> >
A voluntária do ES que "ajuda a dar adeus" aos mortos pela Covid-19

A voluntária do ES que "ajuda a dar adeus" aos mortos pela Covid-19

Júllia Cássia faz parte do projeto Inumeráveis desde agosto do ano passado; colaboração também a ajudou a se sentir menos impotente na pandemia

Publicado em 8 de fevereiro de 2021 às 19:15- Atualizado Data inválida

Ícone - Tempo de Leitura min de leitura
Júllia Cássia teve o contrato de estágio suspenso em março do ano passado, junto com as aulas da Ufes
Júllia Cássia começou a participar do Inumeráveis após ter o contrato de estágio suspenso em março do ano passado, junto com as aulas da Ufes (foto tirada antes da pandemia). (Acervo pessoal)

Perder alguém querido nunca é fácil. Mas perder para a pandemia, quando não se pode fazer um velório ou abraçar quem compartilha da mesma dor, é ainda mais difícil. A velocidade com que a Covid-19 mata também é cruel: dezenas de milhares de pessoas acabam virando apenas um número.

Acompanhando tudo isso pelos jornais, com aulas e estágio suspensos havia cinco meses, a estudante Júllia Cássia se sentiu impotente. Até que, em agosto do ano passado, ela teve a oportunidade de participar do Inumeráveis – uma plataforma na internet que reúne tributos aos mortos no Brasil pelo novo coronavírus.

A ideia é retratar como a pessoa era e as boas lembranças que deixou. "Com o tempo, percebi que conseguia prolongar a despedida, que a doença não permite. Ajudamos a dar um adeus. A partir daí, senti que era parte integrante desse consolo", diz ela, que já colaborou com a escrita de aproximadamente 30 histórias.

Os relatos são inúmeros – basta lembrar de todas as vidas já perdidas no país. Sempre enviados por familiares ou amigos, eles passam por um processo de apuração, redação, revisão e edição antes de serem publicados. Cada voluntário atua de acordo com a respectiva área e conforme a própria disponibilidade.

Aspas de citação

Era filho de italiana, dono de belos olhos bem azuis e de um sorriso inesquecível, que ficava maior ainda com a vitória do Vascão

Em homenagem a Aguilar Lázaro, de 79 anos
Com base no relato da filha Luisa Chiquetto Fraga
Aspas de citação

"São sempre conversas muito emocionadas. As primeiras que eu tive, duraram mais de uma ou duas horas, porque os familiares lembram das memórias, descrevem as pessoas e acabam pedindo uma pausa. É um envolvimento muito grande", conta Júllia, que, aos 22 anos, estuda jornalismo na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

Júllia Cássia mora Euzania, de 46 anos, em Vila Velha. Nenhuma delas faz parte do grupo de risco para a Covid-19. (Acervo pessoal)

Sem poder impor preferências pessoais, a primeira história que ela escreveu foi a da carioca Barbara Gleise de Oliveira, que morreu aos 42 anos. "Eu fiquei impactada pela juventude dela. Ela era uma mãe, com uma filha de apenas oito anos. Além de uma mulher que lutou muito para ser dona do próprio negócio", lembra.

Aspas de citação

Seu sonho era voltar à Europa para visitar os filhos e netos que moram em Portugal. Chegou a dizer que iria após a pandemia, mas seus planos foram tristemente interrompidos

Em homenagem à Joanisse Cerqueira da Silva, de 78 anos
Com base no relato da sobrinha e afilhada, Ana Paula Lucas Mota
Aspas de citação

"Todas as histórias, embora sejam únicas, têm esse desejo latente dos parentes de descrever cada pedacinho da pessoa: manias, hábitos do dia a dia... É muito gratificante. A gente se emociona com todas as histórias, acaba levando um pouco daquelas pessoas e imaginando como elas eram", confessa.

A primeira vez que o caminho de Júllia se cruzou com o de um capixaba por meio do voluntariado foi em novembro do ano passado, quando ela leu a homenagem feita para Wilson Andriato, durante uma live do Inumeráveis nas redes sociais (veja abaixo). Nascido em Cachoeiro de Itapemirim, ele morreu aos 75 anos.

