Publicado em 25 de julho de 2022 às 12:44
SÃO PAULO, SP - "E se isso acontecer com um filho meu?" Foi o que se perguntou Lorena Vitória, uma mulher negra de 21 anos, após ver seus namorados, todos negros, serem abordados de forma violenta pela Polícia Militar. >
O medo de que os futuros rebentos sejam vítimas de racismo faz com que a estudante de design de moda questione se vale a pena ceder ao desejo de ser mãe, ou se é melhor não colocar outra criança negra em um mundo racista. >
"A gente vê hoje em dia as coisas que acontecem, tanto de abordagem como de morte, e eu sempre fico muito mal e acabo imaginando: se com o filho dos outros já me dói tanto, como seria se isso acontecesse com um filho meu?", diz.>
A indecisão de Lorena é comum entre mulheres negras e expressa mais uma luta por direitos e cidadania neste 25 de julho, em que se celebra o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. O medo de que seus filhos sofram racismo - que se manifesta na violência policial e obstétrica, no preconceito e na discriminação - faz com que muitas delas abram mão da maternidade. A decisão também serve como proteção à própria saúde mental.>
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Isso ocorre pois o racismo é motor de sofrimento psíquico, afirma Marizete Gouveia, doutora em psicologia pela Universidade de Brasília e autora da tese "Onde se esconde o racismo na psicologia clínica?".>
Segundo a especialista, o sofrimento causado pelo preconceito racial faz com que mulheres negras criem mecanismos de proteção à saúde mental. Não ter filhos é um deles, uma vez que não precisariam se preocupar com as violências que viriam a sofrer.>
"Pode ser uma medida de autoproteção, no sentido de não ter que se preocupar com a criança, mas vai além disso. É também não trazer uma criança para esse mundo violento. Eu vou me poupar de não ter essa preocupação, mas também é um alívio não vivenciar essa criança sendo exposta a esse mundo.">
De acordo com o Atlas da Violência 2021, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, desde a década de 80, quando começaram a crescer as taxas de homicídio no Brasil, o aumento foi mais acentuado entre a população negra, especialmente entre os mais jovens.>
E o medo se torna ainda maior se o filho for homem. Um levantamento realizado pelo Fórum com microdados do Anuário de Segurança Pública mostra que negros são 78,7% do total de mortes violentas intencionais entre homens. Isso significa que um homem negro tem 3,7 vezes mais chances de morrer do que um não negro.>
É o caso da babá Gisele (nome fictício, a pedido), que teve sua decisão pautada na violência crescente entre negros e na sua experiência profissional. Percebeu que era uma inquietação constante a ideia de deixar seus filhos em casa para cuidar dos filhos de outras mulheres.>
"Como que eu vou me sujeitar a ter um filho e passar a semana fora de casa?", diz ela. "É esse o problema, tirar do filho o direito de ter a mãe por perto, porque esse trabalho consome.">
Ela, que evita transitar em espaços em que pode sofrer racismo, sente que não vale a pena ter um filho que terá sua liberdade podada para que não passe por situações de preconceito e discriminação.>
"Muitas vezes você tem o sonho dessa realização na sua vida, mas por falta de opção, por falha do estado e pelo racismo, você tem que tomar outros caminhos.">
Evelyn Daisy de Carvalho de Sousa, 39, por outro lado, nunca teve um forte desejo de ser mãe devido a uma condição de saúde hereditária. Conforme se tornou adulta, o medo de que seus filhos sofressem violência foi o que era preciso para que ela confirmasse a decisão. Percebeu também que precisava proteger sua saúde mental. Sabia que ter um filho negro seria motivo de preocupação constante.>
Sua decisão acumula ainda outras variantes. Fundadora do Traçamor, um projeto que atende mulheres em período de transição capilar, Evelyn também é responsável pela criação de dois sobrinhos negros, o que faz com pense constantemente em como os manter vivos e seguros.>
"Imagina eu tendo gerado, colocado uma criança no mundo para ter essa preocupação? Porque sobrinho e marido não são exatamente uma escolha. Engravidar, não. Você coloca uma pessoa no mundo para sofrer essas consequências.">
Além disso, viu a irmã sofrer com a violência obstétrica em suas quatro gravidezes, sendo mal atendida por médicos em dois partos. "Na ginecologia nós passamos muita humilhação. Eu passei muita humilhação com o ginecologista do posto do meu bairro. Imagina se eu estivesse grávida?">
O estudo "A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil", publicada nos Cadernos de Saúde Pública em 2017, mostra que mulheres pretas são mais propensas do que brancas a terem um pré-natal inadequado, ausência de acompanhantes no parto e menos anestesia local quando praticada a episiotomia, que consiste num corte na região da vagina para facilitar a saída do bebê.>
Para Janete Santos Ribeiro, mestre em educação pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e ex-coordenadora pedagógica do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o racismo tem definido as necessidades e escolhas da população negra. A pesquisadora se diz dividida quanto ao que pensa sobre a decisão de mulheres negras que optam por não ter filhos.>
Por um lado, crê que a população negra não deve pautar suas escolhas apenas com base na violência que sofre. Por outro, acredita ser importante que essas mulheres encontrem mecanismos que as ajudem a proteger seu bem-estar e saúde mental.>
"Eu acolho as duas perspectivas, mas acredito que o importante é que a pauta, o agenciamento seja nosso. Não partir das violências impostas historicamente aos nossos corpos. Se não você sai de um adoecimento para outro", afirma Ribeiro, que também é professora da educação básica.>
A pesquisadora pondera, porém, que a decisão deve levar em consideração se existe o desejo pela maternidade e pensar em quais formas isso será sanado para não virar um fator de sofrimento. "A solidão da mulher negra tem sido uma imposição da cultura patriarcal, elitista e racista. Não queremos mais essa solidão pautando nossas decisões e escolhas.">
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