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Publicado em 7 de dezembro de 2025 às 07:13
No livro O Extraordinário, o personagem August Pullman deixa um conselho que vale para além da ficção: “Seja a pessoa capaz de sorrir no pior dos dias”. O capixaba Iarley Bermudes, morador do bairro Itacibá, em Cariacica, segue à risca esse ensinamento. Com 18 anos, 20 cirurgias e uma história marcada por resiliência e determinação, ele ficou conhecido como o “Extraordinário Brasileiro". >
O jovem nasceu com uma condição rara e leva sua trajetória para as salas de aula, as redes sociais e, em breve, sonha em levá-la ao tribunal, pois quer ser juiz. >
A identificação com o personagem August Pullman, do livro lançado em 2012, não está no isolamento, mas na quantidade de cirurgias e no apoio da família. >
“Nunca fui isolado nas escolas em que estudei, sempre recebi muito apoio. Vejo esse nome com carinho. As pessoas começaram a me chamar assim principalmente nas redes sociais, em comparação com o filme. É uma forma de representar minha história”, diz.>
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Desde os primeiros meses de vida, Iarley enfrentou uma rotina cirúrgica intensa. A condição — lábio leporino, fissura rara tipo 4, fenda labial bilateral e má formação dos ossos do crânio e da face — exigiu que ele e a mãe se mudassem temporariamente para Bauru (SP), onde funciona o hospital Centrinho, referência em anomalias faciais. “Teve um período em que eu fazia três cirurgias por ano. Hoje, faço em média uma”, diz ele, que passou por um procedimento invasivo em abril deste ano: retiraram um osso da bacia para implantar na boca.>
Uma das fases mais difíceis, segundo ele, foi em 2015. “Fiquei quatro meses com um expansor na bochecha. Era criança, estava começando a alfabetização. Minha mãe e eu estávamos em São Paulo sem estrutura, e meu pai ficou no Espírito Santo mandando o que podia”, relembra.>
Aos 11 anos, em 2018, Iarley passou a dar palestras sobre bullying e cyberbullying, usando a história dele como exemplo de motivação e superação. Apesar de nunca ter sofrido preconceito na escola, ele era alvo de ataques nas redes sociais, na época em que fazia transmissões ao vivo. Em seus discursos, ele adotou um bordão próprio: “A dor sempre passa”. “Nunca achei que uma dor não ia passar. Podia doer na hora, mas era só um momento. Eu sempre soube que ia superar”, completou. >
Ele também lançou um livro, chamado “O Extraordinário brasileiro”, em parceria com a mãe, Cristiane da Penha Bermudes. A publicação de 40 páginas reúne lembranças do nascimento, o impacto da condição genética, os bastidores das cirurgias e reflexões da adolescência. “A gente queria contar tudo isso para inspirar outras pessoas, famílias, e para que as escolas pudessem trabalhar com esse assunto com os estudantes”, explica.>
O jovem é estudante do curso técnico em Administração no Instituto Federal do Espírito Santo, em Cariacica, onde foi aprovado em segundo lugar geral. Agora, o próximo grande objetivo dele é cursar Direito em uma universidade pública e se tornar juiz. “Minha família precisou lutar por muitos direitos básicos. E, muitas vezes, quem deveria garantir isso era quem mais dificultava. Se eu estiver nessa posição, posso fazer diferente”, afirma. >
Se para Iarley a vida sempre foi marcada por superação, para a mãe dele, Cristiane da Penha Bermudes, a trajetória também foi de resistência e fé. O susto começou logo após o parto. “Quando ele nasceu, os médicos disseram que ele não sobreviveria. Chegaram a falar para eu me preparar para o óbito”, recorda.>
O diagnóstico, no entanto, já havia chegado meses antes, ainda na gestação, durante um ultrassom morfológico no sexto mês. “Eu chorei muito. Já sabia o que era uma fissura, conhecia de ouvir falar. Foi um choque, porque eu imaginava tudo o que meu filho teria de enfrentar”, lembra.>
O impacto maior, no entanto, veio no nascimento. Iarley nasceu sem cavidade nasal, com uma condição chamada atresia de coanas, que impedia a respiração normal. A partir dali, Cristiane mergulhou em uma rotina de internações e viagens. Foram meses longe de casa, sem rede de apoio, vivendo em alojamentos simples e, muitas vezes, enfrentando dificuldades financeiras. >
“Teve um período que chegamos a passar necessidade. O governo ajuda, mas a diária não cobre nem o básico. Já fiz vaquinha para conseguir custear hospedagem e alimentação. Nunca tive rede de apoio. Era eu, ele e meu marido. Mas sempre corri atrás do que fosse preciso. Aprendi a lutar por cada direito. Muitas vezes precisei acionar a Justiça para garantir coisas básicas”, relata.>
Se hoje o filho é reconhecido como palestrante e conhecido como o “Extraordinário Brasileiro”, Cristiane diz que a lição maior foi ensinada dentro de casa: não se esconder. "Ele nunca usou máscara, nunca se isolou. Sempre fiz questão de mostrar para ele que não havia motivo para vergonha. Por isso ele fala tanto que ‘a dor sempre passa’. Ele acredita e me ensina isso todos os dias".>
Orgulhosa, a mãe diz que o filho será um juiz diferente, com sensibilidade, porque já viveu muitas experiências “na pele”. “O Auggie, personagem do filme, se escondia atrás do capacete. Meu filho nunca se escondeu. Ele sempre quis mostrar o mundo e eu sempre fiz questão de mostrar para ele que não havia motivo para vergonha. Ele veio para fazer a diferença”, finalizou. >
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