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Publicado em 29 de dezembro de 2025 às 18:12
Após anos tramitando no Congresso Nacional até sua implementação, no fim de 2023, o piso salarial da enfermagem — para enfermeiros, técnicos, auxiliares e parteiras — parecia ser, enfim, o reconhecimento ao trabalho dessas categorias da saúde. No entanto, para tentar burlar a obrigatoriedade da remuneração mínima dos profissionais, hospitais e outros estabelecimentos no Espírito Santo estão usando empresas e supostas cooperativas como intermediárias na contratação de pessoal e, assim, não pagam o valor adequado pela jornada. O Ministério Público do Trabalho (MPT) investiga o caso. >
O projeto do piso, apresentado pelo senador capixaba Fabiano Contarato (PT), estabeleceu remuneração mínima de R$ 4.750 para enfermeiros, com jornada de 44 horas semanais, e valores proporcionais para os demais: técnicos de enfermagem, R$ 3.325 (70%); auxiliares e parteiras, R$ 2.375 (50%). A proposta original previa reajuste anual pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), mas foi vetado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e o salário segue congelado. >
Mas, independentemente de correções, há estabelecimentos de saúde — hospitais, clínicas e laboratórios — recorrendo a estratégias para não pagar nem mesmo o piso. Como criar cooperativas e empresas para contratar profissionais da enfermagem.>
"Existe um movimento que a gente entende como fraudulento que busca descaracterizar o vínculo de emprego para burlar o pagamento do piso", pontua a procuradora do MPT Carolina De Prá Camporez Buarque, titular regional da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret).>
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Ela conta que uma das estratégias é abrir uma empresa e colocar todos os enfermeiros e técnicos como sócios, pois quem é dono não faz jus ao piso. "Às vezes, o trabalhador nem sabe. Mas, na verdade, eles são empregados contratados por empresa interposta de fachada para burlar o piso da categoria e toda a gama de direitos da enfermagem", observa a procuradora do MPT, acrescentando que uma empresa aparece com mais de 100 sócios, isto é, os próprios trabalhadores.>
Atualmente, Carolina Camporez investiga o modelo de contratação adotado pelo Hospital Padre Olívio, em Vargem Alta, na Região Serrana do Espírito Santo, que utilizava a Invicta Gestão em Saúde Hospitalar para admitir enfermeiros e técnicos de enfermagem. Mas a procuradora afirma que o caso tem ramificações em Cachoeiro de Itapemirim e Rio Novo do Sul. >
Um ex-enfermeiro do hospital, que prefere não se identificar, reforça que, ao longo de quase dois anos trabalhando na unidade, nunca recebeu o piso. "Nem carteira assinada a gente tinha, nossa remuneração era por plantão. Então, nada de insalubridade, adicional noturno ou qualquer outro benefício. Não havia vínculo e quem nos pagava era a empresa terceirizada", descreve. A defesa do hospital nega irregularidades nos contratos. >
Douglas Lírio Rodrigues, diretor do Conselho Regional de Enfermagem do Espírito Santo (Coren-ES), reforça que, desde a aprovação do piso, há tentativas no mercado de não pagar a remuneração mínima. Houve, segundo ele, uma explosão de supostas cooperativas que estariam colocando enfermeiros e técnicos como cooperados, sem os direitos previstos nessa modalidade de organização, como a divisão de lucros, apenas para evitar fazer o pagamento devido dos profissionais. >
"O conselho tem acompanhado com atenção o crescimento de estruturas que se apresentam como cooperativas, mas que, na prática, adotam modelos irregulares de contratação, marcados por baixa remuneração, ausência de garantias mínimas, atrasos de pagamento e uma rotatividade extremamente elevada", ressalta Douglas, acrescentando que, quando denúncias chegam à entidade, os enfermeiros são orientados a procurar o MPT, a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) ou mesmo a polícia, pois ao Coren cabe apenas a fiscalização da atividade profissional. >
Uma técnica de enfermagem que atua na Grande Vitória e optou por não falar diretamente com a reportagem por medo de represálias no trabalho confidenciou, a uma paciente, que também não recebe o piso desde que foi admitida em um modelo de suposta cooperativa. >
Carolina De Prá Camporez Buarque
Procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT)Valeska Fernandes Morais, presidente do Sindienfermeiros-ES, diz que orienta a categoria para não embarcar em contratos que não pagam o piso, mas ela reconhece que, em determinadas circunstâncias, como nas cidades que têm apenas um hospital, o profissional acaba ficando refém da condição oferecida pelo contratante. A dirigente sindical ressalta a importância da denúncia para que a entidade possa adotar as providências em defesa dos trabalhadores. >
A procuradora Carolina Camporez ressalta que, para além das questões trabalhistas, o não pagamento da remuneração adequada tem repercussão na qualidade da assistência. Para ela, é óbvio que quem trabalha sem ter as garantias legais não vai prestar um bom serviço. >
A opinião é compartilhada por Douglas Rodrigues, do Coren-ES, sustentando que a baixa remuneração, a falta de garantias, atrasos de pagamento e rotatividade elevada representam risco direto para a sociedade porque comprometem o planejamento das equipes, a continuidade da assistência e a segurança dos pacientes.>
Douglas Lírio Rodrigues
Diretor do Coren-ESDouglas Rodrigues ressalta, porém, que os profissionais não são responsáveis por essa situação. "Na verdade, são vítimas de um modelo que se aproveita da necessidade imediata de trabalho e oferece condições que não atendem ao que seria minimamente digno e seguro.">
Nesse contexto, não há evidências de que recursos públicos têm sido usados em contratos irregulares, considerando que o Ministério da Saúde repassa verbas para inteirar o valor do piso. A União tem a atribuição legal de prestar assistência financeira complementar a Estados, municípios, ao Distrito Federal e entidades privadas que atendam, no mínimo, 60% de seus pacientes pelo Sistema Único de Saúde (SUS). >
"O Ministério da Saúde assegura que, em seus contratos diretos, o piso salarial da enfermagem é integralmente observado. Contudo, essa garantia não se estende automaticamente aos contratos firmados pelos Estados e municípios, que possuem autonomia financeira e administrativa, em respeito ao pacto federativo, para gerir suas próprias contratações", diz o órgão federal, em nota.
