Balas perdidas podem fazer vítimas aleatórias, mas suas causas não são

Na maioria dos casos, tiroteios têm endereços conhecidos, oprimindo significativamente a população das periferias. Esse reconhecimento já abre um leque enorme de políticas públicas que devem ser levadas a cabo por governos

Publicado em 03/12/2019 às 04h00
Atualizado em 03/12/2019 às 04h01
Balas perdidas atingiram pelo menos 11 pessoas em outubro e novembro de 2019. Crédito: glukan/ Pixabay
Balas perdidas atingiram pelo menos 11 pessoas em outubro e novembro de 2019. Crédito: glukan/ Pixabay

Após uma semana de agonia, a família de Matheus Xavier, de 5 anos, recebeu a pior notícia possível. Atingido por um tiro na cabeça no dia 23 de outubro durante passeio em Guarapari, ele não resistiu ao ferimento. O menino é a décima primeira vítima de bala perdida registrada por A Gazeta apenas nos últimos dois meses no Espírito Santo.  Os números reais podem ser maiores. No caso de Matheus, o autor do disparo foi identificado e preso, mas esse não é o desfecho mais comum.

Para alguns, as vítimas de balas perdidas são alvos da fatalidade, do mero acaso de estarem “no lugar errado, na hora errada”. Para esses, não custa lembrar que, no dia 2 de outubro, a vítima foi uma estudante de 15 anos que seguia para casa da amiga, em Vila Velha. Cinco dias depois, uma idosa de 70 anos que saía de um culto na Serra. No dia 13, a dona de casa Lucilene Santos da Silva morreu baleada enquanto estava com uma criança no colo, perto de casa em Cariacica.

E a lista continua. No dia 18, foi uma menina de 11 anos que brincava na rua, na Serra. No dia seguinte, outra estudante de 15 anos que brincava e uma fotógrafa de 53 que passava de carro, atingidas também na Serra. No dia 27, duas amigas a caminho do carro, em Vila Velha. No dia 30, um homem foi atingido em seu bairro em Vitória. No dia 18 deste mês, uma mulher de 48 anos que retornava da igreja em Pinheiros, no Norte do Estado. Não há hora certa para ter sua rotina interrompida pela violência urbana.

Em comum entre a maioria dos casos está a banalidade com que a vida foi tratada: os relatos são de que “criminosos dispararam a esmo”, “já chegaram atirando”. Os tiroteios são vagamente atribuídos a brigas de gangue ou acertos de conta do tráfico e, em muitos deles, nenhum suspeito foi detido. Como combater o desconhecido?

O matemático William Edwards Deming diria que é impossível. O norte-americano imortalizou um mantra para todos aqueles buscam qualificar processos para garantir resultados mais certeiros, e a área de segurança pública não escapa: “Não se gerencia o que não se mede”. Mas a máxima não chegou à Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo (Sesp), que nunca disponibilizou dados sobre balas perdidas ou tiroteios. As vítimas aparecem no bolo de homicídios ou tentativas de homicídio.

A lacuna estatística, no entanto, não é uma peculiaridade do Espírito Santo. O Rio de Janeiro, que produziu um dos tristes símbolos desse flagelo urbano em setembro, com a morte da menina Ágatha Félix com um tiro de fuzil nas costas, depende de ONGs como a Rio de Paz, filiada ao Departamento de Informações Públicas da ONU, e de aplicativos como Fogo Cruzado e Onde Tem Tiroteio para mapear ocorrências. 

Na maioria dos casos, esses crimes têm endereços conhecidos, oprimindo significativamente a população das periferias. Em um cenário de oportunidades escassas e serviços públicos precários, os moradores dessas regiões são duplamente penalizados com a violência que a vulnerabilidade social engendra. Esse reconhecimento já abre um leque enorme de políticas públicas estruturantes, realmente eficazes, que devem ser levadas a cabo por governos. Estão frequentemente nos discursos, mas raramente nas ruas. As balas perdidas podem fazer vítimas aleatórias, mas as suas causas não são.

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