No dia 5 de novembro de 2025, completam-se dez anos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), evento considerado o maior desastre ambiental do país, que afetou diretamente Minas Gerais e Espírito Santo. Foram mais de 50 milhões de metros cúbicos — o que equivalente a 25 mil piscinas olímpicas — de rejeitos de mineração da barragem da Samarco liberados no meio ambiente, atingindo a Bacia do Rio Doce. Uma década depois, os impactos da tragédia persistem, mas há agora uma esperança para o futuro do rio depositada no acordo que prevê a aplicação de R$ 132 bilhões em ações de recuperação.
Ao longo desta semana, A Gazeta publica a série especial Rio de Lama e Luta, com conteúdos no site, nas redes sociais e no YouTube, resultado de uma expedição pelas cidades do Espírito Santo afetadas pelo desastre. Em mais de 800 km de percurso, visitamos pescadores e pescadoras, agricultores e agricultoras, artesãs e surfistas em Baixo Guandu, Marilândia, Colatina e Linhares que até hoje, uma década depois, ainda lutam por reparação.
Fomos a Anchieta entender como o balneário, distante 200 km da foz do Rio Doce, mas sede de usinas da mineradora, teve sua economia sacudida. Ouvimos cientistas para sabermos o que podemos esperar para o futuro do rio. E também políticos e a própria empresa, para medir o que já foi feito e o que ainda falta fazer para a tão sonhada recuperação.
Veja documentário com relatos de vítimas da tragédia no ES:
A lama com rejeitos de mineração levou 15 dias para percorrer mais de 600 quilômetros até a foz do Rio Doce, em Regência, Linhares, litoral Norte do Espírito Santo. Antes, a enxurrada já havia atingido afluentes, como Gualaxo do Norte e Rio do Carmo, ainda em Minas Gerais.
Parte desse volume ficou retido na Hidrelétrica Risoleta Neves (conhecida como Candonga), na região da Zona da Mata mineira, a mais de 100 quilômetros da barragem, paralisando a geração de energia elétrica. Segundo a Samarco, os sedimentos foram retirados do reservatório e empilhados em uma fazenda que pertence à empresa. A hidrelétrica voltou a funcionar só em 2023.
Nesses dez anos após a passagem dos rejeitos, o Rio Doce ainda enfrenta um cenário de persistência de contaminantes e impactos crônicos na biodiversidade. Mas especialistas apontam uma perspectiva de melhora do meio ambiente a partir da efetiva realização das ações previstas do Novo Acordo do Rio Doce, assinado no ano passado. As iniciativas serão conduzidas agora pelos governos federal e dos estados do Espírito Santo e de Minas Gerais a partir dos R$ 132 bilhões em repasses feitos pela Samarco.
O analista ambiental Joca Thomé, coordenador do Centro Tamar do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), observa que a bacia hidrográfica do Rio Doce já era considerada doente pela degradação histórica na região. Ele lembra que o desastre ambiental ocorreu no momento de menor vazão histórica do rio, com apenas 70 m³/segundo, piorando os danos — a média é de 100 m³/s.
O primeiro e mais grave impacto da tragédia foi a mortandade de organismos aquáticos devido à rápida queda do oxigênio a zero por vários dias na área atingida, além da contaminação por metais e outros elementos ao longo do rio e nas áreas marinhas, com rejeitos depositados que persistem no leito e no fundo do mar.
Joca Thomé
Analista ambiental
As nascentes foram destruídas. Tem que se recuperar muita coisa ainda no Rio Doce como um todo
A lama se acumulou em grandes quantidades na calha e nos fundos de usinas hidrelétricas — a maior parte em Candonga — e do mar, onde ampliou a área lamosa na foz em uma proporção nunca vista.
O secretário de Recuperação da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, Guerino Balestrassi, aponta que o rio piorou desde 2006 e continua assoreado. Um dos maiores desafios ambientais é a presença de cerca de 9 milhões de metros cúbicos de resíduos contaminantes na represa Risoleta Neves, cuja remoção é uma obrigação das empresas, mas em um processo de “grande dificuldade”.
Para Joca Thomé, no Espírito Santo, o maior impacto foi no ambiente marinho. “A passagem da lama atingiu muitas comunidades, contaminou manguezais ao Norte e Sul do Rio Doce, do Sul da Bahia a Vitória. Tanto que as pessoas estão vivendo há 10 anos de subsídios com a paralisação das atividades pesqueiras. Isso gera muitos problemas”, aponta.
O coordenador da Rede Rio Doce Mar (grupo de pesquisa sobre os impactos do rompimento formado por uma série de universidades) e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Fabian Sá, explica que, após o impacto agudo, o período se tornou crônico, caracterizado por alterações de menor intensidade, mas de longa duração.
Fabian explica que a qualidade da água no rio e no mar é afetada por "pulsos" de piora: durante períodos de chuva intensa (que revira o sedimento e o disponibiliza aos organismos) e durante o inverno, quando a energia marinha aumenta e frentes frias ressuspendem o material depositado no fundo do mar.
