A anatomia de um crime hediondo

Suspeita de venda de sentença por juízes da Serra veio à tona em meio à investigação do assassinato de Milena Gottardi. Caso deve ter investigação rigorosa e punição severa para não macular a Justiça

Publicado em 19/07/2021 às 20h24
Tribunal de Justiça do Espírito Santo
Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Crédito: Fernando Madeira

É impactante que tenha sido no decorrer das investigações do assassinato da médica Milena Gottardi, um dos casos de feminicídio mais emblemáticos do Estado, que se desenrolou o novelo que chegou aos dois juízes da Serra, afastados de suas funções em decisão unânime do Pleno do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), na quinta-feira (16), no procedimento criminal que apura possível venda de sentença.

A forma como uma tragédia familiar, que ainda aguarda julgamento, conecta-se com a suspeita da má atuação de magistrados deixa a sociedade atônita não só por sinalizar uma premeditação de crime hedionda, mas por expor a existência de um inacreditável submundo que deve ser investigado com rigor e rechaçado com veemência.

Como em um roteiro de ficção policial, em dezembro de 2020, promotores que atuam na ação penal do homicídio de Milena colheram o depoimento à Polícia Civil de Dionatas Alves Moreira, executor confesso do crime, que afirmou que o então policial civil Hilário Frasson, ex-marido da médica e denunciado como mandante, havia sugerido que a ex-esposa fosse morta na Serra, "porque o juiz era amigo dele e era mais fácil resolver as coisas". Premeditando-se supostamente, assim, o crime e o próprio encaminhamento judicial, em um combo maquiavélico, com plena confiança na impunidade.

Em meio à apuração do caso, o Ministério Público do Espírito Santo (MPES) chegou à suspeita de manipulação judicial no município e descobriu que o magistrado "amigo" de Hilário seria Alexandre Farina, diretor do Fórum da Serra. Já o juiz Carlos Alexandre Gutmann é investigado por suposta vantagem indevida em sentença sobre a posse de um terreno e que teria sido intermediada por Hilário e Farina, segundo o MP. Pela decisão do TJES, os dois juízes estão proibidos de se aproximar do Fórum da Serra, para impedir que atrapalhem a produção de provas.

"Os diálogos e registros de chamadas telefônicas demonstram que o magistrado Alexandre Farina Lopes negociou o recebimento de vantagem indevida, intermediada por Hilário Antônio Fiorot Frasson e Davi Ferreira da Gama, então funcionário da Amages, os quais mantinham contato direto com o empresário Eudes Cecato e com os advogados que representavam a empresa favorecida", destaca o MPES no pedido de abertura de inquérito enviado ao TJES.

Em uma das conversas, Farina faz cobranças a Hilário e demonstra preocupação em não receber o combinado. "Cara, o Davi foi lá no aeroporto encontrar com o cara, porra e ele disse que não vai dar. Não tem volta Hilário, como vou fazer, coloquei mais gente para dentro que nem o Davi sabe, nem pode saber. Aqui entre colunas. Amigo, o cara foi para Salvador, chamou Davi antes de embarcar e disse: não vou dar e se der errado lá eu recorro não prometi nada para ninguém, no máximo era um agrado. Porra, fala sério, uma ginástica monstra em todos os sentidos, insinuações eu passei e coloquei para fuder e agora isso? E aí? Irmão eu já fiz compromisso financeiro por conta disso e a terceira pessoa idem. E aí? Cara você não tem ideia de como tou [sic]. Já chorei to [sic] tremendo, sabe pq [sic], fiz compromissos com terceiros que em hipótese alguma posso falhar e, também, financeiro." (texto transcrito com os erros e abreviações comuns em trocas de mensagens por aplicativos)

Há ainda a suspeita de vazamento das investigações, que corriam em segredo de Justiça. Caso se confirme a atuação escandalosa dos magistrados, por mais que se espere a adoção de penas mais duras do que a mera aposentadoria compulsória, com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, essa permanece sendo a pena máxima que pode ser aplicada na esfera administrativa a um juiz.

Casos como o de vendas de sentenças deveriam ter punição mais dura, por fazer sangrar o dever quase sagrado de julgar, com isenção. Os olhos vendados da Justiça representam seu papel igualitário, sem beneficiar quem quer que seja. Mas, quando se sujeita ao dinheiro e ao poder, acaba sendo cega mesmo, como prega o senso comum.

Um escárnio. Juízes que não honram a toga não deveriam ser beneficiados com o afastamento recebendo uma gorda aposentadoria. A população não aguenta mais essa injustiça. Magistrado que se corrompe e vende sentença deve receber punição exemplar, para que atos tão graves não se repitam dentro de uma instituição que é pilar da democracia. Fazer justiça, nesse caso, é mostrar que o Judiciário não é um balcão de negócios e não tolera práticas horrendas.

A reação dos desembargadores, diante do parecer apresentado pela relatora do caso, a desembargadora Elizabeth Lordes, esteve em sintonia com essa indignação. Quase todos se manifestaram, com maior ou menor veemência, sobre as barbaridades expostas pela investigação.

"A descrição de uma diligência claramente comunicada com antecedência foi na verdade um tapa na cara deste Tribunal de Justiça. Como se diz por aí, um caso de cadeia. Os afastamentos cautelares são, pois, o minimum minimorum, o óbvio ululante. Finalizo externando a dor que me atinge ao ver o Poder Judiciário na boca de acusado de bárbaro homicídio, de pistolagem, a dizer que deveria ser praticado na Serra, onde havia um juiz amigo. Que coisa triste, que vergonha", declarou Pedro Valls Feu Rosa.

O desembargador Samuel Meira Brasil Jr também foi bastante incisivo ao proferir seu voto. "Quando achamos que não há mais nada com que nos surpreender, surge de forma estarrecedora a narrativa de fatos gravíssimos. Orientação para cometer crime no município da Serra porque tem juiz amigo? Narrativa de recebimento de vantagem financeira, inclusive com cobrança insistente e diária? Venda de decisão judicial concretizada com sentença? A audácia é inacreditável. O crime praticado é inaceitável. E a resposta do tribunal deve ser rápida, firme e precisa."

É mais que um arranhão institucional, é uma ferida aberta, que só será curada com a rápida e eficiente apuração do caso. Os desembargadores merecem o reconhecimento pela decisão de afastar os juízes e também por manifestarem total aversão à incorreção da dupla exposta pela investigação. A suspeição, nesses casos, já seria suficiente para não permitir que magistrados permaneçam no exercício de suas funções. Contudo, tudo o que está sendo exposto fortalece ainda mais as razões para retirá-los temporariamente dos quadros. O trabalho investigativo do Ministério Público e da Polícia Civil merece as palmas. E o desfecho tem que ser à altura do que exige a sociedade.

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