estupro conjugal não é um fenômeno tão raro. Dados do Balanço Ligue 180 de 2019 indicam que 0,5% dos estupros foram praticados pelo companheiro e 0,4%, pelo ex-companheiro (como no caso de Paloma). Contudo, os índices podem ser subnotificados, pois 34,5% das vítimas não informaram quem foi o agressor. além da dificuldade de muitas mulheres perceberem que foram estupradas pelo parceiro.

Um relatório um pouco mais antigo, de 2014, aponta que 9,3% dos abusos sexuais sofridos por mulheres no Brasil são praticados pelo marido e 1,6%, pelo namorado. É o documento “Estupro no Brasil, uma Radiografia Segundo Dados da Saúde”, divulgado pelo Instituto de Pesquisa e Ensino Avançado (Ipea). Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, cerca de 14,4 mil mulheres foram estupradas no país em 2021. Quase 80% delas conheciam o agressor. No Espírito Santo, foram 299 vítimas.

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A questão do estupro conjugal é que você tem um vínculo com aquela pessoa, você ama, tem um carinho por ela, e é mais difícil ver quando você tá sofrendo uma violência. Aí você fica arrumando desculpas pra dizer ‘ele me ama, foi um erro, todo mundo erra’. Mas as nossas vontades têm que ser respeitadas. É violência sim e a partir do momento que você não quer você não tem que ser obrigada a fazer.

Paloma (nome fictício)
Denunciou estupro conjugal
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DIFÍCIL IDENTIFICAÇÃO

Para Hylanara de Alcântara, mestranda em Psicologia que estuda temas ligados à violência contra a mulher, os índices se devem à dificuldade de muitas vítimas identificarem que determinada situação foi estupro. Segundo ela, construções históricas e sociais levam a entendimentos sobre os papéis do homem e da mulher dentro de uma relação. Com isso, comportamentos abusivos podem muitas vezes ser considerados normais.

Por falar em construções históricas, foi apenas em 2005 que o Código Penal brasileiro aboliu a possibilidade de um estuprador não ser punido se fosse casado com a vítima. Até então, se um agressor violentasse sua esposa ou se casasse com a mulher que ele estuprou, sua pena seria aliviada. Isso ainda ocorre em 43 países, segundo o relatório de 2021 sobre a Situação da População Mundial do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).

A psicóloga acrescenta haver uma percepção errônea do que é consentimento: “Por mais que muitas pessoas achem que a ausência do ‘não’ já é um ‘sim’, a gente também consegue expressar corporalmente esse ‘não’. A partir do momento que a pessoa não deu uma afirmativa, precisa de um tempo para pensar ou falou o primeiro ‘não’, é não”.

Residência
Para a psicóloga Hylanara de Alcântara, falta clareza sobre o conceito de consentimento. (Acervo Pessoal)

A defensora pública Laís Ribeiro, que atua no Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Espírito Santo, completa definindo consentimento como “manifestação livre da vontade, sem nenhum tipo de pressão, constrangimento ou coação”.

No caso de Paloma, o “não” foi dito pelo menos seis vezes. Ainda assim, o ex-namorado se sentiu no direito de desrespeitá-la. “Eu sou muito gentil, eu realmente não brigo com ninguém e eu meio que sou submissa nessas situações. Mas eu falei: ‘Eu não quero, caramba, que p* é essa que você não está me respeitando? Eu não quero. Você não entende que eu não estou bem?’. Eu falei isso e ele falou: ‘Tudo bem’. Aí passaram-se cinco minutos, e ele tentou de novo”.

Ela acrescenta: "Ele nunca tinha feito nada comigo, não pensei que iria fazer, né? E aí eu cheguei na casa dele e eu estava exausta, eu tinha feito muita coisa no dia, e eu já cheguei falando: ‘Olha, eu não quero transar, eu não estou bem, eu não quero’. Eu fui bem clara".

Após mais insistência, Paloma cedeu. A jovem conta que o ato ocorreu e, em seguida, ela ficou profundamente abalada. “Eu só comecei a chorar, eu me senti usada, eu me senti um pedaço de carne, eu me senti violentada. O meu consciente não tinha processado que era um estupro, ainda, mas meu subconsciente com certeza processou, porque eu fiquei muito abalada, muito triste”, relata.

Ainda assim, ela duvidou da própria percepção: “Eu pensava ‘pô, mas estupro? Eu sempre transei com ele, eu gosto dele, como que isso é estupro?’”. A psicóloga Hylanara de Alcântara explica que essa dúvida é frequente e que muitas vezes pode vir com um sentimento de culpa. “Alguns estudos apontam que existe essa questão da culpabilização, principalmente por como a sociedade entende o estupro. Então por vezes é comum que a vítima acabe se culpando ou entendendo que de certa forma ela acabou contribuindo para aquele ato”, elucida Alcântara.

A defensora pública Laís Ribeiro considera que a dificuldade de identificação do estupro conjugal também se deve à ideia de que, num casamento ou namoro, a mulher tem obrigação de transar. “É necessário ter uma mudança de cultura, de mentalidade, de entendimento do que é um crime e de quais são realmente as obrigações conjugais”, defende ela.

Residência
A defensora pública Laís Ribeiro vê os papéis sociais de gênero como fatores que dificultam a identificação do estupro. (Acervo Pessoal)

A psicóloga Hylanara de Alcântara acrescenta nesse “mix opressor” a concepção errônea de que o estupro só acontece em locais escuros e com o ataque de desconhecidos, o que é falso, tendo em vista os números anteriormente apresentados.

