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Negros se dedicam a abrir caminhos para outros negros

Negros se dedicam a abrir caminhos para outros negros

Em um cenário marcado por desigualdades, há capixabas que atuam na promoção de ações agregadoras para mulheres e homens pretos

Publicado em 20 de novembro de 2020 às 06:04

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Josy, Cláudia e Vinicius: negros que dão oportunidades a negros
Josy, Cláudia e Vinicius promovem oportunidades para as pessoas negras. (Montagem Geraldo Neto)

Josy, Vinicius e Cláudia são pessoas pretas de gerações diferentes que compartilham um pensamento em comum: o fortalecimento da comunidade negra no Espírito Santo por meio de ações de envolvimento, pertencimento, representatividade e respeito coletivo.

Em um cenário marcado pelas desigualdades sociais e falta de oportunidades, os três são alguns dos capixabas que promovem ações agregadoras. Vinicius Vasconcelos Ribeiro, de 27 anos, é fotógrafo profissional. Homem preto, sempre que possível, ele contrata homens e mulheres negras para ensaios de moda.

“Faço ensaio fotográfico de moda e tento colocar só mulheres ou homens pretos porque, em grande parte das lojas, o acervo de fotos é, geralmente, com pessoas brancas. Eu quero ressignificar isso. Quero que as pessoas pretas, assim como eu, se vejam em várias outras marcas, locais ou não”, explica.

As contratações dele são previamente autorizadas pela empresa que solicitou o serviço de fotografia. “Nunca tive nenhuma reclamação quanto às escolhas. Faço isso por uma questão de representatividade. Tem uma frase que acho importante que diz ‘se não me vejo, não compro’. É assim mesmo. Se a gente não consegue se ver naquele local ou produto, a gente consome menos”, declara.

De acordo com o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), no primeiro trimestre de 2019, a população capixaba era de 4.003,175 habitantes. Desse total, 51,7% são pardos, 35,9% são brancos, 11,6% são pretos, 0,4% são indígenas e outros 0,4% amarelos (de origem oriental). Ao todo, 634 não apresentaram declaração de cor.

Cláudia Meira de Queiroz, de 47 anos, é pedagoga, funcionária pública e empresária no ramo da moda afrocentrada. Ela, o marido e as filhas administram a Cacau Moda Afro, empresa especializada em roupas e acessórios que carregam as cores e a cultura do continente africano. A produção é feita na casa dela, no bairro Santa Teresa, em Vitória.

Há 10 anos no ramo, Cláudia contrata somente funcionários negros. A família toda é envolvida na empresa: o marido Jailson é designer, as filhas Jisely, de 20 anos, é fotógrafa, e Jaddy, de 14 anos, é modelo. Segundo Cláudia, tudo começou quando as filhas, ainda crianças, disseram que não se sentiam representadas nos produtos.

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A ideia surgiu da necessidade da gente conseguir os produtos voltados para nossa cultura. Minhas filhas começaram a questionar por que não encontravam nada que tivesse uma representatividade para elas. Nunca tinha uma boneca que parecesse com elas. Então, a gente começou a estampar elas nas próprias roupas

Cláudia Meira de Queiroz
Servidora pública e empresária
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O passo seguinte de Cláudia e do marido foi iniciar os estudos sobre a cultura da África, as cores e as estampas que poderiam estar relacionadas aos 54 países que compõem o continente. Assim como faz com os funcionários, Cláudia busca firmar parcerias e novas contratações de serviços com pessoas negras.

“Meu catálogo é formado por meninas da comunidade. Nós, pretos, não temos acesso a muita a coisa. As meninas pretas da periferia não têm acesso às passarelas ou às mídias, como a menina branca tem. Eu tenho que tirar essas pessoas da margem e colocá-las em ascensão. É o que eu gosto de fazer, divulgar essa cultura e valorizar”, destaca.

RACISMO

Claudia ressalta que todas essas iniciativas foram fortalecidas a partir das vivências que ela teve enquanto criança e nos ensinamentos transmitidos pela mãe dela, durante a infância. Além de Jisely e Jaddy, Claudia também é mãe da Jessie, de 1 ano. Ela conta que a família sempre discute questões sobre racismo e preconceito.

