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Prefeitura do ES não sabe se vai cobrar salários de vice que estava nos EUA

Prefeitura do ES não sabe se vai cobrar salários de vice que estava nos EUA

Vice-prefeito de Água Doce do Norte, no Noroeste do Espírito Santo, admitiu que estava morando há cerca de um ano e meio fora do Brasil, e só retornou porque o prefeito foi hospitalizado. Nesse período ele recebeu quase R$ 50 mil de salário líquido

Publicado em 15 de julho de 2020 às 21:24

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Prefeitura Municipal de Água Doce do Norte. (Sérgio Falcetti/Prefeitura Municipal de Água Doce do Norte)

Com a confirmação do vice-prefeito de Água Doce do Norte, Jacy Donato (PV), de que estava há "um pouco mais de um ano e meio" vivendo nos Estados Unidos, os salários de R$ 5.750 recebidos mensalmente por ele podem ser alvo de questionamento. Na esfera administrativa, entretanto, a prefeitura ainda não avaliou se tomará alguma providência.

Segundo lideranças ligadas à administração, alguma eventual medida só poderá ser tomada pelo prefeito, Paulo Márcio Leite (DEM), que ainda está internado em tratamento da Covid-19, e inclusive teve uma piora nesta quarta-feira (15), precisando ser intubado. O Ministério Público Estadual (MPES) também iniciou um procedimento para investigar se a conduta pode ser configurada como improbidade administrativa.

Durante o período de um ano e meio que Jacy ficou fora do país, ou seja, pelo menos em todo o ano de 2019, e nos seis meses de 2020, ele já recebeu, ao todo, R$ 97.750,00 de salário bruto. O valor equivale às remunerações até maio de 2020, a mais recente registrada no Portal da Transparência.

Em valores líquidos, Jacy recebeu R$ 2.693,88 por mês, e ao todo R$ 45.795,96, devido aos descontos de Previdência, Imposto de Renda e deduções de cunho pessoal. Ele não ganha 13º salário ou outras gratificações.

DEVOLUÇÕES

Jacy Donato afirmou para A Gazeta, na semana passada, que embora no Portal da Transparência do município constem os salários depositados mensalmente neste período em que ele esteve fora, foram feitos os empenhos, mas ele pediu para que não depositassem o pagamento. Ele não especificou por qual período, nem se seria o salário integral.

Já em entrevista à TV Gazeta, nesta terça (14), questionado sobre porque não abriu mão do salário quando estava fora, deu outra versão. "A lei diz isso. Não fiz nada, não agi nada contra a lei."

Segundo membros da prefeitura, não há registro de que já tenha ocorrido alguma devolução da remuneração pelo vice-prefeito.

O vice-prefeito foi procurado para comentar se pretende fazer algum tipo de devolução de salários, mas não foi localizado, pois ainda está sem número de telefone do Brasil.

Vice-prefeito de Água Doce do Norte,  Jacy Rodrigues da Costa (PV)
Vice-prefeito de Água Doce do Norte, Jacy Donato (PV). (Reprodução/WhatsApp)

A reportagem também questionou se a prefeitura pretende tomar alguma medida sobre os salários pagos a Jacy enquanto esteve ausente. O procurador-geral do município, Elyanderson Augusto Ferreira de Souza, afirmou que a abertura de algum procedimento administrativo disciplinar (PAD) precisa ser por iniciativa do prefeito.

"A administração ainda não está discutindo isso agora, pois o prefeito não está bem de saúde, e toda nossa atenção está voltada para isso. E também porque o Ministério Público já vai investigar a situação."

A secretária de Administração e chefe de gabinete do prefeito, Edilamar Dias, que estava coordenando a prefeitura nos últimos dias, até a chegada do vice no Brasil, reafirmou que não há impedimentos na lei para que Jacy tenha recebido os salários.

Questionada se ele trabalhava na prefeitura de alguma forma, à distância, a secretária explicou que não havia tarefas. "O vice-prefeito só atua quando é convocado. Quando não é, vai fazer o que? Acredito que não tenham medidas para a gente tomar", disse.

