"É a vontade de poder fazer o que eu gostaria que tivessem feito comigo". Esta frase define quem é Rebecka Martins Gomes, de 28 anos, e a motivou a se tornar juíza. Cadeirante, a jovem vê a posição como meio de combater a discriminação e garantir direitos no Brasil. Para isso, ela passou por provas e ininterruptas horas de estudo. Todas as etapas foram vencidas com êxito pela capixaba natural da Serra, que se tornou a mais nova juíza e primeira magistrada tetraplégica do Tribunal de Justiça de São Paulo. Para ela, a cadeira onde irá sentar a partir de agora significa ir além de um sonho, mas também o cumprimento de uma promessa feita para a Rebecka adolescente.
Aos 12 anos, ela sofreu um acidente de trânsito que mudou o rumo da própria vida. A batida a deixou sem movimentos do pescoço para baixo e "morta" por um tempo após uma parada cardiorrespiratória. Se antes existia o sonho de ser jornalista, a nova realidade a aproximou do judiciário, ao crescer o desejo de ajudar pessoas necessitadas de amparo jurídico e direitos básicos.
O desejo virou realidade ao receber o resultado no dia 4 de julho e ser empossada 17 dias depois (21 de julho) em um dos tribunais mais difíceis para ser aprovada. Com mais seis pessoas também deficientes, ela agora, de fato, fará a diferença que tanto almejava há 16 anos.
“Aprendi que Deus tinha tirado um sonho meu para colocar um que hoje eu acho melhor. E faz mais sentido para mim, me traz mais alegria. A injustiça e discriminação que sofri me ajudaram a ter vontade de impedir que outros também passassem pelo o que passei”, frisou a magistrada.
O acidente
A acidente automobilístico aconteceu quando a jovem seguia em um carro com o pai, Eduardo, a mãe, Alexandra, e a irmã, Sara. A família seguia do Espírito Santo em direção a Bahia, no Nordeste do Brasil. No meio do caminho, dois carros colidiram e um deles perdeu o controle, atingindo o automóvel onde estavam. O impacto foi praticamente todo em Rebecka, que fraturou duas vértebras do pescoço e lesionou a coluna. O pai quebrou as pernas, enquanto a irmã e a mãe não sofreram ferimentos graves.
Horas depois, ao abrir os olhos em um hospital, Rebecka viu uma vida já totalmente diferente da menina que estava no carro. O dia a dia não tinha mais as idas, sozinhas, à padaria, brincadeiras com amigas ou ir andar de um cômodo ao outro dentro da própria casa.
Para tudo, naquele primeiro momento, ela passou a precisar de ajuda. Hoje, ela movimenta os braços parcialmente, mas não mexe as mãos, e por isso digita com o dorso investido. Além de conseguir ser mais autônoma, seja por adaptações ou fisioterapia, ela entende o caminho percorrido como uma grande conquista, mas não só para ela.
“Quando chamou Rebecka (na leitura do resultado), eu congelei. A minha irmã começou a pular, a minha mãe começou a chorar e aí comecei a brigar pelo controle da televisão para conseguir enxergar direito a notícia. Depois fui orar e agradecer a Deus porque o meu sonho tinha se realizado", contou.
Rebecka Martins Gomes
Juíza
"Sou a primeira tetraplégica (do Tribunal) em São Paulo. Quando cheguei para a prova oral, tinha um pequeno palanque para a gente ir com a cadeira. E eles fizeram uma rampinha, já fiquei feliz porque percebi assim: 'Poxa, se eu não passar, pelo menos o próximo tem uma rampa'. Já está abrindo portas"
Base familiar
Com apoio de parentes e amigos, a vida de Rebecka foi se tornando mais leve durante a adaptação ao longo dos anos, entretanto ela e os pais ainda enfrentavam uma corrida contra o preconceito diariamente.
“No início foi uma ruptura dolorosa demais. Pensa, eu estava com 12 anos, no auge. É nessa fase que você começa a se sentir importante no mundo. Aí do nada você perde seus amigos, porque para de ir para à escola, tem que mudar o sonho de profissão. Não digo que o tetraplégico não possa ser jornalista, mas na minha nova realidade já não fazia tanto sentido assim para mim. Você tá lá linda, maravilhosa e do nada você para numa maca zero, respirando por um respirador, totalmente consciente”, recordou-se
Os obstáculos eram, e ainda são, físicos. Uma escada no lugar de uma rampa eram comuns, e até esperados quando ela começou a usar cadeira de rodas. Além das adversidades físicas, os olhares e comentários de conhecidos impactavam o psicológico.