Porém, a única história conterrânea que coincidiu de a capixaba escrever é a da Creuza de Souza Costa, natural do município de Pancas. "Curiosamente, foi quando fizemos um mutirão para tentar dar os tributos como um presente de final de ano aos familiares. Foi uma das últimas que escrevi em 2020", recorda.

Na seção destinada ao Espírito Santo, o tributo mais antigo data de 18 de maio de 2020 – cerca de dois meses depois do início da pandemia no Estado. É o texto dedicado à linharense Selia Maria Spoladori, de 59 anos. Entre os mais recente, datando de 3 fevereiro de 2021, estão as histórias de Jorge Pedro e Laura Pinto Nunes, de 86 e 65 anos, respectivamente.

Aspas de citação

Gostava de ouvir, cantar e assoviar músicas antigas dos anos 60. Não dispensava uma novelinha nas horas vagas. Fez um fogão a lenha um mês antes de falecer. E teve a alegria de inaugurá-lo

Em homenagem a Daniel Resende Carvalho, de 69 anos
Com base no relato da filha, Walquiria de Resende Zani Carvalho Monteiro
Aspas de citação

Entre todas as homenagens, algumas se destacam, como a do médico Raul Lima dos Santos, de apenas 28 anos. Ele morreu no município de São Mateus, no dia 25 de julho de 2020, mesmo sem ter comorbidades. No outro extremo de idade, há três homenageados com 94 anos: Ordina Teiche PereiraGumercindo Lopes de Souza e Ovídio Tragino.

70 anos de casados: casal morreu com dois dias de diferença

Além de ser um dos mais velhos entre os homenageados capixabas no Inumeráveis, Ovídio Tragino comemorou bodas de vinho ao lado da esposa Luíza Bezerra Tragino, de 90 anos. De acordo com a neta, eles se completavam nas diferenças.  "Luíza foi primeiro, para recebê-lo com carinho e cuidado, assim como o tratava em vida. Dois dias depois, Ovídio partiu ao encontro da companheira", lembra Luana da Silva Tragino.

Ao ler os textos, outros também sobressaltam aos olhos, por detalhes: Bernadete Cristiana Marques precisou ser enterrada em um caixão doado, devido à situação humilde da família; Elza Ramalhete lutou bravamente contra a doença por 53 dias intubada; Hamilton dos Santos Noya deixou um filho de só seis meses; e Mirian Fernandes da Silva já tinha encomendado o bolo do próprio aniversário.

Tão próxima dessas e outras histórias, seja lendo ou escrevendo, a capixaba Júllia Cássia garante que é impossível a indiferença. "A cada familiar que falava, a minha consciência foi se tornando ainda mais sensível. Sobre como eu estava agindo, se estava fazendo o vírus circular, pensando nas pessoas, no meu entorno", revela.

Aspas de citação

O baixinho de coração grande gostava de manter a fama de bravo: falava alto, brigava, se enfurecia. Nunca pedia desculpas diretamente: demonstrava arrependimento por meio de gestos carinhosos e acolhedores

Em homenagem a Walbert de Seixas Sousa, de 73 anos
Com base no relatos dos filhos, Cleybert e Clezya Sales Seixas Grazziotti
Aspas de citação

Apesar de não ter perdido ninguém para o novo coronavírus, a estudante viu tios e primas se infectarem. "Minha mãe e eu (moradoras do bairro Coqueiral de Itaparica, em Vila Velha) não pegamos. Ainda assim, tive muitos dias desesperadores, em que não conseguia vislumbrar quando tudo poderia voltar ao normal", confessa.

A esperança chegou no último dia 17 de janeiro, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisaaprovou o uso emergencial da Coronavac e da vacina de Oxford/AstraZeneca. "Meu desejo é que daqui para frente as pessoas valorizem mais o momento presente ao lado de quem amam, respeitando o espaço e a existência de todos", conclui Júllia.

Este vídeo pode te interessar

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais