Rio Doce em Baixo Guandu: rompimento de barragem em Minas Gerais alterou a vida de comunidades no Espírito Santo
Rio Doce em Baixo Guandu: rompimento de barragem em Minas Gerais alterou a vida de comunidades no Espírito Santo. Crédito: Fernando Madeira

Dez anos da lama e luta: a longa batalha por reparação de danos no Rio Doce

Comunidades tradicionais no Estado ainda buscam indenização após terem atividades prejudicadas por lama gerada pelo rompimento da barragem em Mariana

Tempo de leitura: 10min
Vitória
Publicado em 05/11/2025 às 05h00

O rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), completa dez anos, mas a tragédia que despejou mais de 40 milhões de rejeitos de mineração ao longo da Bacia do Rio Doce de Minas Gerais à foz no Espírito Santo é um episódio que está longe de ser encerrado.

Além dos impactos diretos ao meio ambiente, a passagem da lama oriunda da barragem administrada pela Samarco também alterou a vida de muitas comunidades ao longo da Bacia do Rio Doce. No Espírito Santo, foram impactados diretamente pescadores, agricultores e comunidades tradicionais como quilombolas e indígenas.

Ao longo dos primeiros anos após o rompimento, prevaleciam as incertezas e dificuldades no reconhecimento de atingidos, ainda nos cadastros que eram coordenados pela Fundação Renova, criada em 2016 para conduzir o primeiro acordo de reparação.

Apesar dos avanços formais, com a assinatura do Novo Acordo do Rio Doce no ano passado, o caminho até uma reparação efetiva segue incompleto. Até hoje, a maior parte das vítimas continua sem reparação integral pelos danos sofridos após o rompimento da barragem. Atrasos em indenizações, reassentamentos incompletos e ausência de recuperação ambiental plena são aspectos que confirmam a trajetória lenta e desigual.

“O efetivo atendimento da pessoa atingida no Espírito Santo deixou muito a desejar com as soluções indenizatórias até então existentes. O acordo da repactuação também traz, no seu anexo dois, soluções indenizatórias customizadas para o Espírito Santo que estão possibilitando o reconhecimento de muitas pessoas atingidas que não conseguiram ter acesso nenhum durante o período de 9 anos de indenizações”, destaca o defensor público Rafael Portella.

Populações de cidades como Colatina, no Noroeste do Estado, e Governador Valadares, em Minas Gerais, foram as primeiras diretamente impactadas ainda nos dias iniciais do rompimento da barragem.

As cidades ficaram com captação de água comprometida por mais de um mês devido ao fato de, à época, de o processo ser realizado exclusivamente no Rio Doce, que estava contaminado pelos rejeitos de minério. Durante um mês, a Samarco foi obrigada pela Justiça a distribuir água mineral na cidade. Isso levou muitos moradores à Justiça na busca por indenização. Em 2021, a Justiça mineira chegou a determinar que os moradores recebessem R$ 2 mil por dia que ficaram sem água.

Em geral, a previsão é que, com o Novo Acordo do Rio Doce, 300 mil pessoas recebam indenização dentro do Programa Indenizatório Definitivo (PID), que é voltado principalmente para os atingidos pela tragédia que não conseguiram comprovar documentalmente os danos sofridos. Esse grupo passaria a ter direito ao recebimento de R$ 35 mil, destinados aos atingidos em geral, e a R$ 95 mil, a ser pago aos pescadores e agricultores afetados.

Até setembro, foram registrados 127.390 requerimentos ao PID no Espírito Santo, tendo sido pagos 88.773. A distribuição detalhada desses pagamentos ficou assim entre os municípios capixabas:

  • Linhares - 25.544
  • Colatina - 20.973
  • São Mateus - 13.778
  • Baixo Guandu - 8.793
  • Aracruz - 6.524
  • Conceição da Barra - 6.501
  • Serra - 4.594
  • Fundão - 687
  • Sooretama - 515
  • Anchieta - 513
  • Marilândia - 351

Outro avanço do novo acordo é o pagamento a 21 mil pescadores artesanais, além de 4.753 agricultores no Espírito Santo dentro do programa de transferência de renda do governo federal. O pagamento começou a ser feito em julho, após cerimônia em Linhares que contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O programa prevê a transferência de renda por quatro anos, com a destinação de R$ 3,7 bilhões. O valor será de um salário mínimo e meio mensal (o equivalente a R$ 2.277 atualmente) por atingido, por até 36 meses, e um salário mínimo mensal (R$ 1.518) por mais 12 meses.

Ainda no caso da população que ficou sem acesso à água em Colatina, por exemplo, há previsão de programa de indenização com valor fixo de R$ 13.018 para quem tem ação judicial individual em curso.

A Gazeta visitou Regência para falar com a Associação de Atingidas por Barragens
Barcos em Regência: pescadores artesanais são atendidos por programa de transferência de renda. Crédito: Fernando Madeira

Heider Boza, integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), lembra que os primeiros anos foram marcados pela negação por parte das empresas de reconhecer atingidos no Espírito Santo, em especial no litoral.

“Em 2016, já começou a ter mobilização sobre o litoral porque rapidamente as consequências foram sendo percebidas. Começamos um trabalho principalmente entre São Mateus e Aracruz. Mas as empresas resistiam. Dali começou uma queda de braço até que ocorresse o reconhecimento o litoral como área afetada, porque antes o limite era somente a foz do Rio Doce, em Regência”, lembra.

A dificuldade da luta por esse reconhecimento também foi destacada pelo defensor público Rafael Portella.