Mesmo sem apresentar a mesma mortandade do rio, o mar sofreu com a contaminação por metais (alumínio, ferro, cromo e cádmio) e outros elementos. Fabian Sá aponta que essas alterações ainda são vistas, principalmente nas larvas de peixes, que continuam apresentando alterações morfológicas, como deformidades na região da cabeça e destruição do trato digestório.
Sobre os estudos, o professor afirma que o impacto ambiental é avaliado com precisão porque a equipe já tinha vários dados e parâmetros pré-rompimento.
“A gente tem uma assertividade grande de quais metais aumentaram. Claro que foi muito mais crítico durante o início, mas ainda hoje a gente vê essas alterações. A qualidade ambiental ainda não voltou ao que era antes, por mais que tenha demonstrado melhoras ao longo do tempo”, detalha.
Em tartarugas, houve um aumento da fibropapilomatose (verrugas causadas por um vírus) devido à alteração na imunidade causada pela contaminação por metais.
Esperança de recuperação da bacia hidrográfica, o Novo Acordo da Bacia do Rio Doce visa promover a reparação e transformação significativa dos municípios atingidos. Fabian Sá acredita que, se as medidas previstas forem realmente implementadas, haverá uma melhora da qualidade ambiental, oferecendo uma grande oportunidade de recuperação. O acordo tem previsão de durar 20 anos — contados a partir da assinatura, em 2024.
O secretário Guerino Balestrassi tem o mesmo sentimento, afirmando estar "muito otimista" de que os problemas serão resolvidos se os R$ 11 bilhões em recursos destinados à aplicação direta forem utilizados conforme a orientação governamental.
Entre as principais ações previstas estão:
- Saneamento Básico: Todos os municípios da bacia receberão recursos para aprimorar o tratamento de esgoto, importante para amenizar o alto nível de poluição orgânica que sempre foi um problema crônico do rio. Está prevista a instalação de estações de tratamento de esgoto para todos os municípios ao longo da calha do Rio Doce. O secretário Guerino Balestrassi planeja investimentos de cerca de R$ 100 milhões em saneamento rural até 2030, além de liberar recursos para estações de tratamento de água e esgoto em vários municípios.
- Recuperação Ambiental: Estão previstos projetos de reflorestamento, recuperação de matas ciliares e das nascentes.
- Manejo de Rejeitos: Estudos estão sendo desenvolvidos sobre o que fazer com os rejeitos ainda depositados no fundo do leito do rio, embora o manejo desses resíduos persista como um grande desafio.
- Monitoramento e Fiscalização: O Programa de Monitoramento da Biodiversidade (PMBL), sob coordenação da Ufes, está previsto para se manter por mais 10 anos. O monitoramento servirá para verificar a efetividade das ações implementadas e deverá ser revisado periodicamente. O governo estadual planeja ainda investir na compra de viaturas de fiscalização e até em uma aeronave de monitoramento.
Joca Thomé considera que o plano previsto foi bem feito, mas salienta que tem que sair do papel e ser executado. O governo federal reforça a importância de os recursos serem aplicados de forma planejada e articulada para promover a efetiva reparação ambiental e econômica.
Embora a comunidade científica e os gestores estejam otimistas quanto à possibilidade de melhorar os índices ambientais, o desafio da recuperação é gigantesco. O trabalho de monitoramento da biodiversidade, coordenado pela Ufes e supervisionado pelo ICMBio, deve continuar por mais 10 anos, servindo para verificar a efetividade das ações que estão sendo implementadas.
Para que a melhora seja completa, além da aplicação dos recursos, é necessário que o básico seja cumprido, como a proteção das margens do rio e das várzeas. Balestrassi reforça que, para a recuperação total da bacia, é crucial a contribuição de Minas Gerais, onde fica a maioria dos municípios afetados.
O principal desafio que permanece é a incerteza sobre a liberação da pesca e o atendimento às questões sociais e psicológicas das comunidades, que exigem maior participação e inclusão nos processos decisórios.
Bióloga e pesquisadora do Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA), Dannieli Firme Herbst lembra que há um receio geral da população e dos pesquisadores sobre como será a gestão dessa nova repactuação, visto que a Fundação Renova, anteriormente responsável, foi criticada por ações não transparentes.
Para a pesquisadora, o caminho para a melhoria socioambiental passa necessariamente por um processo efetivo de participação social e valorização dos grupos afetados. Segundo ela, é essencial buscar a restauração ambiental e, na esfera social, garantir atendimento psicossocial às sociedades atingidas, que enfrentam traumas, incluindo casos de suicídio e desagregação familiar devido aos valores desiguais de indenização.
Outro ponto crítico é a recuperação econômica e cultural. Se a pesca não for liberada (decisão a ser revista em dois anos), a bióloga afirma que será necessário direcionar as comunidades para alternativas econômicas, como aquicultura ou turismo, mas com suporte técnico adequado.
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