Para Paloma, o fato de casais transarem com frequência dificulta a identificação quando um parceiro ultrapassa um limite e pratica o estupro. “A própria sociedade faz você duvidar dos seus pensamentos, porque sempre tacham a mulher como louca, como errada, e você fica assim: ‘Será que foi mesmo?’. Ninguém fala muito sobre isso, é um tabu, né? Então você acaba ficando meio desamparada”, afirma.

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Eu sinto que é muito normalizado, é um machismo muito enraizado, muito naturalizado. E é confuso até pra mim, que me considero feminista, que leio sobre a causa. Quando aconteceu comigo eu achei difícil de identificar como estupro. E quando eu percebi que era estupro eu fiquei duvidando da minha cabeça.

Paloma (nome fictício)
Denunciou estupro conjugal
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Alcântara acrescenta o medo de represálias como outro fator que inibe a mulher de denunciar. Ela e Ribeiro avaliam também que a vergonha e o temor de julgamentos sociais também contribuem para o silêncio. Somado a isso, a psicóloga observa que muitas vezes a mulher se preocupa com o que acontecerá com o agressor, pois tem a intenção de continuar a relação, devido ao afeto e à falta de clareza sobre a violência sofrida. No caso de casais que estão juntos há mais tempo ou possuem filhos, isso é ainda mais delicado.

“É lidar com a culpa muitas vezes, com aqueles sentimentos que ela não sabe muito bem discriminar, entender o que ela está sentindo em relação àquilo que ocorreu, mas também de certa forma lidar com o social. ‘O que as pessoas vão falar ou o que vão pensar sobre mim, como isso vai se dar dentro da minha relação?’. É uma série de fatores que, muitas vezes, recaem sobre a mulher, e não sobre o perpetrador da violência”, resume Alcântara.

Além disso, Ribeiro afirma que, apesar de também ser praticado de forma isolada, o estupro conjugal é frequentemente acompanhado de outras formas de violência, como a psicológica e a moral. “São aquela imposição de papéis e aquele menosprezo pelo papel da mulher, aquela imposição de que o homem tem poder na relação e por isso a mulher tem que se submeter a ele”, explica.

DENÚNCIA

Segundo a defensora pública Laís Ribeiro, não há uma tipificação penal específica para o estupro conjugal, mas há os crimes de estupro e violência doméstica. “O estupro conjugal é uma violência doméstica, uma violência sexual. É forçar alguém a praticar um ato sexual, não necessariamente o sexo, mas o ato libidinoso, seja ele qual for”, explica.

Ribeiro explica que a Lei Maria da Penha prevê cinco tipos de violência: física; psicológica; moral; patrimonial; e sexual: “Estando presente uma dessas, já configura violência doméstica e a mulher pode tomar as providências que a lei a assegura”. Nesse caso, a vítima deve se dirigir a uma delegacia especializada da mulher, onde será registrado o boletim de ocorrência.

Em seguida, será averiguada a sua situação e, se necessário, vão ser oferecidos os serviços disponibilizados para vítimas de violência doméstica, como a casa-abrigo, se houver risco de morte. Além disso, se for feito o requerimento de medida protetiva, a própria delegada já encaminha o pedido para os órgãos responsáveis. Também é aberta uma investigação para apurar o crime de estupro, que pode levar a uma denúncia pelo Ministério Público.

SUPORTE

A psicóloga Hylanara de Alcântara explica que nesse momento a mulher precisa contar com uma forte rede de apoio, além de acompanhamento psicológico. É importante evitar o julgamento e não falar contra o abusador. “No primeiro momento, é muito difícil falar contra o agressor, porque ela está dentro de uma relação em que provavelmente existe afeto. Então, falar contra o agressor para a vítima é muitas vezes uma forma de afastá-la”, orienta.

De acordo com Alcântara, o primeiro gesto deve ser de acolhimento, para que a mulher se sinta segura e confortável para fazer e não retirar a denúncia. Ela deve sentir que está sendo ouvida, não julgada: “O julgamento é o principal que faz com que a mulher acabe retirando a queixa ou não contando para outras pessoas. Esse medo de ser culpabilizada por algo que ela nem entende muito bem o que está acontecendo”.

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O principal é gerar esse acolhimento, prestar socorro quando necessário e conversar com essa mulher, tentar fazer com que ela entenda, dentro das possibilidades dela naquele momento, que não é culpa dela e que ela tem total direito de recorrer a algum tipo de órgão público

Hylanara de Alcântara
Psicóloga
Aspas de citação

ONDE DENUNCIAR

A mulher vítima de violência pode buscar as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), unidades especializadas da Polícia Civil. Além disso, as delegacias comuns também possuem núcleos ou postos de atendimento à mulher. Há ainda os Centros Especializados de Atendimento à Mulher ou Centros de Referência, espaços de acolhimento, atendimento psicológico e social, orientação e encaminhamento jurídico.

Contudo, para solicitar medidas protetivas, não é mais necessário ir até uma Delegacia da Mulher e fazer o boletim de ocorrência. Essa solicitação pode ser feita on-line, no site da Defensoria Pública . A defensora Laís Ribeiro explica que o atendimento ocorre no dia útil seguinte após o preenchimento do formulário. O trabalho é executado “por uma defensora que vai prestar as orientações e vai fazer o requerimento independentemente de ter o boletim de ocorrência”.

Se você sofreu ou conhece alguém que foi vítima de violência doméstica, ligue 180. A Central de Atendimento à Mulher registra e encaminha denúncias de violência aos órgãos competentes, além de fornecer informações e orientações. A ligação é gratuita e anônima, e a Central funciona 24 horas em todo o Brasil.

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João Vitor Castro é aluno do 25º Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta. Esta matéria teve a orientação da editora do programa, Andréia Pegoretti.

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