Justiça com as próprias mãos é arbitrariedade que pode punir inocentes

Vizinho colocado sob suspeita após a morte de uma criança em Cariacica teve sua casa incendiada, mais um caso da injustiça que pode ocorrer quando há sede de vingança

Publicado em 22/04/2022 às 02h02
Incêndio
Fotos mostram como a casa do marceneiro Hélio Felipe dos Anjos Martins ficou após incêndio e saques na última quinta-feira (14), em Cariacica. Crédito: Acervo pessoal

Uma criança de 7 anos é baleada e morta. A partir daí, surgem boatos de que o vizinho seria o principal suspeito. A desconfiança quando compartilhada por uma multidão ganha a força de uma certeza, mesmo sem provas. É o desejo de vingança que se confunde como justiça. No caso citado, o marceneiro Hélio Felipe dos Anjos Martins acabou testemunhando o incêndio da própria casa em Nova EsperançaCariacica, na última quinta-feira (14), após sofrer um julgamento sumário e arbitrário de moradores da região.

Hélio foi acusado pela própria família da criança de ser o autor do crime. A Polícia Militar, a princípio, descartou a participação dele no crime e o trata como inocente, após as investigações levarem à hipótese de tiro acidental,  ocorrido na própria residência da família, sem qualquer tipo de envolvimento do vizinho. A apuração deverá seguir com rigor, seguindo os procedimentos que garantem ampla defesa aos envolvidos, e um julgamento amparado pelo Estado democrático de Direito. Não custa repetir: é esse arcabouço que sustenta a nossa civilidade. Na sua ausência, vale o cada um por si. A barbárie.

Infelizmente, não é incomum que inocentes sejam vítimas do tribunal das ruas. No ano passado, foi impactante o caso de um idoso de 74 anos morto a pauladas em Central Carapina, na Serra, sob a acusação de abuso sexual de duas crianças. As investigações concluíram que nunca houve estupro e que o boato havia sido espalhado pela própria mãe das meninas, com quem ele mantinha um relacionamento amoroso.

E quando o alvo de justiceiros é de fato culpado, nada muda. A justiça com as próprias mãos iguala a violência cometida pelo criminoso com a violência cometida para puni-lo. A lei de talião falava de reciprocidade do crime cometido, mas no fim das contas apenas estabelecia um estado de selvageria consentida. No último fim de semana, um suspeito de roubar celulares em um ônibus foi amarrado em um poste pela população, em Cobilândia, Vila Velha. Ele acabou autuado por roubo.

É compreensível que, em um país no qual a impunidade faz parte da paisagem, crie-se um ambiente que alimente o revanchismo imediato, que dê às pessoas o poder de punir. É compreensível, mas não aceitável. Permitir que pessoas queimem a residência de um "suposto suspeito" é um retorno primitivo, é comportamento de turba.

Casos assim mostram que o papel da imprensa é fundamental na sustentação das instituições jurídicas. A defesa dos processos legais deve estar presente em cada matéria. A lei deve ser sempre seguida; podem ser melhoradas, nunca suprimidas.

Justiça com as próprias mãos, tortura... não há crime que justifique a adoção de caminhos paralelos para punir quem os pratica. O Código Penal, mesmo com suas falhas, existe para cumprir esse papel. Por partir do pressuposto de que é preciso provar que uma pessoa não é inocente, um julgamento sumário pode fazer com que as pessoas provoquem mais do que injustiças e se tornem elas mesmas criminosas.

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