“O racismo é muito presente nas nossas vidas. Minha filha faz faculdade à noite. Teve um dia que ela desceu o morro correndo para não perder o ônibus. Quando ela chegou na rua, tinha uma viatura e ela parou e depois me disse: ‘mãe, meu coração gelou na hora. Se eu entro na rua correndo, o que ia ser de mim com uma mochila nas costas?’ Não aconteceu nada, mas a gente já se coloca no lugar de defesa."

DESAFIOS

Josy Santos, de 33 anos, é administradora e gestora de negócios. O foco do trabalho dela é fomentar o empreendedorismo desenvolvido por mulheres negras para que as clientes potencializem o negócio delas. Somente neste ano, ela já atendeu mais de 30 mulheres. A maioria das empreendedoras tem até 35 anos, possui formação técnica, mora em diferentes bairros periféricos da Grande Vitória, e saiu do mercado de trabalho para empreender.

“Estudos apontam que as mulheres enfrentam desafios na hora de empreender, e esses desafios são maiores quando falamos em mulheres negras. Entre eles, podemos destacar acesso ao crédito, baixo conhecimento técnico em gestão de negócios, o preconceito e as dificuldades em conciliar vida pessoal e negócio”, pontua.

Esses obstáculos apontados por Josy podem ser confirmados em um estudo desenvolvido pelo Instituto das Pretas, um laboratório de inovação em tecnologia social. Uma pesquisa recente identificou que 72% dos afroempreendedores do Espírito Santo nunca fizeram nenhuma formação, foram orientados ou tiveram seus negócios potencializados pelos organismos e instituições voltados para o desenvolvimento de negócios.

“Ninguém tem um programa para o desenvolvimento do afroempreendedorismo. O que me assusta é a necessidade de programas específicos não serem considerados, mesmo em 2020, depois de tantos anos de trabalhos e solicitações para que esses programas recebam investimento. Essa ausência condiciona a manutenção das desigualdades, quando falar de negócios é uma ferramenta de emancipação do povo preto", declara Priscila Gama, estrategista de inovação em tecnologia social. 

Além do Instituto das Pretas, Priscila coordena diversos projetos focados em inclusão, igualdade e potencialização de territórios periféricos.

Presidente do Instituto Das Pretas, Priscila Gama coordena mais de 10 projetos de ações afirmativas e impacto social
Presidente do Instituto Das Pretas, Priscila Gama coordena projetos de ações afirmativas e impacto social. (Jove Fagundes)

A maioria dos afroempreendedores, ressalta Priscila, oferta serviços, mora e atua em bairros periféricos, e compõe uma população que é historicamente limitada, oprimida por desigualdades que precedem a pandemia do coronavírus. Na avaliação da estrategista de inovação, as restrições causadas pelo enfrentamento ao vírus afetaram, sobretudo, os negros.

“Quando veio a pandemia e as pessoas negras não podiam executar os serviços pessoalmente, ou precisavam amplificar a comunicação em meio digital, elas não tinham o acesso tecnológico e nenhum vocabulário ferramental de transformação digital, ou seja, não sabiam operacionalizar nem sua comunicação e nem operar o seu processo de escoamento, de planejamento em meio virtual”, revela.

PERFIL DO EMPREENDEDOR

O Sebrae-ES e a Agência de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas e do Empreendedorismo (Aderes) foram questionados a respeito dos programas de incentivo voltados aos empreendedores negros do Estado, mas nenhuma resposta foi enviada sobre o assunto.

Sem apresentar recorte de cor e raça, o Sebrae-ES informou que o Estado tem 578.476 empreendedores (empresários, potenciais empresários e produtores rurais). Desse total, 64,79% são homens e 35,21% mulheres. A maioria tem entre 35 a 55 anos e ensino fundamental completo.

O QUE É ECONOMIA AFROCENTRADA?

