Publicado em 23 de janeiro de 2020 às 11:59
Especialistas em direito penal veem fragilidade na denúncia do Ministério Público Federal contra o jornalista Glenn Greenwald ao tentar ligá-lo diretamente ao hackeamento do Telegram de autoridades como o ministro da Justiça, Sergio Moro, e o procurador Deltan Dallagnol, da Lava Jato.>
Um dos principais argumentos da Procuradoria é que o fundador do site The Intercept Brasil orientou o grupo a apagar as mensagens que copiara e repassara ao veículo.>
Eventual orientação nesse sentido, para especialistas ouvidos pela reportagem, não configuraria participação no hackeamento em si, que àquela altura já tinha acontecido.>
Glenn foi denunciado pelo procurador Wellington Oliveira, na terça-feira (21), sob acusação de participar dos crimes de interceptação ilegal de comunicações e invasão de dispositivo informático alheio.>
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O jornalista também foi denunciado sob acusação de associação criminosa, cuja pena vai de um a três anos de prisão, por supostamente ter se juntado ao grupo para cometer as invasões.>
Nesta quarta (22), conforme antecipou o Painel, a defesa apresentou recurso ao juiz Ricardo Leite, da 10ª Vara Federal de Brasília, na expectativa de que o magistrado rejeite a denúncia.>
A peça do Ministério Público se baseia em um áudio encontrado em computador apreendido com um dos suspeitos.>
Pela transcrição do diálogo, um dos outros denunciados, Luiz Molição, pergunta ao jornalista como o grupo deveria proceder em relação a copiar mensagens de novas vítimas. Glenn se esquiva de responder, e diz que sua obrigação é proteger a identidade de suas fontes.>
"Como eu disse não podemos apagar todas as conversas porque precisamos manter, mas vamos ter uma cópia num lugar muito seguro... se precisarmos. Pra vocês, nós já salvamos todos [os arquivos], nós já recebemos todos. Eu acho que não tem nenhum propósito, nenhum motivo para vocês manter nada, entendeu?", afirma.>
Para o procurador, nesse trecho Glenn "indica que o grupo criminoso deve apagar as mensagens que já foram repassadas para o jornalista de forma a não ligá-los ao material ilícito, caracterizando clara conduta de participação auxiliar no delito, buscando subverter a ideia de proteção a fonte jornalística em uma imunidade para orientação de criminosos".>
Esse é o principal ponto de discordância dos especialistas consultados.>
"A narrativa do Ministério Público é que o jornalista atuou em auxílio [aos hackers], quando o hackeamento já havia ocorrido. Tem que ser analisado por que a conduta dele teria dado causa à consumação do delito. Se eu extraísse a participação dele, o delito teria ocorrido ou não?", indagou o criminalista Thiago Turbay Freiria.>
Segundo ele, há várias possibilidades teóricas para se discutir a relação de causalidade em um crime.>
"Em nenhuma delas eu visualizo conduta delitiva dele [Glenn], porque entendo que o crime já ocorreu, ele já tinha recebido as mensagens. Qualquer ação do Glenn ali é um pós-fato impunível. Se analisarmos qual conduta dele deu causa ao crime, absolutamente alguma", afirmou.>
Para o criminalista Pierpaolo Bottini, "a denúncia não descreve crime algum".>
"A participação em delitos exige a instigação ou a colaboração nos fatos e nenhuma mensagem de Glenn [transcrita na denúncia] trata disso", disse.>
Alaor Leite, professor-assistente na Universidade Humboldt de Berlim, diz que "participação significa participação num delito alheio, no qual o autor recebe auxílio psíquico ou material, por exemplo, de um terceiro".>
"Já que a participação é acessória, é preciso determinar o momento em que ela ocorre. Ela pode ocorrer, segundo a doutrina dominante, apenas até a consumação do delito. Depois de consumado o delito não é possível participar dele", disse.>
"Quem indica como esconder o corpo não participa do homicídio. Pode praticar outro delito", comparou para ilustrar o caso.>
No mesmo sentido, Adriano Teixeira, professor de direito penal da FGV-SP e advogado, disse não ver, em tese, uma eventual orientação para apagar as mensagens como uma participação no hackeamento.>
"Isso seria, no máximo, uma espécie de favorecimento real, outro crime do Código Penal que é quando, por exemplo, você auxilia um sujeito que acabou de furtar recebendo a mercadoria ou o ajudando a se esconder. Mas essa não é a imputação [a Glenn]. O simples fato de falar 'apaga' ou 'não apaga', a princípio, acredito que não poderia configurar participação no crime.">
Os professores ressaltaram que não conhecem toda a investigação e que suas análises são preliminares com base na denúncia divulgada pela imprensa e pelo Ministério Público Federal.>
"O simples fato de receber os dados e ter contato com a fonte não pode ser proibido, porque violaria o direito constitucional ao sigilo de fonte", disse Teixeira.>
Em razão do direito constitucional ao sigilo da fonte, a Rede acionou o STF no ano passado pedindo que Glenn não fosse investigado.>
Relator da ação, o ministro Gilmar Mendes concedeu decisão liminar determinando que os órgãos de apuração criminal se abstivessem de "praticar atos que visem à responsabilização do jornalista".>
Na avaliação de Freiria, a denúncia do MPF desrespeitou claramente a decisão de Gilmar. A questão ainda deve ser debatida no Supremo.>
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