Publicado em 29 de setembro de 2020 às 08:42
A atuação da comitiva de médicas enviada à cidade de São Mateus (ES) para propor que uma menina de dez anos grávida após estupro tivesse o bebê, em vez de fazer um aborto legal, foi "institucional", afirmou à reportagem uma das participantes da equipe. >
O caso foi revelado no dia 21 em reportagem da Folha de S. Paulo sobre a ação coordenada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, para tentar impedir que a vítima passasse pelo aborto legal. Por esse plano, a criança gestante seria colocada aos cuidados do Hospital São Francisco de Assis (HSFA), de Jacareí (SP), onde levaria a gravidez adiante.>
Damares contestou a reportagem e a informação de que a missão de seu ministério tenha tratado de aborto. A menina cumpria duas pré-condições para realização do aborto legal: risco de vida para a mãe e gravidez resultante de estupro. Ela e sua família haviam manifestado desejo de interromper a gravidez.>
A assistente social Mariângela Consoli de Oliveira confirmou ter estado na reunião na sede da Prefeitura de São Mateus, articulada pelo ministério de Damares para discutir o caso da menina.>
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"Foi uma iniciativa institucional, não partiu de mim", afirmou Mariângela à Folha de S. Paulo, na sexta-feira (25). "Prefiro não falar sobre isso, porque isso aí já passou. Tudo o que eu fiz foi por trâmites legais.">
Ela é presidente da Associação Guadalupe, com sede em São José dos Campos (SP), que mantém um abrigo para gestantes em situações de vulnerabilidade recomendado por movimentos como o Brasil Sem Aborto.>
Como presidente da associação, ela assina ofício em que teve conhecimento do caso de São Mateus e oferece suas dependências, funcionários e atividades terapêuticas para a menina e seu familiar responsável, "a fim de colaborar para o processo de enfrentamento e superação dos traumas sofridos".>
Em publicação nas redes sociais datada de 23 de janeiro de 2016, Mariângela recebe a ativista de extrema-direita Sara Giromini (Sara Winter) na sede da associação. "É uma menina dócil, mas que está sofrendo grandes perseguições das feministas", diz Mariângela, que à época era diretora da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família.>
Ex-funcionária do ministério de Damares, que já a chamou de filha, Giromini vazou a identidade da menina nas redes sociais, o que infringe o Estatuto da Criança e do Adolescente, e levou dezenas de manifestantes à porta do hospital no Recife onde ocorreria o procedimento para constranger a vítima e os médicos.>
Questionada sobre a relação entre a associação e o hospital de Jacareí, Mariângela afirmou primeiro que "a gente é bem parceiro, é muito próximo", e em seguida que "só se conhece" e "não tem muita relação". Diante de novas perguntas, encerrou a entrevista.>
Antes, a assessoria do HSFA negara ter enviado médicas a São Mateus, mas afirmara ter oferecido "ao juiz da comarca que acompanhou o caso sua estrutura física e técnica pelo fato de ser um hospital preparado para gestação de alto risco, caso a decisão fosse levar a gestação adiante, sendo tal oferta condicionada à autorização de representante legal e/ou da Justiça".>
No entanto, a reportagem obteve relatos de que Elizabeth Kipman, ginecologista e obstetra no HSFA, fez contato por telefone e mensagem com autoridades locais nos dias anteriores à reunião, oferecendo os serviços do hospital.>
Documento que lista os participantes da reunião em São Mateus traz seu nome, embora os presentes não confirmem sua participação. Por telefone, Kipman disse que não esteve na cidade capixaba: "Tenho 78 anos agora em outubro, sou de risco [à Covid], não vou viajar e não estive em São Mateus".>
Depois, por email, respondeu que não se apresentou às autoridades locais e que desconhecia a reunião: "Tenho conhecimento de que partiu do hospital uma oferta de serviços médicos pelo fato de a instituição ser referência para partos de alto risco, caso a decisão dos representantes legais e/ou da Justiça fosse no sentido de dar continuidade à gestação".>
Embora todas tivessem sido apresentadas genericamente como médicas do HSFA conhecidas de Damares, nenhuma tinha vínculo direto com o hospital e apenas duas eram de fato médicas: a residente em urologia Rafaela Lima dos Santos e a infectologista Janaína Aparecida Schineider Casotti - esta última de Vitória (ES). Outro membro foi a farmacêutica e bioquímica Renata Gusson Martins, ligada ao Movimento Mulheres pela Vida e apontada como porta-voz do grupo.>
A reportagem tentou contato com Janaína, mas ela desligou assim que a repórter se identificou. As demais não atenderam.>
A reunião na prefeitura durou quase cinco horas e teve a presença de dois representantes da ministra: Alinne Duarte de Andrade Santana, coordenadora-geral de Proteção à Criança e ao Adolescente da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, e Wendel Benevides Matos, coordenador-geral da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. A eles se somaram o deputado estadual Lorenzo Pazolini (Republicanos) e assessores.>
Por parte do município estavam presentes a secretária de Ação Social, Marinalva Broedel; Susi Dante Lucindo e Romilson Candeias, do Conselho Tutelar local; e representantes do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e da Casa Lar, que abrigava a criança desde a constatação da gravidez.>
Segundo relato à reportagem, Alinne se levantou imediatamente para receber as médicas e falou em tom muito respeitoso sobre elas. Disse que sabia que viriam e as descreveu como voluntárias que saíam viajando pelo país oferecendo ajuda em nome do hospital, especialista em parto de risco.>
Ainda segundo esse relato, o grupo chegou com um planejamento pronto sobre o que deveria ocorrer com a menina: o aborto não seria autorizado; em vez disso, a criança, acompanhada de um membro da família, seria levada para um abrigo de gestantes e teria acompanhamento no HSFA.>
Questionadas sobre como tiveram acesso ao caso e se sabiam daquela reunião, as médicas responderam que tinham tido contato com Lucindo. Uma delas afirmou que a criança estava com 21 ou 22 semanas de gestação, dado sigiloso.>
Procurados, o promotor Fagner Cristian Andrade Rodrigues, responsável pelo caso, e a Vara da Infância e da Juventude não quiseram se manifestar.>
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