“Muitas vezes a discriminação não é manifesta, intencional. Ninguém nunca chegou para mim e falou bem assim: "Nossa, que feio agora que está na cadeira de rodas". Mas já chegaram e falaram assim: 'Nossa, tão bonita para estar nessa situação'. E também ninguém diz: 'Não, você está de cadeira de rodas, você não vem', mas a pessoa põe uma escada ou então não cria meios de acesso e isso também discrimina”, relembrou a juíza.
Muitos duvidavam até mesmo da capacidade de Rebecka começar um curso universitário e sugeriram estudar à distância. Só que, além do direito à convivência, o amor por estudar deu forças para continuar. A família segue a religião evangélica congregando na Assembleia de Deus, tendo a fé como um norte.
Rebecka Martins Gomes
Juíza
"Nossa fé é de que se o Senhor quiser, um dia ele vai fazer um milagre. Mas isso nunca nos impediu de, enquanto não acontecer, continuar tentando viver da melhor forma possível"
Mãe e companheira
A grande companheira de Rebecka desde sempre é a mãe. A relação definida como ‘’simbiose’’ se fortaleceu desde 2009. Alexandra levava a filha todos os dias à faculdade e a esperava dentro da unidade de ensino até dar o horário de saída. A parceria era física, emocional e psicológica, tudo para oferecer o melhor à filha.
“Eu chorava todos os dias, todo dia mesmo. Eu ia para o banheiro da faculdade chorar, eu chorava dentro do carro, eu chorava em casa, eu chorava de noite. Eu chorava muito quando estava perto dela. Não existe nenhum tipo de 'glamour' nisso. As pessoas estão vendo a conquista, mas teve um processo complicado na faculdade, com portas fechadas, falta de rampas, subidas e descidas de cadeira de rodas, além de infecções, febre. Enfim, inacessibilidade para tudo", desabafou Alexandra.
Alexandra afirma que a felicidade não é apenas pela filha ser juíza e sim por vê-la alcançando sonhos. Para a grande parceira de Rebecka, se fosse em outra profissão, a gratidão seria a mesma.
“Eu sempre falei isso para a Rebecka e acho que vale para todas as pessoas com deficiência. Se você não fizer por você, ficar esperando o governo, alguém fazer alguma coisa, você vai ficar exatamente onde está. Muitas pessoas com deficiência sentem e têm dificuldade para prosseguir, porque nem elas, nem as famílias, aceitam a condição. Não no sentido de se acomodar, mas no sentido de enxergar uma realidade e se adequar a ela”, frisou Alexandra.
Para a mãe da juíza, o medo e vergonha devem ser enfrentados. “Na época do acidente, a Rebecka adolescente se sentia constrangida. Eu falava: "Olha, você não pensa na sua vida agora, pensa nela daqui a 5 anos. Como você quer estar? Porque todos os seus colegas vão estar vivendo a vida deles e nem lembrarão que você existe. Agora, aonde você quer estar onde daqui a 5 anos?", pondera.
Os conselhos da mãe foram ensinamentos para a Rebecka e a ajudaram a se manter firme em seus propósitos de vida.
Rebecka Martins Gomes
juíza
"Ser juíza era um sonho muito forte. Muitas meninas sonham em se casar. Eu também quero ter uma família boa, mas sonhava mais com a toga do que com vestido de casamento"
É para ajudar pessoas em condições similares ou com algum outro tipo de limitação, que a fez persistir até conquistar um lugar na cadeira mais importante em uma sala de audiência.
Mostrar e oferecer justiça à população fez os olhos de Rebecka brilharem durante a entrevista. Chegar onde chegou foi um enorme desafio repleto de momentos tortuosos. Agora, ela espera poder tornar mais linear o percurso de quem se inspira nela.
"O juiz não tem o poder de mudar o mundo, mas como o trabalho dele é solucionar conflitos, se eles se propuser a fazer aquilo da melhor forma possível, ele acaba consegue fazer a diferença, porque ele trabalha com problemas", frisou.
Rebecka Martins Gomes
Juíza
"Ninguém vai ao fórum porque está feliz ou dar um passeio. E isso me deu vontade de poder fazer o que gostaria que tivessem feito comigo"
Longo caminho
Ser aprovado em um dos tribunais mais concorridos do Brasil não foi da noite para o dia. Rebecka chegou a trabalhar como assessora jurídica no Fórum de Serra Sede enquanto cursava Direito. Apesar de já ter consciência sobre as dificuldades por conta da acessibilidade, ficou mais notável ao viver diariamente no mundo jurídico o que ela iria enfrentar.
