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“Escolixo”: termo ganha força nas redes sociais e acende sinais de alerta

“Escolixo”: termo ganha força nas redes sociais e acende sinais de alerta

Crianças e adolescentes que trocam os estudos pela produção de conteúdo em redes sociais escancaram um novo desafio para pais, escolas e especialistas em saúde mental

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Yasmin Spiegel

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Publicado em 8 de agosto de 2025 às 06:00

Especialistas alertam para o risco da exposição de crianças e adolescentes como influenciadoras digitais
Especialistas alertam para o risco da exposição de crianças e adolescentes como influenciadoras digitais Crédito: Freepik

Em um podcast, uma dupla de entrevistadores questiona o convidado sobre investimentos, empreendedorismo e como chegar aos primeiros R$ 100 mil de faturamento. A conversa, comum dentro do setor financeiro, poderia até passar despercebida a quem não é da área se não fosse por um fator: a idade dos participantes.

Com 15, 16 e 17 anos, o entrevistado e os fundadores do programa, respectivamente, somam milhares de seguidores nas redes sociais. O mais novo, considerado referência pelos demais, afirma na descrição de seu perfil do Instagram que já faturou mais de R$ 300 mil e, nos stories, faz postagens diárias de alunos que mudaram de vida com a internet.

A conclusão durante o bate-papo de mais de meia hora foi de que a chave do sucesso é uma só: desprezar o método de ensino tradicional. “Saber quem foi Aristóteles não vai ajudar em nada na minha vida. Estudar Fórmula de Bhaskara, equação, a longo prazo, não dá retorno financeiro, não vou ganhar dinheiro com isso. Não quero fazer faculdade”. Essa foi só uma das declarações dadas que demonstram um ponto de vista claro de que empreender é muito melhor que estudar.

Os meninos citados não são os únicos a embarcar na jornada de herói que tem como objetivo o sucesso por meios não convencionais que, definitivamente, não envolvem estudos e carteira assinada. Dentro dessa gama de influenciadores mirins, também está outra jovem, uma paulista de 17 anos que afirma, em um dos vídeos feitos aos seus 1,6 milhão de seguidores no TikTok, que largou a escola pelo sucesso como influenciadora.

“Não tô de férias, eu abandonei a escola mesmo, povo chato. Não posso nem chamar de escolixo”, afirma a garota que divide o tempo entre produção de conteúdos de autocuidado com a divulgação de caça-níqueis digitais como o “Jogo do Tigrinho”, que tem uso proibido para menores de idade.

Inclusive, as próprias redes sociais também têm restrição de idade, o que não aparenta ser uma barreira. De acordo com a última pesquisa TIC Kids Online Brasil, realizada em 2024, 60% das crianças de 9 a 10 anos e 70% das de 11 a 12 anos possuem conta em pelo menos uma rede social, ainda que plataformas como WhatsApp, Instagram, TikTok e YouTube afirmem que não aceitam usuários com menos de 13 anos.

60%

das crianças no país possuem conta em pelo menos uma rede social

Presença digital traz riscos, dizem especialistas

Pesquisa realizada pela TIC Kids Online Brasil 2024, realizada pelo Cetic.br e NIC.br. aponta que, ao todo, 83% das crianças e adolescentes do país que têm acesso à internet contam com perfis próprios, o que, sem controle dos responsáveis, mostra um terreno fértil para a propagação de ideias que colocam a escola como entrave, e não como solução para um futuro melhor.

Para o professor Elizeu Bortolotti, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenador do projeto Infantia, que investiga o impacto dos riscos cibernéticos, a exposição de crianças como influenciadoras digitais pode se sobrepor ou substituir prioridades fundamentais da criança – que, no caso analisado, trocam as brincadeiras pelas ilusões de uma vida de ostentação proporcionada pela internet.

Bortolotti alerta que o comportamento dessas crianças acaba sendo moldado por um público anônimo e por algoritmos que reforçam padrões, o que pode comprometer a formação da identidade e dificultar a noção de privacidade. “Esses aspectos, quando não mediados, podem gerar impactos duradouros na autoestima, na percepção de mundo e nas relações sociais”, afirma.

