
A proposta de tributar os rendimentos de Letras de Crédito Imobiliário (LCI) e Letras de Crédito do Agronegócio (LCA) pode parecer, à primeira vista, uma simples correção em uma distorção do sistema tributário brasileiro. No entanto, seus efeitos podem ultrapassar a lógica fiscal e provocar mudanças relevantes na forma como o capital é alocado no país — afetando não apenas os investidores, mas também setores inteiros da economia que hoje dependem do crédito gerado por esses títulos.
As LCI e LCA foram criadas como mecanismos para estimular o financiamento ao setor imobiliário e ao agronegócio, respectivamente. Sua grande vantagem sempre foi a isenção do Imposto de Renda para pessoas físicas, o que elevava seu retorno líquido frente a outros ativos de renda fixa com riscos semelhantes, como os CDBs ou títulos públicos. Essa vantagem fiscal fez com que esses papéis se tornassem parte central da carteira de investidores conservadores e moderados ao longo da última década.
A proposta em discussão pretende acabar com essa isenção, aplicando a mesma tabela regressiva de Imposto de Renda usada em outros ativos de renda fixa, com alíquotas entre 22,5% e 15% conforme o prazo da aplicação. A justificativa oficial é a busca por maior equidade e simplicidade no sistema tributário, eliminando privilégios que hoje só beneficiam uma fração dos instrumentos financeiros disponíveis.
Entretanto, o efeito dessa mudança vai além. A partir do momento em que LCI e LCA perdem sua principal vantagem competitiva (a isenção de IR), o retorno relativo desses ativos cai, o que desencadeia uma realocação automática dos portfólios. Gestores e investidores individuais, sempre em busca da melhor relação risco-retorno líquido, deverão buscar novas alternativas.
Entre essas alternativas, destacam-se debêntures incentivadas de infraestrutura, que seguem isentas de IR, além do próprio Tesouro Direto e de fundos de investimento com carteiras mais diversificadas. Em alguns casos, o investidor poderá até aceitar uma dose maior de risco — migrando parte de seus recursos para a renda variável, fundos imobiliários ou multimercados.
Esse movimento, ainda que legítimo do ponto de vista do investidor, tem implicações diretas na economia real. As LCI e LCA são instrumentos de captação usados por bancos para financiar as operações de crédito imobiliário e agrícola. Quanto maior a captação, maior a capacidade de concessão de crédito com custos mais baixos. Se a atratividade desses papéis cair, os bancos terão mais dificuldade em captar recursos para essas finalidades, o que pode levar a um aumento nas taxas de juros dessas linhas ou a sua retração.
Na prática, isso significa que o financiamento habitacional pode ficar mais caro ou menos acessível, especialmente em programas que envolvem recursos privados, como o SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo). No caso do agronegócio, o efeito pode ser ainda mais sensível. Boa parte da produção rural brasileira, mesmo nas grandes empresas, depende de crédito bancário em momentos-chave do ciclo produtivo. Uma eventual redução nas LCA pode limitar a oferta de crédito no campo ou encarecer seu custo.
A importância dessas atividades para a economia brasileira é inegável. O agronegócio responde por cerca de 24% do PIB, segundo dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), e é responsável por grande parte das exportações e do superávit da balança comercial. O setor imobiliário, por sua vez, representa aproximadamente 6% do PIB, gera milhões de empregos diretos e indiretos e tem efeito multiplicador relevante sobre a cadeia de materiais de construção, mão de obra e serviços.
Do ponto de vista macroeconômico, a tributação das LCI e LCA tem ainda outro efeito: ela altera os incentivos à poupança doméstica. Em um país com histórico de juros reais elevados e onde grande parte do investimento produtivo ainda depende do sistema bancário, desestimular instrumentos de poupança direcionada pode ter impactos adversos sobre o financiamento de longo prazo.
Isso não significa que a tributação deva ser evitada a qualquer custo. É legítimo e necessário discutir o equilíbrio tributário entre diferentes instrumentos financeiros. No entanto, a mudança de regras precisa considerar o encadeamento econômico que certos ativos provocam. Se a arrecadação for ampliada às custas da redução do crédito em setores estratégicos, o custo pode superar os benefícios fiscais de curto prazo.
É desejável, portanto, que o debate sobre a tributação de LCI e LCA seja feito com uma visão sistêmica. O ideal seria que qualquer eventual fim da isenção viesse acompanhado de medidas compensatórias que garantam a continuidade do crédito para habitação e agropecuária, seja por incentivos alternativos, seja por novos mecanismos de fomento.
Em última instância, o investidor ajusta seus portfólios rapidamente, afinal, o mercado se adapta. Mas setores produtivos que dependem de crédito direcionado podem não ter a mesma agilidade. E isso, num país que ainda luta para ampliar o acesso à moradia e para sustentar sua liderança no agronegócio global, é um risco que não pode ser ignorado.
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