O cotidiano das nossas cidades, a cultura, a política, a economia e o comportamento da sociedade estão no foco da coluna, que também acompanha de perto as políticas públicas e suas consequências para os cidadãos

“Isso precisa mudar!”: dor, drama e desabafo de um pastor no ES

Líder religioso que atua na Praia do Canto, em Vitória, conta as barreiras, as dificuldades e a burocracia que ele e sua filha enfrentaram após a morte do seu genro e da mãe da vítima em um acidente na BR 101

Vitória
Publicado em 06/11/2025 às 03h11
Usiel Carneiro de Souza, pastor da Igreja Batista da Praia do Canto
Usiel Carneiro de Souza, pastor da Igreja da Praia. Crédito: Divulgação

Não, não se trata de uma reportagem o que o prezado leitor vai ler a seguir. Esta coluna abre espaço para que o pastor Usiel Carneiro de Souza, da Igreja da Praia, na Praia do Canto, em Vitória, relate em primeira pessoa os momentos difíceis pelos quais ele e sua filha passaram após o acidente automobilístico, ocorrido na BR 101 (sempre ela!), que vitimou o genro de 39 anos e a mãe dele. No texto, momentos de dor, drama e sensação de impotência diante da burocracia de órgãos oficiais no processo de liberação do corpo de mãe e filho. Eis que da dor da morte surge uma lição de vida. Conta, pastor Usiel!

Nestes últimos dias vivi uma grande dor. Meu genro, de 39 anos, pai de duas lindas meninas (9 e 5 anos), e a mãe dele morreram tragicamente num acidente na BR 101. O acidente foi noticiado e ocorreu por volta de 13h do último domingo, dia 2 de novembro.

Eu estava no templo da igreja onde sirvo como pastor. Em minutos estaria assumindo minha responsabilidade para pregar. Eram 19h30. Meu telefone tocou e vi que se tratava da minha filha. “Ela não me ligaria se não fosse realmente importante”, pensei. Saí do templo rapidamente para atender e receber a notícia do acidente e falecimentos pela voz em angústia e choro da minha filha. Jamais esquecerei suas palavras e a angústia e choro com que as pronunciou. Abandonei meu lugar de pastor para assumir meu lugar de pai. Corremos, eu e minha esposa, para ela. Aí passei a viver o que me motivou a escrever este texto. O que precisa mudar?

Meu genro morreu às 13 horas. Somente às 19 horas minha filha soube do fato e isto porque insistentemente ligou para o celular dele, até que um policial atendeu e lhe deu a notícia. Não sei o que houve. Não é complicado e de forma alguma difícil encontrar formas de contato com a família. O celular dele estava lá e poderia ser usado para uma chamada de emergência. Alguém se dedicou a cuidar de quem ficou? Não sei. Com que dedicação? Existe algum protocolo de cuidado? Como poderíamos melhorar isso?

Há líderes religiosos, comunitários, postos de saúde… não deveria haver uma rede que possibilitasse informação e cuidado para que a família recebesse o quanto antes e de forma humanizada a notícia que não gostaria de receber? ISSO PRECISA MUDAR! Precisa melhorar! Uma pessoa que morre deixa alguém, deixa família. Como sociedade precisamos valorizar o cuidado, a importância do acolhimento.

Everton Vicente e sua mãe, MAria Lucinete, morreram em acidente na BR 101
Everton Vicente e sua mãe, Maria Lucinete, morreram em acidente na BR 101. Crédito: Reprodução/@usielcarneiro

No dia seguinte, segunda-feira, 3 de novembro, fui com minha filha e a irmã do meu genro ao DML. Era preciso reconhecer o corpo do meu genro e da mãe dele. Eu estava em temor pois não tinha ideia do estado em que poderiam estar. Afinal, foi uma colisão de frente do carro dele com um caminhão. Obrigatoriamente elas teriam que ver os corpos. E viram. Acompanhei cada uma por sua vez. A cena foi melhor do que imaginei, graças a Deus, mas ainda assim nada agradável.