Uso de telas prejudica habilidades

Atrelado à vida de influencer, está o contato constante com aparelhos digitais. Seja para gravar vídeos, seja apenas para rolar o feed de uma rede social, o uso excessivo das telas, segundo Elizeu, está associado a prejuízos em funções executivas, como atenção, planejamento e controle inibitório, habilidades essenciais para o aprendizado e a convivência social.

Elizeu Bortolotti, pesquisador da Ufes
Elizeu Bortolotti, pesquisador da Ufes Crédito: Divulgação

No campo emocional, estudos revelam aumento da prevalência de quadros de ansiedade, depressão e irritabilidade, especialmente quando há uso passivo e consumo de conteúdos inadequados.

Elizeu Bortolotti

Pesquisador da Ufes

A professora e pesquisadora em Educação e Tecnologias Ana Lúcia de Souza Lopes, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, também reforça que o uso excessivo das telas por crianças e adolescentes é um fenômeno mais silencioso, mas mais perigoso.

Para ela, o excesso de dopamina liberado por esse consumo constante gera dependência e impacta diretamente a saúde física e mental. “A gente tem crianças que desenvolvem transtornos do sono, irritabilidade e até obesidade. Isso tudo impacta o desenvolvimento integral e a aprendizagem”, alerta.

Ana Lúcia lembra que o problema vai além das crianças que se tornam influenciadoras: “Os pais acham que o filho está seguro porque está em casa, mas o perigo pode estar justamente dentro daquele dispositivo móvel”. A falta de controle e o desconhecimento dos pais sobre os riscos da exposição digital contribuem para quadros de cyberbullying, assédio e propagação de estereótipos estéticos nocivos.

Ana Lúcia de Souza Lopes, professora da Universidade Mackenzie
Ana Lúcia de Souza Lopes, professora da Universidade Mackenzie Crédito: Divulgação

Quantas jovens buscam aquele estilo de beleza que circula nas redes sociais? A busca por clínicas estéticas, por autoflagelação, por dietas perigosas. Isso gera doenças como bulimia e transtornos de comportamento. É uma questão de saúde pública.

Ana Lúcia de Souza Lopes

Professora da Universidade Mackenzie

Em meio a esse cenário, a legislação brasileira também enfrenta desafios para acompanhar as mudanças que surgiram com o advento das redes sociais. Segundo Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da SaferNet Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não está desatualizado, mas precisa ser aplicado à luz das mudanças de cenário e realidades vividas com a transformação digital.

“Hoje, já temos a exigência de alvarás judiciais para influenciadores mirins que atuam como artistas nas redes. Entretanto, ainda é preciso uma atuação integrada entre conselhos tutelares, profissionais da educação e canais como o Disque 100 para que possamos ver uma mudança completa dessa situação”, complementa.

Diálogo entre pais e filhos é essencial

Diante dos desafios trazidos pela expansão da presença infanto-juvenil nos espaços de influência digital, os especialistas afirmam que o caminho mais seguro segue sendo o diálogo e a compreensão entre pais e filhos. Para Elizeu Bortolotti, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), é essencial investir em uma mediação qualificada, em que as duas gerações discutam juntas o que é saudável no uso das telas, sem um discurso proibitivo.

“A qualidade da experiência digital importa mais do que a contagem de minutos. Uma criança pode passar uma hora em uma atividade de criação digital ou leitura interativa e ter ganhos, enquanto outra pode passar 15 minutos exposta a conteúdos que reforçam estereótipos, medo ou erotização e sair prejudicada”, afirma.

A professora e pesquisadora em Educação e Tecnologias Ana Lúcia de Souza Lopes, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, reforça a importância da relação entre escola e família e de uma abordagem interdisciplinar para o letramento digital. “Não é só proibir. É preciso educar para o uso crítico, ético e responsável das tecnologias. A gente não vai voltar atrás, a tecnologia está aí. Mas precisamos educar esse humano desde cedo, com consciência crítica. E isso começa com proteção, mas segue com orientação e diálogo”, conclui.

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