Publicado em 4 de dezembro de 2020 às 06:00
Século XXI, muitos avanços que asseguram a liberdade individual, mas, ainda hoje, o ciúme é considerado prova de amor. Se o parceiro demonstra insatisfação porque a mulher atrai outros olhares, ou por ser expansiva no seu convívio social, há quem acredite que nada mais é que manifestação de afeto. Entretanto, é justamente o contrário. O sentimento de posse, bastante romantizado na sociedade, é o primeiro indício de que a relação pode caminhar para um desfecho trágico: o feminicídio. >
Controlar a roupa, a maquiagem, as companhias, as redes sociais, o uso do celular, o trabalho, é uma conduta de quem não enxerga a relação como uma parceria, e sim um vínculo de poder. "Há uma ideia errada de que, se não tem ciúmes, o outro não gosta de mim. É um sentimento baseado na posse, e o primeiro sinal de que não estou considerando o outro como pessoa, mas como objeto. E todas as violências saem desse princípio. O ciúme é um sinal perigoso, um alerta", ressalta a psicóloga Adriana Müller, comentarista da CBN Vitória. >
Conceição de Maria Mendes de Andrade, superintendente e cofundadora do Instituto Maria da Penha (IMP) - organização que, entre outras atividades, atua no combate à violência contra a mulher - observa que a romantização do ciúme ocorre em todas as fases da vida, porém, cada vez mais jovens têm sido subjugadas em relacionamentos abusivos que começaram com atitudes ciumentas. >
"A violência doméstica tem acontecido cada vez mais cedo, ainda no namoro. As meninas acham bonito que, se tem ciúmes, é porque se preocupam com elas, e não conseguem identificar o problema. É preciso detectar logo, para poder conseguir romper o ciclo da violência que começa desse jeito: ciúmes exacerbados, controle de tudo o que a mulher faz", adverte.>
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A violência, explica Conceição de Maria, dificilmente começa com agressões físicas. Essas são a ponta do iceberg, são as que aparecem. Antes, a mulher já passou por violências psicológica, moral e sexual que, segundo ela, deixam marcas na alma. >
Conceição de Maria Mendes de Andrade
Superintendente e cofundadora do Instituto Maria da Penha (IMP)A superintendente do IMP conta que, quando a mulher é agredida, muitas vezes até percebe que precisa deixar o abusador, mas, então, entra em uma nova fase do relacionamento: a "lua de mel". É aquele momento em que o agressor se declara arrependido, e diz que vai mudar. Pede desculpas, dá presentes, leva para passear, fala dos filhos.>
"A mulher acredita porque quer que o relacionamento volte a ser como antes, quer de volta aquela pessoa que escolheu para ser seu companheiro. É por isso que tem esperança de que as coisas vão mudar. Sem contar que existe o fator social, uma pressão muito grande para que ela leve adiante o relacionamento, sobretudo quando há filhos. Até ela entender que não há nada que faça que vai fazê-lo mudar, o ciclo de violência persiste por anos", constata Conceição de Maria. >
Brunela Vincenzi, professora do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenadora do Laboratório de Pesquisa sobre Violência contra a Mulher (LAPVIM) da instituição, avalia que o ciúme é o gatilho para muitos casos de feminicídio no Estado. Embora não disponha de dados estatísticos que façam a relação das mortes com esse sentimento, sua percepção se baseia na experiência do dia a dia.>
Não é raro, observa Brunela, casos de violência em que a mulher é assassinada porque o ex-companheiro, inconformado com a separação, tem ciúmes por vê-la sair, trabalhar, se divertir, se relacionar com outras pessoas. E esse sentimento de posse, diz ela, provavelmente, já se manifestava antes mesmo do término da relação.>
O comportamento de relação de poder é reflexo do patriarcado, um sistema social que, aponta Brunela, reforça a concepção de que o homem tem domínio sobre o corpo da mulher e sobre tudo o que ela faz. Apesar de avanços na sociedade, ainda há um longo caminho a percorrer para mudar essa realidade. A professora lembra que não faz muito tempo o próprio Direito tolerava o homicídio de mulheres, ao descriminalizar o assassinato e justificá-lo como um "ato passional". Era assim até a criação da Lei do Feminicídio, há apenas cinco anos. >
Brunela Vincenzi
Professora da Ufes e coordenadora do Laboratório de Pesquisa sobre Violência contra a Mulher (LAPVIM) da instituiçãoMesmo com a mudança na legislação, Brunela percebe que os operadores do Direito ainda têm muitas dificuldades em indiciar o indivíduo no crime de feminicídio, e a maioria das mortes das mulheres acaba registrada como homicídio, abrandando a punição numa eventual condenação do acusado. >
A psicóloga Adriana Müller reafirma que, em uma sociedade machista com a brasileira, o ciúme é naturalizado e, para que não chegue a episódios mais graves de violência, e até morte, é fundamental que essa conduta seja contestada logo no início do relacionamento. >
Ao primeiro sinal de ciúmes, ressalta a especialista, é preciso conversar. Na hora, não adianta porque os ânimos vão estar inflamados, mas na primeira oportunidade que houver. É necessário esclarecer o motivo da conduta.>
"E tem que perguntar o porquê desse tipo de atitude, se vale a pena continuar juntos, e o que é possível fazer para se respeitarem mutuamente; as individualidades precisam ser respeitadas e preservadas", orienta Adriana, que completa: "relacionamento de parceria é baseado na confiança; o ciúme é o oposto." >
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