Não é fácil perder alguém que você tanto ama e que partiu tão inesperada e violentamente e ver seu corpo guardado numa gaveta fria com as marcas do que o tiraram de você. Não dá pra esquecer. Reconhecido os corpos, foram preparados alguns papéis. Fomos então orientados a ir à DHPP (Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa) para informar e receber novos documentos que nos permitiriam enterrar nossos mortos. Minha intenção seria acompanhar cada uma por sua vez ao prestarem as informações. Não é bom estar sozinho neste momento. Fui impedido de entrar. Eles tiveram que fazer isso sozinhas. Receberam então novos papéis que precisariam agora serem levados de volta ao DML.

Usiel Carneiro de Souza

Pastor da Igreja da Praia (Praia do Canto)

"Não é fácil perder alguém que você tanto ama e que partiu tão inesperada e violentamente e ver seu corpo guardado numa gaveta fria com as marcas do que o tiraram de você. Não dá pra esquecer"

Lá não se fala da pessoa que morreu e que você gostaria que estivesse viva. Lá ela é um dado, um corpo, uma informação, uma estatística, um número. Você não procura por um nome. Ali a pessoa é identificada pelo lugar onde morreu. Mas eles portavam documentos! Eram dois seres humanos! Mas seus nomes nada significavam para os processos daquele lugar! Era preciso colocar mais papéis no arquivo e emitir um novo formulário que possibilitaria liberar os corpos para a funerária e ir ao cartório para emitir a Certidão de Óbito.

Pela forma como tudo é feito, não importa o amor, a perda, a tristeza. Importa garantir que cada papel esteja como precisa estar. As pessoas ficam em segundo plano. Cada um ali está focado em manter organizados os arquivos e os papéis. Você e sua dor não importam! Mas, que sociedade é essa? É assim mesmo que deve ser? Que burocratas governam a existência? É preciso continuar. Agora que a funerária poderia agir, seria necessário que os corpos fossem mais uma vez reconhecidos. Minha filha e a cunhada precisariam mais uma vez voltar às gavetas frias e mais uma vez olhar os corpos para confirmarem para a funerária serem os corretos.

Desumano! Novamente lá estavam elas expostas à crueldade da tragédia. Mais uma vez procurei acompanhar cada uma e novamente registrar o que ninguém deseja ver. Ainda agora, quando escrevo, as imagens me vêm. Não gostaria que pessoa alguma precisasse passar pelo que estávamos passando. Mas é todo dia assim.

Enquanto esperávamos para o segundo reconhecimento, ouvíamos o choro interrompido por orações feitas por uma mãe desesperada pela perda de seu filho. Ela estava vivendo o mesmo drama que nós e estava sozinha. Em algum momento ouvi um agente funerário dizendo a ela que o valor a pagar era maior do que o que ela pensava e havia combinado. Era uma mulher simples e seu desespero aumentou. Por fim, o agente concordou em deixar como estava.

O drama dela me invadiu. Minha filha estava acompanhada, amparada. Ela estava só. Tínhamos condições para arcar com um enterro digno e caro. Não porque quiséssemos gastar muito como expressão de amor. Não pensamos assim. Mas porque enterrar seus mortos é absurdamente caro. O que justifica uma urna ser tão cara? Tenho certeza de que a mais barata custa muito mais que um mês inteiro de trabalho da grande maioria daqueles a quem se destinam. Reconheço que se trata de um negócio e um negócio necessário.

Em nosso mundo não há “serviços”. Há negócios e estes existem para serem lucrativos. Mas, o quanto? Há necessidade de se superar essa lógica na sociedade. Isso envolve o momento da morte. Parece indigno lucrar tanto com a dor, fazendo dela uma oportunidade de lucro e haver “vendedores” dedicados a tirar o máximo do "cliente". Não conheço a estrutura de custos de uma urna mortuária, mas tenho dificuldades de reconhecer no que vejo nelas o valor que se cobra. Isso não é digno!

Voltando à nossa jornada que ainda não havia terminado, era preciso ir a um cartório específico, relacionado ao domicílio do meu genro e de sua mãe para emissão da Certidão de Óbito. Ele, na Serra. Ela, em Vitória. Graças a Deus podíamos contar com mais um familiar para irmos cada um para o cartório indicado.

