Felipe Storch Damasceno é economista com mestrado e doutorado em Administração e Contabilidade. É professor de Economia e pesquisador dos impactos sociais e econômicos de políticas públicas. Também é consultor, palestrante e comentarista na CBN Vitória

A urgência brasileira diante da nova geoeconomia global

Enquanto potências redesenham o comércio mundial, o Brasil mantém modelo primário e perde espaço nas cadeias de valor mais estratégicas

Publicado em 30/07/2025 às 09h01

O cenário do comércio internacional está sendo redesenhado sob forte influência da política comercial dos Estados Unidos, que vêm adotando uma postura cada vez mais agressiva. Por meio da imposição seletiva de tarifas e da celebração de acordos com parceiros-chave, os norte-americanos estão moldando uma nova lógica de inserção produtiva baseada na redução de vulnerabilidades externas, no estímulo à reindustrialização e na criação de vantagens competitivas artificiais para seus produtos. Como resultado, o mundo está sendo empurrado para uma reorganização de fluxos comerciais, preços relativos e padrões regulatórios, na qual a posição de cada país tende a se redefinir. O Brasil, entretanto, permanece alheio a esse movimento, com uma inserção limitada, dependente de poucos mercados e pouco integrado às cadeias globais de valor.

Nesse novo tabuleiro, os Estados Unidos não apenas impõem tarifas mais elevadas a determinados produtos estratégicos de seus parceiros (afetando diretamente a competitividade das exportações brasileiras no mercado norte-americano) como também firmam acordos que reduzem barreiras para seus próprios produtos em mercados externos. Isso coloca o Brasil diante de um risco duplo: de um lado, vê sua presença nos EUA ameaçada por tarifas que alteram os preços relativos e favorecem concorrentes globais; de outro, enfrenta maior concorrência nos mercados em que os produtos norte-americanos ganham acesso facilitado, enquanto os brasileiros continuam sujeitos a restrições alfandegárias, sanitárias e técnicas.

Contêineres
Contêineres no pátio do Terminal Portuário de Via Velha (TVV). Crédito: Carlos Alberto Silva

A parceria estratégica entre Estados Unidos e União Europeia é emblemática nesse processo. Desde 2021, o Conselho de Comércio e Tecnologia (TTC) tem servido como plataforma para alinhar padrões regulatórios e industriais entre as duas potências, com foco em áreas sensíveis como tecnologia digital, energia limpa e segurança da cadeia produtiva. Mais recentemente, esse alinhamento político foi aprofundado com um novo acordo comercial emergencial, que combina concessões tarifárias pontuais com compromissos mútuos de investimentos e compras públicas. Trata-se de uma arquitetura econômica que reforça a posição norte-americana nas cadeias globais e tende a marginalizar países que, como o Brasil, ainda não conseguiram se integrar de forma consistente às redes de valor mais complexas e estratégicas do comércio internacional.

Nesse cenário, o já delicado acordo Mercosul-União Europeia sofre pressão adicional. A negociação, concluída tecnicamente em 2019, mas ainda sem ratificação, enfrenta hoje não apenas barreiras internas do bloco europeu, mas também uma mudança estrutural na lógica das parcerias internacionais. Países como França, Áustria e Irlanda têm elevado o tom das críticas ao acordo, alegando que os compromissos ambientais assumidos pelos países do Mercosul são insuficientes diante das novas exigências climáticas globais. A preocupação com o desmatamento na Amazônia e a ausência de mecanismos robustos de monitoramento e sanção ambiental tornaram-se obstáculos centrais, não apenas do ponto de vista simbólico, mas também técnico, dentro das novas diretrizes da política comercial europeia.

O contraste entre a agilidade com que Estados Unidos e União Europeia constroem arranjos comerciais e tecnológicos e a estagnação do acordo Mercosul-União Europeia reflete a reduzida relevância do bloco sul-americano para o comércio global. O Mercosul representa uma fração modesta das trocas internacionais e segue com baixa inserção nas cadeias globais de valor, o que diminui seu poder de barganha e a atratividade de parcerias mais profundas. Diferentemente de regiões como o Sudeste Asiático, o Oriente Médio ou mesmo o Japão, que têm firmado acordos amplos de integração comercial, logística e tecnológica com grandes economias, o Mercosul permanece restrito a um modelo de inserção baseado na exportação de produtos primários, sobretudo alimentos e commodities minerais.

