Eram mais de 16h do dia 5 de novembro de 2015 quando a barragem de Fundão, em Mariana (MG), rompeu e despejou cerca de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério na natureza. O que se viu foi destruição e morte. A onda soterrou comunidades, vegetação e animais até mergulhar no Rio Doce. A tragédia ficou marcada como o pior desastre ambiental do Brasil.
Dez anos depois, a reportagem de A Gazeta fez uma expedição e percorreu mais de 600 quilômetros pelas quatro cidades capixabas mais diretamente atingidas para mostrar qual é a situação do rio e como estão as vidas das pessoas afetadas pelo episódio. O resultado dessa viagem você confere no documentário Rio de Lama e Luta (assista abaixo):
A barragem pertencia à Samarco, controlada pela BHP Billiton e Vale S.A, e ficava no subdistrito de Bento Rodrigues. Após o rompimento, formou-se uma enxurrada de lama que devastou essa comunidade e outras ao redor. Dezenove pessoas morreram, 250 ficaram feridas e mais de mil ficaram desalojados.
➡️RIO DE LAMA E LUTA | Infográfico mostra o caminho da lama no Rio Doce
Naquele primeiro dia, muitos capixabas ainda não tinham noção que o Espírito Santo também seria diretamente impactado.
Regiane Soares Rosa
Costureira e moradora de Baixo Guandu
'Ah, é lá em Minas Gerais, né? Uma coisa que destruiu, que matou pessoas, mas é lá'. A gente não tinha essa noção que ia atingir o Rio Doce, que ia chegar aqui
A lama aumentou em 1,5 metro o nível do Rio Doce, seguiu por cidades ao leste de Minas Gerais e, por volta das 17h20 de 16 de novembro, chegou ao Espírito Santo. Pouco tempo depois, os rejeitos atravessavam a Ponte Mauá, no Centro de Baixo Guandu, Noroeste do Estado, conforme registrou o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) da cidade na época.
“Muitas pessoas desmaiaram e tiveram que ser socorridas para o pronto-socorro. Foi uma tragédia tão, mas tão grande, de uma proporção tão grande, que foi assustador. Até hoje parece um sonho que a gente vai acordar e tudo isso passou, mas infelizmente são 10 anos”, conta a artesã Terezinha Guês, de Baixo Guandu.
Em 19 de novembro, os rejeitos chegaram a Colatina, fazendo com que o município suspendesse a captação de água do Rio Doce, e depois em Marilândia. No dia 22, a lama atingiu a Vila de Regência, em Linhares, onde o horizonte azul do mar deu lugar a uma água de tonalidade turva.
Hauley Valim
Morador da Vila de Regência
A parte que mais me marcou foi quando vi as primeiras ondas quebrando vermelhas. A gente estava acostumado com aquela cor do mar, azul e verde. A primeira onda vermelha que vi quebrando me afetou de forma muito intensa
Da população ribeirinha à urbana, o rompimento da barragem em Minas Gerais afetou milhares de pessoas que vivem em cidades cortadas pelo Rio Doce. Isso porque muitos moradores o utilizavam como fonte de renda, subsistência e hidratação.
“A gente plantava. Tinha um café que não eram grandes coisas, mas tinha. Tinha tudo, a fruta… Plantava, tinha mandioca, tinha batata, tinha abóbora. A gente plantava taioba também, muita coisa”, diz a agricultora Maria Gorete Moura Barrete, de 60 anos, de Marilândia.
Com a lama, desceram não só destroços, mas também sonhos, como relembra a agricultora Varner de Santana Moura, de Marilândia. “Desde pequenininha minha neta dizia que queria ser médica. Só que hoje é muito difícil realizarmos esse sonho, porque ficamos com terrenos improdutivos e perdemos nossas reservas financeiras.”
O impacto do mar de rejeitos afetou não só aspectos socioeconômicos, mas também culturais e ambientais. Em Regência, a vida próspera garantida pelas boas pescarias e pelo crescimento das atividades do surfe chegou a levar os moradores a chamarem a localidade de “Vila Mágica”. Porém, tudo mudou quando os rejeitos chegaram.
