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Entenda por que torcedor do Flamengo responde por crime de importunação sexual contra repórter da ESPN

Entenda por que torcedor do Flamengo responde por crime de importunação sexual contra repórter da ESPN

Marcelo Benevides Silva beijou Jéssica Dias à força em transmissão ao vivo do Maracanã e pode pegar até 5 anos de prisão

Publicado em 20 de setembro de 2022 às 13:19

Ícone - Tempo de Leitura 7min de leitura
Eduarda Moro
Curso de Residência em Jornalismo / sem-email-cadastrado

Enquanto o Brasil comemorava o bicentenário da Independência no último dia 7 de setembro, uma mulher teve a autonomia e o exercício profissional impedidos em rede nacional naquela noite. A repórter da ESPN Jéssica Dias foi beijada à força por um homem que vestia a camisa do Flamengo durante a entrada ao vivo na semifinal da Copa Libertadores da América, do lado de fora do Maracanã. O  rubro-negro foi indiciado por importunação sexual, crime tipificado recentemente no Direito Penal brasileiro e ainda alvo de debates jurídicos.

Repórter Jéssica Dias, da ESPN, foi assediada durante a transmissão da partida entre Flamengo e Vélez
Jéssica disse em seu post: “Eu sofri importunação sexual enquanto trabalhava, e isso é crime. Eu não queria beijo, não queria carinho, não queria passar três horas em uma delegacia. Eu só queria trabalhar”. (Reprodução / Twitter)

Para algumas pessoas, pode ser um simples beijo, mas, além de ser um ato invasivo, assim como apalpar, “encoxar”, tocar nas partes íntimas, lamber, masturbar-se e ejacular em público, é crime.

A importunação sexual acontece quando alguém, independentemente do gênero, pratica ou tem um comportamento que tenha finalidade de satisfazer um desejo sexual, sem o consentimento da vítima. Por esse motivo, o torcedor do Flamengo foi autuado.

Estatísticas apontam que a forte presença da violência contra a mulher. Pesquisa divulgada no último dia 12 de setembro revela que 45% das mulheres no país já tiveram o corpo tocado sem consentimento em locais públicos. O levantamento foi feito pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), em parceria com o Instituto Patrícia Galvão e com apoio da Uber. Ele integra o estudo “Percepções sobre controle, assédio e violência doméstica: vivências e práticas”, que busca compreender a forma como os brasileiros enxergam a importunação sexual, assédio e outros temas.

Conforme explica a advogada Camila Rufato, especialista em Direito da Mulher, essa atitude era antes considerada uma contravenção penal – infração pouco grave –, penalizada com, no máximo, uma multa. “A criminalização desse ato só se deu após um episódio amplamente divulgado na mídia, no qual um homem ejaculou em uma jovem dentro de um ônibus, em São Paulo, e ficou impune”, conta.

Ainda de acordo com Camila, também idealizadora do projeto Direito Dela, iniciativa que conecta advogadas da mulher de todo o país, é importante entender quais são as especificidades dos crimes de importunação sexual, estupro e assédio sexual. Embora todos os três consistam no atentado à liberdade sexual, é fundamental reconhecê-los para evitar que casos de violência como esses fiquem sem punição.

Entenda as características das outras agressões semelhantes:

  • Aspas de citação

    “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.” Pena: detenção de um a dois anos. A questão hierárquica não é necessária no crime de importunação sexual, que pode ocorrer entre quaisquer dois ou mais indivíduos, ainda que sejam desconhecidos. Além disso, o assédio prevê uma pena menor, de um a dois anos de prisão, enquanto a importunação prevê prisão de um a cinco anos.

    Aspas de citação
  • Aspas de citação

    “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Pena: reclusão de seis a dez anos. A diferença principal é que a importunação não exige o uso de violência nem de grave ameaça. Já o estupro é considerado um crime hediondo – que causa repulsa, é inafiançável e não pode receber qualquer tipo de perdão do poder público – e, por isso, a pena é mais alta.

    Aspas de citação

Fonte: Manual Elas no Ônibus

A advogada frisa que o conhecimento é empoderador. “É essencial que nós, mulheres, conheçamos os nossos direitos e cada uma das previsões legais para que possamos buscar a efetivação deles de forma potente. Infelizmente, além de lidarmos com os crimes contra nossa liberdade sexual, também temos de enfrentar a violência institucional que nos revitimiza”, ressalta.

ENTENDA O CASO

Em depoimento à polícia, a jornalista Jéssica Dias contou que Marcelo Benevides Silva, torcedor que a assediou, já vinha molestando-a antes do ao vivo, com xingamentos e beijos no ombro. Quando ela entrou no ar, o agressor beijou novamente o rosto e o ombro dela sem consentimento e passou a mão pelas costas até a região das nádegas. Em seguida, a equipe de reportagem da emissora interveio e segurou o torcedor.

Marcelo, que estava acompanhado do filho de 17 anos, foi preso em flagrante. Na audiência de custódia, o Juizado Especial Criminal manteve a prisão e converteu-a em preventiva. No dia seguinte, 8 de setembro, ele foi transferido para a Cadeia Pública José Frederico Marques, na Zona Norte do Rio de Janeiro.

Nessa mesma data, foi solto e agora responde pelo crime de importunação sexual em liberdade. No alvará de soltura, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) determinou que, para que isso não ocorra novamente, Marcelo está proibido de sair do Rio sem autorização judicial, de ter contato com a vítima e com as testemunhas e de presenciar jogos em que o Flamengo participa enquanto perdurar o processo. Essa é a última atualização fornecida ao site A Gazeta pela assessoria do TJRJ até o fechamento desta reportagem.