Apesar da crescente demanda global por alimentos e energia (o que mantém o Brasil como fornecedor estratégico), não há, por parte de países desenvolvidos ou asiáticos, movimentos concretos para firmar tratados comerciais abrangentes com o Brasil ou com o bloco sul-americano. A explicação está na limitada sofisticação da pauta exportadora, nos gargalos estruturais e na instabilidade regulatória da região. Enquanto o mundo avança para um comércio pautado por sustentabilidade, inovação, previsibilidade e integração produtiva, o Brasil e seus vizinhos seguem presos a uma lógica de curto prazo, exportando insumos, mas sem gerar vínculos estratégicos duradouros. Permanecer alheio a essa transformação é aceitar, passivamente, um papel periférico na nova geoeconomia.

Enquanto diversas economias emergentes avançam em estratégias de integração comercial e posicionamento nas cadeias globais de produção, o Brasil permanece com uma participação limitada e pouco dinâmica no comércio internacional. Em 2024, as exportações brasileiras representaram menos de 1,1% do total global, uma participação estagnada há décadas. A pauta exportadora segue concentrada em produtos primários, com reduzida agregação de valor e baixa densidade tecnológica. Esse perfil, embora mantenha o país como fornecedor relevante de alimentos e matérias-primas, restringe o seu peso estratégico em um mundo cada vez mais orientado por inovação, eficiência logística e cooperação produtiva transnacional.

A falta de protagonismo brasileiro nas redes globais de produção não é um efeito colateral da globalização, mas reflexo direto de fragilidades estruturais internas que minam a competitividade da economia. O elevado custo do capital, a instabilidade normativa, a complexidade tributária e as deficiências logísticas criam um ambiente hostil à produção integrada e à exportação de bens de maior valor agregado. A ausência de uma política industrial coordenada e voltada para a produtividade e a inovação (substituída por iniciativas setoriais dispersas e pouco transparentes) apenas aprofunda os desequilíbrios e reduz a atratividade do país como destino de investimento produtivo.

Enquanto isso, países como Vietnã, México, Indonésia e até mesmo algumas economias africanas têm conquistado espaço crescente no comércio mundial ao implementar reformas estruturais, promover abertura comercial seletiva e integrar-se às novas cadeias industriais e tecnológicas, aproveitando a realocação de fábricas e centros de distribuição motivada por estratégias de diversificação de risco adotadas pelas grandes potências. O Brasil, por sua vez, assiste a esse movimento global sem conseguir aproveitar a janela de oportunidades que a reconfiguração geoeconômica tem proporcionado.

Não é mais possível ignorar que a economia mundial já opera em uma nova lógica. Sustentabilidade, segurança energética, digitalização, inteligência artificial e tecnologias limpas deixaram de ser diferenciais para se tornarem exigências estruturais nos processos de comércio e investimento. A integração produtiva exige estabilidade institucional, previsibilidade, eficiência regulatória e políticas que incentivem a formação de capital humano qualificado. O Brasil, com sua escala territorial, diversidade produtiva e abundância de recursos, reúne as condições potenciais para avançar, mas continua limitado por escolhas equivocadas e por uma inércia política que posterga reformas essenciais.

Para reverter esse quadro, é necessário criar um ambiente econômico mais competitivo e aberto ao investimento de longo prazo. Isso passa por reduzir o custo de oportunidade do capital, garantir segurança jurídica, aprimorar a logística e simplificar o sistema tributário. Também requer fortalecer a articulação entre empresas, universidades e centros de pesquisa, de modo a gerar conhecimento aplicável, valor tecnológico e inserção em segmentos mais dinâmicos da economia global. Em vez de depender de políticas pontuais e de incentivos isolados, o país precisa construir uma estratégia abrangente, baseada na produtividade, na inovação e na integração inteligente aos fluxos internacionais.

A recuperação da relevância internacional do Brasil não será alcançada por discursos ou declarações diplomáticas, mas por reformas efetivas e planejamento de Estado. A política comercial precisa deixar de ser tratada como instrumento retórico e passar a ser parte de uma agenda coordenada de desenvolvimento. O mundo está se reorganizando rapidamente, e os países que não acompanham essa transformação correm o risco de se tornarem coadjuvantes no cenário global. O Brasil ainda tem capital geopolítico, econômico e ambiental para reagir, mas precisa fazer, com urgência, o dever de casa.

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