Priscila Gama explica que afrocentro pode ser entendido como orgulho e o fundamento negro. É a consciência racial. Segundo ela, há um grupo que define afroempreendedorismo quando os negros produzem produtos e serviços afrocentrados, ou seja, itens pautados na ancestralidade, no orgulho e na potencialização, pensando na diáspora negra contemporânea.

“E existe outro grupo que entende que afroempreendedorismo é todo o empreendedorismo desenvolvido por pessoas negras, que não necessariamente tem o viés de afrocentro, de consciência e orgulho racial. O Espírito Santo é um Estado que tem grandes empreendimentos negros, afrocentrados ou não, com muitos anos de sucesso”, constata.

Priscila cita como exemplo o trabalho desenvolvido pelo Instituto das Pretas, um empreendimento sem fins lucrativos que funciona como um laboratório de inovação e tecnologia. “É afrocentrado porque todos os nossos projetos são pensados a partir dessa consciência de raça, de classe e das nossas vivências, é claro, como mulheres negras e periféricas”, frisa.

DÍVIDA HISTÓRICA

Para a doutora em Administração e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Juliana Teixeira, a experiência de economia criativa, afrocentrada e periférica adotada pelas pessoas negras nas comunidades do Espírito Santo, assim como em todo o território nacional, engloba práticas de resistência em relação a uma estrutura em que o Estado brasileiro se omitiu no que se refere à garantia do bem-estar social da população como um todo.

Juliana é pesquisadora da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Ufes (Neab/Ufes). Ela registra que, após a abolição da escravatura, ocorrida no dia 13 de maio de 1888, a população negra não recebeu amparo do poder público.

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Em vez de empregar a população que era escravizada, o Estado brasileiro financiou a vinda de imigrantes europeus para compor a mão de obra nacional. Esses imigrantes que compõem boa parte do aspecto cultural do Brasil vieram em condições muito diferentes das que vieram as pessoas negras nos navios negreiros

Juliana Teixeira
Professora da Ufes
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A história conta que o Brasil recebeu cerca de 5 milhões de escravos africanos ao longo de praticamente três séculos e meio de regime escravocrata. A sociedade brasileira foi a última a abolir a prática no continente americano. Homens, mulheres e crianças negras são considerados seres livres no território nacional há 132 anos.

Desde 2003, o Dia Nacional da Consciência Negra é celebrado como um marco de resistência e uma oportunidade para fomentar discussões sobre questões relevantes para o Movimento Negro. A data está regulamentada pela Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que incluiu o dia 20 de novembro no calendário escolar. O texto também tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas instituições de ensino.

“O que aconteceu ao longo dos anos foram esforços dessa população para entrar no mercado de trabalho formal e esses esforços se reproduzem até hoje. A população negra está em grande parte nos trabalhos mais precarizados, mais subalternos, que remuneram menos. Eles estão muito mais na base das pirâmides das empresas, estão muito mais nos setores de operariado que nos setores administrativos e estratégicos.”

Juliana complementa que, diante das dificuldades, os negros então desenvolveram alternativas de sobrevivência, muitas vezes, precarizadas quando comparadas ao modelo padrão de empreendedorismo. Diferente do empreendedorismo de oportunidade, quando o indivíduo tem capacidade de investimento, muitos negros empreendem por necessidade de sobrevivência, sem qualquer assistência.

“Economia criativa, afrocentrada e periférica são experiências que vão ser localizadas dentro da alcunha empreendedorismo, no sentido de pessoas que desenvolvem outras formas de subsistência que estejam fora dessa colocação como empregadas, mas sim como donas de seus próprios negócios. No entanto, é importante politizar o termo, uma vez que se afasta dos moldes de inovação permanente idealizados em discussões clássicas de empreendedorismo", explica Juliana.

No entendimento de Juliana, o poder público deve promover reparações institucionalizadas nas esferas municipal, estadual e federal. “Hoje, as políticas reparatórias podem ser acusadas de serem diferenciadoras ou beneficiadoras de determinados grupos, mas, na verdade, são reparações mínimas em relação ao que tem ainda de ser enfrentado enquanto política macro de sociedade”, avalia.

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