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Para evitar anulação de processos, MPES recomenda que promotores peçam prisão preventiva

Para evitar anulação de processos, MPES recomenda que promotores peçam prisão preventiva

Alteração na legislação feita para impedir que juiz decida, por conta própria, transformar a prisão em flagrante em prisão preventiva, ainda enfrenta divergências em processos criminais e pode gerar anulações

Publicado em 11 de agosto de 2020 às 11:39

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Em audiência de custódia, presos em flagrante são ouvidos por juiz em 24 horas
Em audiências de custódias, presos em flagrante são ouvidos por juiz em 24 horas, e podem ter a prisão convertida em preventiva. (Reprodução/TV Justiça TJES)

Seis meses após a Lei Anticrime ter entrado em vigor no país, alterando normas dos processos criminais, a Corregedoria do Ministério Público Estadual (MPES) publicou uma recomendação aos promotores de Justiça para que, durante as audiências de custódia, façam o pedido de prisão preventiva aos acusados que estão presos em flagrante. A medida, segundo o órgão, é para evitar questionamentos de que houve nulidade na prisão preventiva realizada sem o requerimento do Ministério Público, como prevê a nova lei.  

Por conta desse argumento, segundo a corregedora-geral do MPES, Carla Viana Cola, que assina a recomendação, há um "grande número de habeas corpus impetrados junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES), questionando a legalidade de prisões preventivas decretadas de ofício pelo magistrado, durante as audiências de custódia". 

Ela cita a alteração do artigo 311 do Código de Processo Penal, feita pela Lei Anticrime, que retirou a possibilidade de o juiz decretar a prisão de ofício – ou seja, por conta própria –, sem ouvir o Ministério Público, que é o titular da ação penal.

Destaca também uma decisão judicial do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), de julho deste ano, que concedeu habeas corpus a um preso por este motivo, e também outra jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

"Considerando precedentes jurisprudenciais já existentes nos tribunais superiores, no sentido de que o sistema penal acusatório não se compatibiliza com a decretação da prisão preventiva pelo magistrado, sem a existência de requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou de representação da autoridade policial", disse a recomendação.

Ao ocorrer uma prisão em flagrante, o procedimento previsto na lei é de que o acusado seja encaminhado, em 24 horas, para uma audiência de custódia, na qual ele é ouvido por um juiz, com a participação do Ministério Público e da defesa. Nessa audiência, o magistrado decide sobre a necessidade de manter o acusado preso. Caso ele preencha os requisitos da lei, a prisão pode ser convertida em temporária, de cinco dias, ou preventiva, que não possui prazo.

MUDANÇAS NA PANDEMIA

Desde o dia 23 de março, contudo, a realização de audiências de custódia está suspensa no Espírito Santo, por conta da pandemia de Covid-19. Com isso, segundo o TJES,  os autos de prisão em flagrante estão sendo decididos pelos magistrados no modelo anterior, em que somente se examina o documento sobre a prisão em flagrante delito, sem entrevista ao autuado, conforme a Recomendação 68 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O TJES não respondeu sobre o citado "grande número de habeas corpus impetrados" para pedir a soltura desses acusados, com base em suposta ilegalidade de prisões preventivas decretadas por iniciativa dos próprios magistrados, e se houve aumento. 

Afirmou, entretanto, que se trata de uma questão jurídica controvertida, que possui divergência doutrinária, assim como tantas outras surgidas com a nova Lei Anticrime. "Tratando-se de questão jurisdicional, o TJES não emite posicionamento, em respeito à independência funcional de cada magistrado", afirmou, em nota.

O Ministério Publico Estadual foi procurado, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.

Segundo o presidente da Associação dos Membros do Ministério Público Estadual, promotor Pedro Ivo de Sousa, a recomendação da Corregedoria foi dada a partir de uma percepção dos procuradores criminais de que estão aumentando os questionamentos de acusados sobre as prisões em flagrante. Por isso a necessidade de uma orientação técnica sobre a mudança da lei.

"Uma das funções da Corregedoria é orientar e essa recomendação foi bem recebida por nós. Traz o Ministério Público para um papel central de colaboração, é algo que vem para um aperfeiçoamento da atuação. A alteração legislativa é recente, o que traz um novo paradigma para a atuação do Ministério Público e também do magistrado. Não representa nenhuma crítica à atuação dos juízes", disse.

Ele destaca que a mudança na Lei Anticrime pretendeu consagrar o sistema acusatório, ao preconizar que, para que o Estado exerça o direito de punir, exige-se que as partes produzam as provas e o juiz julgue com base nessas provas trazidas, não podendo cumular funções de investigar e julgar.

OS DETALHES DA NORMA

A redação anterior do Código de Processo Penal, para o artigo 311, previa que "em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial". Desde o final de janeiro de 2020, quando a Lei Anticrime passou a valer, a expressão "de ofício" foi retirada. 

No entanto, a interpretação do artigo 310 ainda faz com que juristas tenham diferentes interpretações sobre o tema. O artigo diz que "após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos (...)". 

Em consulta ao Diário da Justiça, a reportagem confirmou a existência de dezenas de habeas corpus apresentados questionando a impossibilidade da prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, ou seja, sem que haja o pedido do Ministério Público. No entanto, as decisões dos desembargadores Pedro Valls Feu Rosa, Sérgio Gama e Fernando Zardini têm sido de rejeitar esse argumento. 

"Entendo que ao converter a prisão em flagrante em preventiva o juiz não estaria agindo de ofício, mas provocado pela própria prisão em flagrante. Isto, pois, nessa modalidade de prisão preventiva, o auto de prisão em flagrante funciona como uma espécie de representação tácita ou implícita da autoridade policial. Diferentemente do Ministério Público, por exemplo, que requer a prisão preventiva, o delegado de polícia 'representa' pela sua decretação. Essa representação objetiva, justamente, levar ao conhecimento do juiz os fatos que fundamentam a adoção dessa medida extrema", alegou Sérgio Gama, em um julgado.

"Mesmo que o magistrado não realize a audiência de custódia, limitando-se a homologar a prisão em flagrante, o STJ tem firmado entendimento de que não há que se falar em nulidade [...]", pontuou Feu Rosa, em outra ação.

Para o mestre em Direito e professor da Multivix Rivelino Amaral, a nova norma determina expressamente que o Ministério Público precisa ser ouvido em relação à prisão e, se ele ficar inerte, sem se manifestar, pode gerar nulidade ao processo.

"O que vai prevalecer é a decisão do juiz, mas o Ministério Público tem que dar seu parecer sempre.  O juiz não pode 'converter' sozinho o flagrante em prisão preventiva, pois isso é, no fundo, o mesmo que 'decretar' de ofício, expressamente vedado. Há a imposição de imparcialidade para o juiz, que a Lei Anticrime buscou reforçar. A aplicação dessas novas normas ainda está em fase embrionária, então é normal que alguns entendimentos não estejam ainda consolidados", avaliou.

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