Ainda no dia 8, a repórter fez um desabafo em perfil de uma rede social e explicou o que aconteceu. "Foi só um beijinho no rosto. Não. Não foi. Antes vieram muitos xingamentos e importunação, porque o ao vivo demorava. Pedi calma e para que ele não ficasse xingando, não precisava", escreveu Jéssica. 

Em vídeo cedido ao UOL Esporte, o advogado de defesa de Marcelo, Thiago José, afirmou que seu cliente “não cometeu crime”. “Aquele beijo foi um beijo fraternal. Um beijo de torcedor, um beijo de um admirador, de uma pessoa que admira a equipe da ESPN. O meu cliente acompanha o trabalho da reportagem da ESPN. Então, naquele momento de interação, ele sentiu o momento dele de participar. Mas participar com felicidade, sem agredir, sem causar problema, gerar dano, sem conduta dolosa”.

Ainda segundo o advogado, seu cliente é inocente. “Aquele beijo foi um beijo simples, sem dolo, sem intenção, sem maldade. Meu cliente é uma pessoa boa. Nós vamos provar a inocência dele”. A reportagem está tentando entrar em contato com o advogado para maiores informações.

IMPORTUNAÇÃO SEXUAL NO COTIDIANO

Casos de importunação são relatados todos os dias por vítimas desse crime. Letícia (nome fictício) passou por duas situações em que sofreu importunação sexual entre 2018 e 2019. O primeiro episódio foi durante o carnaval: “Estava passando por um bloco de rua até que chegou um homem atrás de mim e me ‘encoxou’ com tanta força que até cambaleei. Ele disse gostosa no meu ouvido. Logo ele saiu e fiquei paralisada, apertando forte a mão do meu namorado, que estava comigo na hora”, diz ela, que prefere não revelar o nome verdadeiro.

Ainda na mesma época, sofreu mais uma importunação, desta vez no ônibus. Ela estava sentada na cadeira voltada para o corredor, conversando com uma amiga por mensagem. Um homem ao lado segurava a barra de metal acima dele. “Esse cara esbarrou em mim, mas imaginei que era porque tinha muita gente. De repente, ele começou a esfregar a parte íntima dele no meu braço, por mais que eu chegasse para o lado para me afastar. Quando me toquei sobre o que estava acontecendo, ele já estava descendo, mas, antes de sair, ele se esfregou novamente em mim, só que com mais intensidade”, conta.

Os casos de importunação sexual são mais comuns de acontecer em transportes coletivos.
Os casos de importunação sexual são mais comuns de acontecer em transportes coletivos. Foto: Freepik. (Freepik)

Também no transporte público, Mylena Ferro, de 21 anos, relata que, quando o número de casos de Covid-19 ainda estava alto, ela foi importunada por um homem enquanto esperava um ônibus no Terminal de São Torquato, em Vila Velha, na volta do estágio.

“Estava na fila, nas marcações que tinham no chão para manter a distância recomendada, e esse cara estava atrás, sem máscara, quase colado em mim. Eu, educadamente, pedi para ele se distanciar e ele se enfureceu, começou a me xingar e disse que não iria se afastar. Falei que, se ele não voltasse para a marca do piso, eu iria chamar o segurança, até que ele resmungou e se afastou”, descreve Mylena.

Quando o coletivo chegou, a agressão continuou: “Na hora de subir a escada do ônibus, o homem colou em mim, apalpou minha bunda e perguntou se estava distante o suficiente. Então, eu saí quase correndo, meio sem conseguir pensar direito, mesmo sabendo que ia ter de esperar 30 minutos para outro chegar, tamanho foi o medo de ele me seguir ou marcar o ponto que eu desço, pois eu pegava a mesma linha, no mesmo horário, todo dia”, lembra.

As duas vítimas não foram à polícia denunciar os casos sofridos, apenas desabafaram com as pessoas mais próximas. Ambas relataram que não procuraram uma delegacia por não saberem a quem acusar e por não terem provas para apresentar. Também lamentaram que o estado de choque impediu-as de pedir ajuda na Justiça ou à polícia.

O QUE DIZ A LEI

De acordo com o artigo 215-A do Código Penal, importunação sexual é “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro".

O crime passou a ser tipificado pela Lei 13.718, de 2018, que estabelece causas de aumento de pena, como estupro coletivo e estupro corretivo – forma de controlar a orientação sexual ou identidade de gênero da vítima por meio da violação sexual.

Se a agressão ocorrer em um transporte coletivo, por exemplo, o recomendado é que a vítima peça ajuda aos outros passageiros e ao motorista do ônibus para que o infrator não fuja antes da chegada da polícia.

Também é importante que a vítima guarde todas as informações possíveis sobre o crime, como data, horário, local, testemunhas, características do agressor; e vá até a delegacia mais próxima para registrar um boletim de ocorrência.

As mulheres que são vítimas de importunação sexual devem denunciar em uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam). Se não houver na cidade, deve buscar uma delegacia comum, sempre que possível, acompanhada de família, amigos, testemunhas e advogados para assegurar seus direitos.

Outra opção é o Ligue 180, serviço de utilidade pública para o enfrentamento à violência contra a mulher. Ele recebe denúncias e encaminha o conteúdo dos relatos aos órgãos competentes.

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*Eduarda Moro é aluna do 25º Curso de Residência em Jornalismo. Este conteúdo teve orientação da editora de conteúdo do programa, Andréia Pegoretti.

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