Nascido na comunidade, o presidente da associação de pescadores da vila, Leônidas Carlos, conta que criou todos os filhos com a renda da pesca, mas, há 10 anos, não tem mais coragem de sair para pescar. “Se eu for para lá, estou dando mau exemplo aos outros pescadores”, lamenta.
Moradores ainda sentem impactados da lama no dia a dia das suas cidades
Regiane Soares Rosa
Costureira
A gente via toneladas de peixes mortos, e o urubu não chegava. Aí, você parava para analisar a sabedoria da natureza. Antes da lama, o urubu faltava pouco entrar na água para pegar o peixe vivo. Mas, ali, tinha toneladas e ele não beliscou um
A bióloga Dannieli Firme Herbst, pesquisadora do Instituto Nacional da Mata Atlântica, avalia que esse temor em relação ao pescado foi provocado pela insegurança com a qualidade do produto.
“Nós, enquanto sociedade, também passamos por processos de estarmos nos alimentando de um pescado que não sabemos qual é a situação dele”, reflete.
O impacto na vida marinha temido pela população foi comprovado em pesquisas, como destaca o professor Fabian Sá, do Departamento de Oceanografia e Ecologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
“A gente viu uma diminuição da diversidade e um aumento de abundância de espécies oportunistas. Nas larvas de peixes, a gente continua vendo alterações morfológicas, com deformidades na região da cabeça e na barriguinha, que é uma destruição do trato digestório”, explica.
Já nas tartarugas que utilizam as areias de Regência para a desova, foram constatados, primeiramente, animais cobertos de lama e com os olhos irritados. Mas o real impacto só poderá ser visto entre 25 e 30 anos, segundo o biólogo do Projeto Tamar Alexandro Soares.
As disputas por indenizações foram outros problemas trazidos pelo desastre, como aponta Dannieli Firme.
Dannieli Firme Herbst
Pesquisadora do Instituto Nacional da Mata Atlântica
As pessoas começam a requerer os seus direitos de uma forma mais incisiva, com a chegada de diversos advogados, querendo ter um movimento oportunístico, muitas vezes para estar buscando indenizações das pessoas: quem é atingido, quem não é atingido, quem é pescador, quem não é pescador. Então, isso acabou acentuando conflitos nas comunidades, de diferentes municípios ao longo da costa, nessa região afetada, considerando a Região Norte do Espírito Santo
Para promover a reparação do Rio Doce, foi homologado em novembro de 2024, nove anos após a tragédia, um acordo de R$ 170 bilhões em recursos para diversas áreas, sendo R$ 132 bilhões em recursos novos, em ações de meio ambiente, saneamento básico e saúde.
Entre as obrigações previstas no acordo está a criação de um órgão de nível estadual para gerir os recursos enviados ao Estado. Foi aí que surgiu a Secretaria de Recuperação do Rio Doce (Serd), liderada pelo ex-prefeito de Colatina Guerino Balestrassi (MDB). “O objetivo é não misturar muito o orçamento estadual com o da recuperação, para a gente aplicar de fato o recurso do acordo na bacia hidrográfica”, ressalta o secretário.
A expetativa do secretário é que os recursos possibilitem a melhora da condição de vida nas cidades capixabas cortadas pelo Rio Doce.
“Estamos muito otimistas. Se os recursos de fato forem aplicados, como é a orientação do governo, vamos resolver o problema de saneamento básico, de reflorestamento, ter uma estrutura de monitoramento e acompanhamento, fazer com que os arranjos produtivos ali na bacia no entorno melhorem. Com isso, melhora a qualidade de vida”, avalia.
Entre os moradores que vivenciam os impactos da lama, há o medo de não ver a tempo o rio recuperado, mas também há esperança e luta.
Regiane Soares Rosa
Costureira
Quanto mais indignada fico, mais forte me sinto. Por quê? Porque, apesar de tudo o que atravesso, tem pessoas que eu ainda consigo ajudar. Tem pessoas que estão numa situação muito mais difícil que eu. Sei que não vou mudar o mundo, mas reconheço que fiz parte de uma luta que mudou a história da minha comunidade
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