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A Assistência Financeira Complementar (AFC) da União, destinada a ajudar no cumprimento do piso salarial da enfermagem, possui regras de elegibilidade bem definidas, segundo o Ministério da Saúde. "Empresas de terceirização e cooperativas não podem receber essa assistência, mesmo que prestem serviços ao setor de saúde governamental. Dessa forma, profissionais celetistas vinculados a essas entidades têm o direito legal de receber o piso, mas o valor não será complementado pela AFC da União.">
O Ministério da Saúde afirma que mantém um processo rigoroso de acompanhamento e monitoramento dos repasses da assistência financeira aos entes federados e notifica aqueles que recebem os recursos irregularmente para que façam a devida recomposição à União. >
"No entanto, a fiscalização do pagamento efetivo do piso aos profissionais, especialmente naquelas relações de trabalho onde a instituição empregadora não tem convênio direto com a União, é atribuída aos próprios Estados, municípios e entidades sindicais da categoria", esclarece. >
A Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), por sua vez, explica que os servidores da enfermagem da rede própria já recebem acima do novo piso salarial. O órgão somente repassa os valores relacionados ao novo piso à rede filantrópica de saúde, nos hospitais gerenciados por Organizações da Sociedade Civil e alguns particulares. "Nesses casos, o repasse é de verbas federais, com base em planilha enviada pelo Ministério da Saúde e nas informações fornecidas pelos próprios hospitais", afirma, em nota. >
Mesmo com o indicativo de que cooperativas no Espírito Santo estariam realizando contratos irregulares com profissionais da enfermagem, o Sistema OCB/ES — pela lei, órgão técnico-consultivo do governo, guardião do registro cooperativista — não recebeu qualquer denúncia que trate sobre a remunerarão abaixo do teto dessa categoria. Apesar disso, alguns cooperados da área já procuraram o órgão para relatar problemas com o atraso de pagamentos e com relação à dificuldade de comunicação com a governança da cooperativa, sentindo falta de transparência na condução dos processos administrativos. >
O diretor-executivo do Sistema OCB-ES, Carlos André Santos de Oliveira, conta que, entre os problemas relatados, a maioria advém da não compreensão sobre o funcionamento societário de uma cooperativa, em que os cooperados atuam como sócio, sem uma relação celetista de subordinação. Mas, sempre que procurado, o órgão presta esclarecimentos. >
"Além disso, já foram elaborados pareceres e cartilhas orientativas, com o objetivo de alertar as cooperativas sobre o caráter imprescindível da conformidade com toda a legislação vigente que rege o funcionamento de uma cooperativa, assim como os demais dispositivos legais e éticos que guardam relação com sua atividade.">
Carlos André ressalta que o Sistema OCB-ES preza por um cooperativismo sério, conduzido de forma responsável e ética, que obedeça rigorosamente à legislação e que cumpra suas obrigações junto aos órgãos de controle e ao fisco.>
O diretor-executivo ressalta que o órgão é parceiro e apoiador do MPT, com o qual assinou um acordo de cooperação técnica, que, entre outras ações, visa combater as cooperativas irregulares e que não estejam registradas no Sistema OCB-ES. Mas destaca que, não detém o poder de liquidar ou intervir na gestão de uma cooperativa. >
"Por isso, se uma cooperativa, mesmo com registro em nossa organização, pratica uma irregularidade desconhecida por nós, somos favoráveis pela autuação e penalização de seus dirigentes no rigor da lei. As autoridades e órgãos competentes terão em nós um parceiro institucional que contribuirá com todas as informações que possuirmos da cooperativa infratora.">
A direção do Hospital Padre Olívio, de Vargem Alta, foi procurada por A Gazeta, e, por meio do advogado Ryan Pereira, diz que não pode se manifestar sobre casos em investigação. Mas assegura que todas as contratações que o hospital fez seguiram a legislação e estão dentro das normas. A reportagem não conseguiu contato com a empresa Invicta. O espaço segue aberto para manifestações. >
A prefeitura do município também foi consultada sobre a relação da administração com a instituição de saúde e para informar se verba pública é destinada para o pagamento da enfermagem. A Secretaria Municipal de Saúde de Vargem Alta, em nota, esclarece que o hospital é uma instituição privada, de natureza filantrópica, com o qual mantém convênio para a contratualização de serviços, visando garantir o atendimento à população.>
"Por meio desse convênio, a Prefeitura de Vargem Alta contrata e repassa recursos exclusivamente para a prestação de serviços especializados, como atendimentos em ortopedia, cardiologia, pediatria, pequenas cirurgias, eletrocardiograma e Raio-x e internações hospitalares.">
A administração municipal, ainda segundo a nota, não possui vínculo empregatício, ingerência ou responsabilidade sobre a contratação, gestão de pessoal ou política remuneratória adotada pelo Hospital Padre Olívio, incluindo a forma de contratação dos profissionais de Enfermagem. Essas decisões são de competência exclusiva da instituição hospitalar, que possui autonomia administrativa e financeira.>
Dessa forma, eventuais investigações ou apurações sobre relações trabalhistas e cumprimento da legislação cabem aos órgãos competentes, não havendo atuação direta ou governança do município sobre esses processos.>
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