Pastor Usiel Carneiro de Souza

Sobre os altos custos de um sepultamento

"O drama dela me invadiu. Minha filha estava acompanhada, amparada. Ela estava só. Tínhamos condições para arcar com um enterro digno e caro. Não porque quiséssemos gastar muito como expressão de amor. Não pensamos assim. Mas porque enterrar seus mortos é absurdamente caro"

No meu caso, com minha filha, chegando ao cartório na Serra. Enquanto éramos atendidos fomos informados de que faltava no documento emitido pelo DML o nome do médico. Estava lá a assinatura, o CRM, mas alguém havia esquecido de colocar o nome. Bastaria consultar usando o CRM informando para se obter o nome, mas os formulários são a prioridade. E então nos fizeram voltar no bairro Barro Vermelho, em Vitória. Estávamos num cartório em Laranjeiras, na Serra. Tudo havia começado às 8h20 da manhã e já eram 13 horas. Voltamos e depois refizemos o caminho para o cartório. Conseguimos a Certidão às 15 horas. Às 16h30 estaria acontecendo o sepultamento. Não tivemos tempo para o velório - e como seria importante! ISSO PRECISA MUDAR!

Uma das marcas de uma sociedade está no modo como ela lida com a morte. Se a banaliza, se a trata com respeito. A outra está no lugar em que coloca as pessoas, independentemente da sua condição. Se rica ou pobre, homem ou mulher, branca ou preta, se hétero, homo, trans, binária ou não binária, independentemente de que leis infringiu (quem não infringiu alguma?)… sem distinção.

Os processos que vivemos revelam que pessoas não são consideradas. Somos uma sociedade em que todos morreremos e todos sofremos com a morte. Precisamos humanizar o modo como lidamos com ela. Certamente que há explicações que poderiam ser dadas para o que vivemos, mas serviriam realmente para justificar uma burocracia tão fria e tanta falta de investimento? Precisava ser assim? Quem trabalha com pessoas e tem na tragédia da morte uma possibilidade precisa ter um código de conduta diferente e fortemente ético e humano. Um orientado obrigatoriamente para a atenção prioritária e tratamento humanitário e digno das pessoas, não para os papéis, as gavetas refrigeradas, os números de registro.

É preciso se perguntar: se fosse com a minha família, como gostaria que as coisas acontecessem? Isso minimamente ajudaria a reduzir a frieza naturalizada de quem acostumou-se à tragédia, à dor, à morte e aos mortos. O costume não deve desumanizar, produzir descaso, frieza e falta de respeito com quem já está sofrendo tanto. O tom de voz e as palavras usadas revelam a desumanidade reinante. Não condeno os profissionais que lá estavam. Imagino seus dias e condições de trabalho. Mas não posso justificá-los. E certamente sinto-me responsável como parte da sociedade. Pelos que sofrem e pelos que, por causa do sistema estabelecido, precisam se desumanizar para funcionar.

Diante do que é possível atualmente em termos de tecnologia, precisar passar por tudo o que passamos, e num momento tão difícil, revela o descaso com que tratamos nossos mortos e seus familiares. Um desrespeito com a dor e uma vulgarização da tragédia. E tudo parece seguir sem sinais de mudança porque acontece a granel. Na espera desesperante para se concluir esse processo as pessoas no mesmo espaço se olham, mas não se falam. Estão encapsuladas em suas dores e desespero. Vemos o desrespeito, mas não temos força para confrontá-lo. E temos medo: tudo pode ficar pior!

Pastor Usiel Carneiro de Suza

Sobre a burocracia para liberar um corpo

"Diante do que é possível atualmente em termos de tecnologia, precisar passar por tudo o que passamos, e num momento tão difícil, revela o descaso com que tratamos nossos mortos e seus familiares. Um desrespeito com a dor e uma vulgarização da tragédia"

Fomos nós, aquela mãe e tantos outros. Um a um, família a família. A maioria aparentando serem pessoas muito simples e pobres. Desconfio serem a maioria a precisarem lidar com a burocracia da morte. Pessoas sem um parente ou amigo importante. Os ricos e os poderosos, acredito, não passam por isso. Eles normalmente encontram caminhos mais fáceis, porque se precisassem sofrer tudo isso acredito que as coisas já teriam mudado.

