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Junto há 68 anos, casal morre por Covid-19 com três dias de diferença

Junto há 68 anos, casal morre por Covid-19 com três dias de diferença

Para família, nem a doença resultante da contaminação pelo novo coronavírus conseguiu separá-los

Publicado em 16 de junho de 2020 às 06:00

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Florentino Domingos Altoé, 92, e esposa, Ana Gertrudes Altoé, 93, mortos por covid-19 com 3 dias de diferença
Florentino Domingos Altoé, 92, e esposa, Ana Gertrudes Altoé, 93, mortos por Covid-19 com 3 dias de diferença. (Arquivo pessoal)

No dia 29 de maio, quando completou 68 anos de casado, Florentino Domingos Altoé, com 92 anos, não resistiu à violência do novo coronavírus. Três dias depois foi a vez de sua esposa, Ana Gertrudes Altoé, de 93 anos, completados em abril. 

Florentino e Ana  passaram as últimas semanas internados, em quartos ao lado, mas separados. E se foram sem que um soubesse da morte do outro.

Para os cinco filhos, que se acostumaram a vê-los sempre juntos, sem nunca terem presenciado nem mesmo uma pequena discussão, eles permanecem juntos pela eternidade. “A Covid-19 os levou, mas não os separou. Agora estão juntos na eternidade”, observa Silvana Altoé, uma das filhas do casal.

A história de amor de Ana e Florentino começou no interior de Vargem Alta, Região Serrana, no distrito de Jaciguá. Lá os avós deles tinham se refugiado quando vieram da Itália. Ainda pequeno Florentino enfrentou outra doença que dizimou muitas crianças, a poliomielite, e que deixou marcas em seu corpo. “Por conta das sequelas ele acabou morando na casa dos tios por muitos anos, já que na roça a vida era mais difícil”, relata Silvana.

Florentino Domingos Altoé, 92,  e esposa, Ana Gertrudes Altoé, 93, mortos por covid-19 com 3 dias de diferença
Florentino e Ana, ao lado dos pais, no dia do casamento, realizado às 6 horas para terem tempo de embarcar no trem para Cariacica, onde visitariam o Convento da Penha, em Vila Velha. (Arquivo pessoal)

Foi no mesmo distrito que ele conheceu a professora Ana e iniciou a sua família. O casamento de Ana e Florentino, segundo a filha, foi realizado às 6 horas, para que eles tivessem tempo de embarcar em um trem para Cariacica, para uma visita ao Convento da Penha, em Vila Velha.

Quando os filhos começaram a crescer, Florentino decidiu se mudar com todos para Campo Grande, em Cariacica. “Na época, para estudar você tinha que morar na casa de amigos e parentes. Ele, que tinha vivido nesta condição, queria que os filhos tivessem oportunidades e que morassem em seu próprio lar”, conta Silvana.

Em 1971, eles chegaram a Cariacica e foram morar em uma pequena casa. Alfaiate, Florentino teve que refazer sua clientela. Mas com a ajuda da esposa, que se tornou costureira, conseguiu educar os filhos. “Eles sempre fizeram questão que todos estudassem e foi o que aconteceu”, conta a filha Elvira Altoé.

As filhas relatam que o amor e o companheirismo de seus pais era uma marca na família. “Estavam sempre juntos. Assistiam televisão de mãos dadas. Eram muito carinhosos um com o outro”, lembra Elvira.

As filhas lembram que a mãe era uma devoradora de livros de gosto muito apurado. Um costume que herdou dos pais. “Em Jaciguá o trem passava atrás da casa do meu avô e o maquinista jogava o jornal O Globo, meu avô era assinante. Na casa dele tinha uma biblioteca, herança que deixou para os filhos e netos. Na casa da minha mãe e dos meus irmãos também temos nossas bibliotecas”, conta Elvira.

Florentino Domingos Altoé, 92,  e esposa, Ana Gertrudes Altoé, 93, mortos por covid-19 com 3 dias de diferença
Florentino  e Ana Gertrudes, com parte da família. (Arquivo pessoal)

Silvana acrescenta que presentes para sua mãe eram sempre livros, que ela lia com muita rapidez. “Era uma mulher muito culta. Gostava de um bom suspense, mas também de biografias. Acompanhava todos os jornais e debatia de física a política. E estava cheia de planos para quando saísse do hospital, dizia que ainda tinha muito a aprender”.

COMUNIDADE

De famílias católicas atuantes em Jaciguá, o casal participou da fundação da comunidade católica de São Judas no Centro de Campo Grande, para onde a família se mudou. Quando chegaram não havia uma unidade na região.

Segundo Silvana, as primeiras reuniões da comunidade aconteceram na varanda de sua casa e depois na casa de outros vizinhos mais antigos. “Eles trouxeram a experiência que tinham de atuação na comunidade em Jaciguá”, conta.

Euza Barros, atual presidente da comunidade de São Judas, lembra que o casal foi um dos que lutaram para conseguir comprar o terreno e depois ajudaram a construir, a cuidar e coordenar os trabalhos da comunidade católica. “Ela fazia as atas. Também desenvolviam um forte trabalho de voluntariado, com doação de cestas básicas”.

Eram ainda sempre ouvidos até por casais mais novos em busca de aconselhamento. “Eles se tornaram referência na comunidade. Podemos afirmar que nos sentimos órfãos com a partida deles. A comunidade ficou um pouquinho menor sem eles”, conta Euza, acrescentando que Ana Gertrudes sempre gostava de receber todos em sua casa com o tradicional picolé caseiro feito por ela.

Ana Gertrudes Altoé, de 93 anos
Ana Gertrudes Altoé, de 93 anos. (arquivo pessoal)

SINTOMAS DA DOENÇA

Há alguns anos que Florentino já estava acamado, resultado da síndrome pós-poliomielite, que aparece já na terceira idade, e ainda com Parkinson. Ele já dependia de cuidados até para se alimentar, mas mantinha a mente bem lúcida. Além dos filhos, o casal contava com a ajuda de duas cuidadoras. “Todos estavam tomando muito cuidado para evitar o contágio”, lembra Silvana.

No final de março, quando a pandemia pelo novo coronavírus já tinha sido decretada, Ana Gertrudes foi internada com uma úlcera e sangramentos. Acabou desenvolvendo uma pneumonia, ficou 17 dias internada, sendo onze na UTI.

Um mês após voltar para casa, quando ainda se recuperava lentamente, Florentino começou a apresentar febre, problemas na próstata e pneumonia. “Ele foi internado numa segunda, 18 de maio. No dia seguinte ela começou a ter febres e também foi internada. Ficaram em quartos separados, mas ao lado”, conta Silvana.

Um momento difícil para a família, que se revezava para cuidar deles enquanto estavam nos quartos. Três dos filhos acabaram contraindo o coronavírus. “Para amenizar a saudade do casal, os filhos gravavam áudios de Florentino para Ana e vice-versa”, conta Silvana.

No dia 23 de maio, o casal foi para a UTI sem saber que ambos estavam internados. “O quadro começou a se agravar, eles tiveram problemas renais”, lembra Silvana. No dia 29 de maio, quando completava 68 anos de casado, Florentino perdeu a batalha para a Covid-19. No dia 2 de junho, foi a vez de Ana.

Eles foram enterrados no túmulo dos pais.  “Nada separou os dois. Seguem juntos na eternidade”, afirmou Silvana

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