“Na primeira audiência que fui fazer de caderninho, precisou uma escrivã, que teve boa vontade, em retirar uma planta do lugar para me encaixar na sala de audiência. E eu ali apertadinha consegui assistir a audiência”, disse a magistrada.
Os anos foram passando e ela focou somente nos cadernos para alcançar o sonho. Por isso, ela agradece aos familiares. Desde o acidente, ela contou com o apoio incondicional. O pai, Eduardo, professor de história e pastor, e a mãe Alexandra, dedicada ao lar, faziam o possível e impossível desde o começo.
A juíza ainda lembra com carinho do apoio do pai e também da irmã. "Ele sempre foi extremamente trabalhador. Sempre proveu tudo que ele pudesse para mim em termos conforto, me deu o suporte emocional e me sentia confortável de desabafar com ele. Brinco que eu tinha terapia de graça. A minha irmã também sempre me deu suporte. Ela é mais nova e é muito alegre, sempre a mais engraçada", lembrou.
Mesmo com o orçamento apertado, a mãe dela contou se lembrar do marido falando em fazer tudo o que Rebecka precisasse, sem se importar com a situação financeira.
“Como tetraplégica, eu não podia fazer qualquer tipo de prova e tinha muita limitação econômica. A pessoa com deficiência por lesão medular, paraplegia ou tetraplegia... tudo é diferente. A rotina de estudos como concurseiro também enfrenta diferenças. Além do concurso, os cargos também deveriam ser adequados à minha condição”, frisou.
Desde então, ela fez provas em diversos Estados próximos e também no Espírito Santo para o cargo de escrivã na Procuradoria Geral da União, prova de analista no Tribunal Regional Eleitoral capixaba e Secretaria de Estado de Controle e Transparência, onde chegou a ser aprovada, mas a vontade era mesmo ser juíza.
Em um dos concursos ela foi reprovada na fase de perícia. Apesar de ser um momento difícil, ela fala que não deve ser motivo de desistência.
“Um dos segredos que muitas pessoas erram e eu gostaria de passar essa mensagem porque me dói ver isso, é que elas não se sentem preparadas para um desafio, então acabam não tentando pelo receio da negativa e ser reprovada. Só que você pode ter uma eventual aprovação. Ainda assim, a reprovação também te ensina”, detalha a juíza de 28 anos.
Rebecka aponta que ser reprovado deve ser visto como um passo de conhecimento para a conquista. “Coisas que estudei para ser juíza do TRF 2, que eu não passei, eram questões da prova que passei para o TJSP”, contou.
A aprovação de Rebecka e mais seis pessoas com deficiência já surtiu efeito imediato: a sede do Tribunal de Justiça onde atuará passa por adaptações para recebê-los, com melhorias nos acessos e demais dependências.
Futuro
Um dia após tomar posse, Rebecka e os outros magistrados iniciaram o curso de formação na Escola Paulista da Magistratura. Se tornando uma referência com a grande conquista, a juíza diz que se sente apreensiva e com um enorme senso de responsabilidade. Porém, a gratidão supera esses sentimentos.
"Eu me sinto grata, porque era algo que eu queria. E quando eu falo isso, não é no sentido de 'ah, eu vou mudar o mundo', mas assim como eu preciso de referências positivas a humanidade, as pessoas também precisam. Então eu fico apreensiva, porém grata. Eu vejo isso como uma missão, acredito que Deus tem um propósito para cada pessoa na Terra. Um propósito especial para cada um", enfatizou.
O futuro agora é cumprir com honestidade e justiça os casos que chegarem até ela e também aproveitar a concretização do sonho.
"A honra não é minha. A honra é para o cargo que eu estou ocupando. E como é uma função séria, de autoridade, ela precisa ser honrada, senão as pessoas acabam desacreditando na Justiça. O sonho agora é vivenciar esse sonho, quero começar essa jornada. No momento, esse é o meu objetivo. Eu quero aproveitar cada dia, aprender como lidar com as pessoas em uma audiência", finalizou a juíza.
Residindo em São Paulo, Rebecka mora atualmente com a mãe em um apartamento e também procura novos tratamentos, processos de fisioterapia que a tornem cada vez mais independente. Alheio a isso, seguirá trabalhando para fazer com que a Justiça chegue a quem mereça.
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