“Vila Mágica”. Era assim que Suely, Adélia, Eliá e outros moradores de Regência, em Linhares, sempre chamavam o lugar onde vivem, no Norte do Espírito Santo. E não é para menos. Lá, no encontro da foz do Rio Doce com o mar do Oceano Atlântico, elas tinham a abundância de que precisavam para sobreviver. Graças à diversidade marinha do lugar, a pesca mantinha a subsistência de dezenas de famílias. A fonte de renda estava garantida.
A magia do lugar, porém, sumiu em 22 de novembro de 2015, no exato dia em que a lama dos rejeitos de minério, provocada pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), chegou ao mar de Regência, após percorrer o Rio Doce. Uma enxurrada que provocou a destruição e a contaminação da fauna marinha. Em vez da alegria pela fartura, vieram os sentimentos de tristeza, decepção e luto.
➡️RIO DE LAMA E LUTA | Infográfico mostra o caminho da lama no Rio Doce
Suely Souza Dias
Presidente da Associação de Piscicultura da Foz do Rio Doce (Apford), sobre a sensação de ver o azul do mar de Regência ser tomado pelo marrom da lama contaminada
"Foi como se alguém da família tivesse morrido"
A partir de então, o luto pelo desastre ambiental, que agora completa 10 anos, precisou dar lugar à luta. Sem poder exercer a atividade na região, pescadores tiveram direito a indenizações. Porém, os recursos foram destinados apenas aos chefes da família. As marisqueiras, mulheres que também dependiam da pesca atuando na limpeza e na venda dos peixes, ficaram à margem e ainda hoje estão em busca de serem reconhecidas como vítimas da tragédia para terem acesso aos mesmos direitos dos homens. Para isso, iniciativas das próprias mulheres, da Defensoria Pública do Espírito Santo e dos ministérios públicos mineiro e capixaba buscam mudar esse cenário.
“As mulheres de Regência não tiveram direito a nada até hoje. Essa é a nossa bronca, a nossa luta. Nossa batalha é para que sejamos reconhecidas como impactadas. E vamos continuar porque somos guerreiras”, garante Suely.
Segundo a agricultora Varner de Santana Moura, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), esse problema teve início durante os cadastros da fase um dos programas de indenização, em que as mulheres ficaram excluídas e apenas os homens foram reconhecidos como chefes das famílias, tendo direito ao acesso aos recursos.
“A mulher atingida é a que mais sofre, porque é ribeirinha, está às margens do rio. Ela vem sofrendo com as questões familiares, com o alcoolismo e as drogas. São problemas que aumentaram muito depois do rompimento da barragem. A gente espera que os pequenos, aqueles que perderam mais, sejam olhados de uma forma diferenciada, principalmente as mulheres atingidas”, relata Varner.
Essa situação foi levada à Defensoria Pública do Espírito Santo, que constatou a exclusão das mulheres no processo de indenização, de acordo com a defensora Mariana Andrade Sobral.
“As instituições de justiça, em 2024, fizeram uma ação pública com o objetivo de buscar a reparação dessa violência de gênero que ocorreu dentro dos programas da Fundação Renova. Verificamos essa exclusão de acordo com algumas informações e dados que conseguimos da própria fundação. Percebemos que o problema estava no cadastro das pessoas. Disseram que apenas uma pessoa seria o chefe financeiro daquela família”, explica Mariana.
Outra ação que pode reverter a situação é a criação do Programa das Mulheres, previsto no novo acordo de reparação do governo federal. O projeto passará a reconhecer a discriminação, como a sofrida pelo grupo feminino de Regência, para garantir que todas as ações, ligadas à saúde a assistência social, sejam voltadas para elas.
Consultas das defensorias e dos ministérios públicos de Minas Gerais e do Espírito Santo estão sendo feitas para detalhar os próximos passos do programa, que deve ser lançado com as medidas que os governos precisarão tomar, frente aos desafios das mulheres.
Sem o dinheiro do pescado e sem acesso às indenizações, as mulheres de Regência tiveram que se reinventar nos últimos anos. Passaram a fazer bolos, pães e salgados em busca de renda para as famílias, uma vez que ainda não há laudos que permitam o retorno da pesca na região.
Além disso, elas tomaram a iniciativa de montar a Associação de Piscicultura da Foz do Rio Doce (Apford), que trabalha com a criação de tilápias em tanques, para ter alguma fonte de renda. Uma forma de não abandonar por completo a pesca.
“Esperamos continuar esse projeto para, pelo menos, ter peixe saudável. A água é de poço, boa e de qualidade. Mas precisamos agora de ajuda. É uma das possibilidades que vemos para melhorar nossa vida. Ainda é um grupo pequeno e precisamos da vinda de mais mulheres”, afirma Eliá Moraes Laurente, vice-presidente da Apford.
Porém, essa luta também tem desafios. Recentemente, o equipamento que mantém os tanques de piscicultura oxigenados. Por isso, elas ainda não conseguiram realizar a primeira pescaria e venda de tilápias. Nada que faça o grupo desanimar.
Eliá Moraes Laurente
Vice-presidente da Associação de Piscicultura da Foz do Rio Doce (Apford)
"Nós lutamos por todas. Então, são todas por um e uma por todas, para que sejamos reconhecidas como as marisqueiras que somos, né? Essa é a nossa luta!"
Mas, por enquanto, ainda resta a tristeza da destruição provocada pela lama. “Ah, a minha vida? Transformou-se de alegria para tristeza. Tristeza de ver o rio e não poder mais entrar. Tristeza de ver o mar e não ter prazer de vê-lo com a cor que tinha antes. Tristeza de não poder mais comer um peixe. Tristeza de ver a vila desmotivada, sem perspectiva. Depois daquela lama, só ficou a desmotivação”, lamenta a moradora Adélia Pestana Pinheiro Barros.
Thiana Siqueira
Empreendedora
"Hoje a gente vê só tristeza. A gente não pode tomar um banho no rio. Não pode comer peixe. Não pode nada. Acabou. A gente só vive assim, na lembrança mesmo"
O sonho maior continua sendo que Regência volte a ser, para valer, a “Vila Mágica”, com a rotina de pesca novamente liberada. Uma época que não sai da memória e é capaz até de fazer voltar o sorriso que anda sumido no rosto das moradoras.
“Os barcos saíam para a pesca às 3h30, 4 horas da manhã. Quando dava 15h, 16h, voltavam para o porto, trazendo os pescados para as mulheres que estavam em casa, as marisqueiras, limparem e descascarem. Só escutávamos o cantar dos pássaros, o som do mar, que é muito gostoso, e o barulho dos motores dos barcos, saindo e retornando ao porto”, relembra, com saudade, Adélia.
São essas lembranças e a esperança que a vila recupere a antiga magia que mais motivam as mulheres de Regência.
“Regência sempre foi um lugar singular, onde todo mundo tinha o suficiente para viver. Enquanto os maridos pescavam, as mulheres estavam limpando e vendendo os peixes. Com isso, consegui formar meus três filhos. E é isso que queremos reviver um dia”, diz Eliá Moraes.
Mulheres lutam por direitos e sonham com volta da 'magia' de Regência
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