PROCEDIMENTO NO MPES

A Promotoria de Justiça de Água Doce do Norte já abriu um procedimento para investigar o fato de o vice-prefeito da cidade ter se afastado do município e, mesmo assim, ter mantido o recebimento dos subsídios. De acordo com o Ministério Público do Espírito Santo (MPES), o órgão está reunindo documentação para a instauração de um inquérito civil, e aguarda o retorno dos questionamentos feitos junto à Polícia Federal. 

O inquérito civil, que pode ser iniciado futuramente, visa colher evidências e provas a serem levadas à Justiça, por meio da apresentação de uma ação civil pública.

MEDIDAS NO LEGISLATIVO

A possibilidade de responsabilização do vice-prefeito por parte da Câmara Municipal possui previsão na Lei Orgânica da cidade, que prevê como competência exclusiva do Poder Legislativo "fiscalizar e controlar diretamente, os atos do Poder Executivo, incluindo os da Administração Indireta".

Os vereadores também podem "representar ao Ministério Público, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o vice-prefeito pela prática de crime contra a Administração Pública que tomar conhecimento".

O presidente da Câmara, Rodrigo Cigano (DEM), avalia que o Legislativo não tem nenhum mecanismo legal para forçar o vice a devolver os salários. "Não temos uma providência a tomar para obrigar ele a devolver. Se foi um recebimento imoral, aí é por conta dele. Hoje, como ele assumiu a prefeitura, está sob a nossa fiscalização", disse.

Está em tramitação na Câmara um projeto de Emenda à Lei Orgânica Municipal, para alterar a norma e determinar que o vice-prefeito só possa se ausentar do município por mais de 15 dias com a autorização do Legislativo, assim como é hoje para o prefeito. Ele deve ser pautado na sessão do dia 27 de julho.

POSSIBILIDADES JURÍDICAS

De acordo com especialistas, a devolução dos salários pelo vice-prefeito de Água Doce do Norte poderia ocorrer voluntariamente, se ele reconhecer que recebeu os valores indevidamente; por procedimento administrativo, conduzido pela prefeitura, ou de forma judicial, em processo movido pelo Ministério Público por improbidade administrativa.

O professor de Teoria do Estado da FDV, Leonardo Barros Souza, avalia que a conduta de um agente público de sair da cidade sem se desvincular do cargo, afronta diretamente o princípio republicano previsto na Constituição Federal, pois não observa o interesse público, e também o princípio da moralidade, ao qual a administração pública se submete.

"Uma coisa é morar fora, outra é se ausentar do exercício de suas atribuições. Só é possível se tiver a previsão de trabalho remoto. O que vemos, no Brasil, é o papel do vice ser minimizado, o que não está certo. Ele é o segundo na hierarquia político-administrativa. Um vice que não acompanha o dia a dia da cidade, como vai geri-la bem, em caso de necessidade?", pontua.

Para o doutor em Direito Administrativo Anderson Pedra, o caso pode configurar improbidade administrativa se ficar demonstrado que ele estava desligado por completo dos assuntos relacionados à administração pública municipal.

"Ninguém pode receber sem dar nenhuma contraprestação. Se a Lei Orgânica não prevê atribuição específica para o vice, a função dele será a de 'estar à disposição do município'. A depender das provas, a improbidade poderá ser pelo dano ao erário, ou por ter configurado enriquecimento ilícito, que é algo ainda maior, e que também contempla o dano aos cofres", disse.

A Lei Orgânica de Água Doce do Norte dispõe que "o vice-prefeito, além de outras atribuições que lhe forem atribuídas por Lei Complementar, auxiliará o Prefeito, sempre que por ele convocado para missões especiais".

"Para evitar levar o assunto para a esfera judicial, o próprio prefeito poderia determinar a instauração de um PAD, por verificar que houve indevido cumprimento do dever funcional. Nele, poderia ter a aplicação de pena de multa, advertência e determinação para devolver o valor dos salários recebidos. Mesmo quando acabar o mandato, ele continua respondendo", acrescentou o professor Leonardo Barros.

Na esfera criminal, em tese, a prática ainda poderia configurar peculato, caso se comprove que houve a intenção de causar o dano ao erário. O crime de peculato consiste na subtração ou desvio, por funcionário público, de dinheiro público para proveito próprio ou alheio por abuso de confiança.

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