“Nesses 10 anos, foi um grande calvário para se reconhecer o litoral como área atingida no Espírito Santo. No início, teve uma discussão sobre o fato de o primeiro acordo, que criou a Fundação Renova, abranger ou não toda a área litorânea do Estado e se houve impacto ou não. A Defensoria Pública começou a visitar as comunidades do litoral à medida que os rejeitos se alastraram a partir da foz do Rio Doce para auxiliá-las juridicamente no reconhecimento desses territórios”, explica.

Outra conquista lembrada tanto pelo MAB quanto pela Defensoria Pública do Espírito Santo foi o reconhecimento das mulheres no novo acordo. Durante a vigência da reparação ainda pela Fundação Renova, o grupo feminino não era reconhecido como atingido, pois constava como dependente dos maridos.

Em 2018, foi lançado um diagnóstico sobre a situação. Percebeu-se que as mulheres frequentemente eram vítimas de discriminação, sendo tratadas apenas como membros da família. Muitas vezes, elas precisavam de autorização do marido para alterar cadastros. O novo acordo prevê o Programa das Mulheres, que reconhece essa discriminação e busca garantir que todas as ações de reparação (saúde e assistência social) sejam voltadas também para atender o público feminino.

“No Programa das Mulheres, estamos discutindo qual vai ser o recorte, se vão ser mulheres já indenizadas, se vão ser idosas com preferência, se vai ser pagamento parcelado... Mas virá em conjunto com as medidas que os governos precisam tomar em todas as esferas. Então, as ações de saúde e assistência social também têm de ser voltadas às mulheres”, explica Portella.

Um grupo que lutou por reconhecimento desde os primeiros anos foi o das artesãs de Baixo Guandu. São mulheres que retiravam a matéria-prima do leito do rio, como conchas, pedras e areia. Terezinha Gu, de 71 anos, tinha como profissão o artesanato, atividade que faz desde a infância, mas que foi interrompida após a passagem da lama.

“Gostaríamos de ter apoio dos governos estadual, federal e municipal. Não temos apoio de ONG, de instituição, de nada. Muitas pessoas que nunca tinham ido ao Cras (Centro de Referência e Assistência Social) hoje sobrevivem de cesta básica. Os pescadores, além de negociarem os peixes, comiam e vendiam até a escama para virar arte. Tenho artesanato feito com a escama de peixe que comprávamos do pescador. Então, hoje está tudo incerto para nossa profissão. Graças a Deus que foram reconhecidos e estão sendo indenizados o pescador e o produtor rural. Estamos aguardando chegar a nossa vez do reconhecimento também”, diz Terezinha.

Expedição de A Gazeta ao Rio Doce em 2025, ano que marca os 10 anos da Tragédia de Mariana
A artesã Terezinha Gu teve a atividade que exerce desde a infância interrompida após a passagem da lama. Crédito: Fernando Madeira

A persistência levou os atingidos a buscarem caminhos fora do Brasil. Dez anos depois, outra marca da luta por reparação e indenização é a existência de processos judiciais no exterior, como na Inglaterra e também nos Países Baixos, além dos desdobramentos na Justiça brasileira.

Vários municípios do Espírito Santo e Minas Gerais aderiram à ação contra a mineradora BHP – controladora da Samarco – na justiça inglesa, em busca de indenização pelo desastre de Mariana. Alguns, como Conceição da Barra e São Mateus, já saíram do processo em troca de receber a primeira parcela do acordo feito no Brasil. Já Aracruz, Baixo Guandu, Colatina, Marilândia e Sooretama optaram por continuar na ação movida na Inglaterra por não concordarem com os termos do acordo brasileiro.

Embora pescadores e agricultores tenham recebido atenção específica, outras categorias tiveram menos amparo. Profissionais ligados ao turismo e comércio no litoral podem se enquadrar em indenização, mas não foram explicitamente definidos como beneficiários de auxílio periódico, ao contrário dos pescadores e agricultores.

Para o futuro, as entidades defendem o investimento no desenvolvimento da economia e do turismo das comunidades impactadas, além do cuidado com a saúde dos moradoras dos territórios atingidos pela lama.

“Temos uma ampla gama de categorias que foram impactadas severamente pelo desastre. Acredito que as medidas de caráter coletivo que estão previstas vão ser muito importantes para a cadeia de comércio e turismo. A partir de ferramentas de acesso a crédito, projetos e iniciativas de retomada econômica, enxergamos que o acordo de repactuação traz um leque de ações que podem ser muito importantes para esses setores se reerguerem depois de tantos anos”, afirma o defensor público.

Já o integrante do MAB Heider Boza lembra que ainda há uma reivindicação para reconhecimento coletivo de pescadores de Vitória, como da Ilha das Caieiras, no mesmo caminho que o grupo da Praia do Suá chegou a ser reconhecido anos atrás.

Programa Indenizatório Definitivo (PID):

  • Oferece indenização de R$ 35 mil em parcela única e individual para pessoas elegíveis.
  • A representação por Defensoria Pública ou advogado é obrigatória.
  • Teve reaberturas e prazos específicos para adesão.
  • Indenização para agricultores familiares e pescadores profissionais.
  • Pessoas elegíveis, com base em lista da União, podem receber R$ 95 mil em indenização individual.
Sistema Novel:
  • Sistema já destinou valores significativos, mas, segundo informações recentes, estava em fase de conclusão das análises dos requerimentos pendentes, sem possibilidade de novos requerimentos.
Lucros Cessantes:
  • Pagamentos destinados a compensar a perda de renda. O pagamento definitivo (antecipação do valor restante de 125 meses) estava sendo finalizado para alguns beneficiários.
Dano Água:
  • Um sistema específico de indenização, com a solicitação de cadastro já encerrada.
Auxílio de Subsistência Emergencial (ASE):
  • Um auxílio emergencial que teve o pagamento da primeira de três parcelas correspondente ao período entre a data do rompimento e a homologação judicial do acordo.

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