ISSO TAMBÉM PRECISA MUDAR. A Constituição que nos iguala precisa valer! E precisamos lutar todos para mudar realidades que vitimam qualquer um de nós e são muitas. Mas, “se não dói em mim”, não me importo. Este é um sintoma em nossa sociedade.

No caso que trato aqui, diante da constatação da morte feita por um médico e do reconhecimento do corpo feito por um familiar, é plenamente possível a automatização dos processos poupando as pessoas dessa jornada de indignidade e sofrimento. É possível garantir a entrega correta do corpo sem precisar de uma dupla confirmação. Em que século estamos! Forçar uma esposa, uma filha, uma mãe a olhar o corpo da pessoa amada e agora sem vida em estado tão deplorável, e por duas vezes, apenas para dizer “é o corpo certo”, é indigno e desumano.

É possível conectar tecnologicamente DML,delegacia e cartórios. A PRF pode começar o processo havendo documentos da vítima. É plenamente possível encaminhar eletronicamente ao cartório as informações e estabelecer o dever de se produzir a Certidão de Óbito em tempo breve para ser entregue à família. De forma simples, ágil e digna. É possível!! É o correto a fazer.

Alguém precisa apertar o botão que inicie um estudo dos processos e uma mudança dessa realidade. Uma sociedade não pode continuar sendo tão cruel e desumana ao tratar com a morte. Essa mudança seria um passo que elevaria a ética de nosso Estado. Um exemplo para o país. Por que não fazer esse investimento? Espero que você que me lê jamais passe pelo que passamos. Tenho certeza de que, se vier a passar, desejará que as coisas tenham mudado! E PRECISAM MUDAR!

Como política de atenção e cuidado social, precisamos como sociedade também garantir uma urna e os custos do enterro para famílias carentes. É um absurdo o que se cobra para um funeral. ISSO TAMBÉM PRECISA MUDAR. Não seremos uma sociedade mais igualitária, mais justa e mais humana enquanto as coisas forem como nos pareceram ser. Eu vivi a dor e ainda vivo. Eu vi a dor daquela mãe e de tantas outras pessoas. Eu vi e sofri o desrespeito do processo e das pessoas desumanizadas por ele. Espero jamais precisar passar por isso novamente, mas sei que diariamente muitas pessoas passam. Hoje tudo está se repetindo lá e em tantos outros DMLs, delegacias e cartórios.

Não é tudo que vivi, ainda poderia falar da falta de estrutura, de como o costume com a morte afeta o modo de atender e tratar usuários dos serviços do DML. O que compartilho neste texto espero que lhe traga para meu lado a fim de buscarmos mudanças. Pois ISSO PRECISA MUDAR.

Pastor Usiel Carneiro de Suza

Sobre a falta da humanidade diante da morte

"Eu vi o desespero de uma mãe e sofri minha dor. Sofri com a dor da minha filha e da cunhada dela. Boa parte dessas dores poderiam ser evitadas e podem! Um pouco mais de humanidade, de investimento, de zelo. Poderíamos ter experimentado mais dignidade em um momento tão delicado como o que passamos"

Talvez pense: passado alguns dias ele vai esquecer tudo isso. Também penso nessa possibilidade. Mas estou decidido a lutar para não desistir de levantar minha voz. Eu já passei, posso voltar a passar, mas sei que há muitas pessoas passando. Quero alimentar minha indignação e para além desse texto, quero falar com todos com quem puder para que isso mude. Eu vi o desespero de uma mãe e sofri minha dor. Sofri com a dor da minha filha e da cunhada dela. Boa parte dessas dores poderiam ser evitadas e podem! Um pouco mais de humanidade, de investimento, de zelo. Poderíamos ter experimentado mais dignidade em um momento tão delicado como o que passamos.

Não precisava ser como foi. Não precisa continuar sendo. Ajude-me com sua indignação. Levante comigo sua voz. ISSO PRECISA MUDAR!

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