É juiz do Trabalho, doutorando em economia, mestre em Processo, especialista em Direito do Trabalho e economista. Professor de graduação e pós-graduação da FDV. Neste espaço, busca fazer uma análise moderna, crítica e atual do mercado e do Direito do Trabalho

O que licença-maternidade para bebê reborn revela sobre nossa relação com a Justiça?

O caso, embora alvo de escárnio público, não está tão distante de outros pedidos que, embora menos midiáticos, também se assentam mais na percepção individual do que é justo do que em normas legais

Publicado em 10/06/2025 às 03h00

Um alvoroço recente entre juristas foi causado por uma ação trabalhista em que a trabalhadora pleiteava licença-maternidade por ser mãe de um bebê “reborn” (Consultor Jurídico, 28/05/2025), pedido que foi negado administrativamente pelo empregador. O público geral, nas redes sociais, chegou a ser ofensivo com a advogada, inclusive com alusões a agressões físicas (Migalhas, 29/05/2025). De forma mais civilizada, a comunidade jurídico-científica também criticou duramente a postulação, considerando o pedido estapafúrdio e, claro, sem base legal que o ampare.

E corretos estão os juristas. Essa é nossa premissa aqui — mas vamos além:

Será que esse é um caso isolado, que justifica tamanha repulsa? Ou existem outros, talvez mais sutis, que não geram o mesmo fervor e, por vezes, são até aceitos pelo Judiciário?

Primeiro ponto: é justo o pedido da mãe do lindo bebê “reborn”? Ora, pessoas formam vínculos afetivos e, não raro, o fazem com objetos transicionais — como os bonecos inanimados. Mais que isso: para lidar com situações da vida, carências emocionais e eventuais traumas, criam diversos mecanismos de compensação.

Enquanto uns cuidam dos chamados “bebês reborn”, outros se dedicam compulsivamente ao trabalho ou a alguma prática esportiva (qual ciclista de competição não trata sua bicicleta como filha?). E há ainda quem adote mecanismos disfuncionais, como o uso abusivo de álcool e entorpecentes — estes, inclusive, têm direito à estabilidade no emprego e devem ser encaminhados a tratamento previdenciário.

Sob essa ótica, do vínculo afetivo e da similitude com situações diagnósticas, certamente muitas pessoas poderiam considerar justo o pedido da trabalhadora. Contudo, como já dito, a maioria entende o oposto. Tudo isso demonstra que o conceito de justiça é profundamente subjetivo, variando de pessoa para pessoa.

E é exatamente por isso que o Direito existe: para padronizar o que se entende como justo. A lei define o que é justiça para todos, pouco importando a crença pessoal de cada um. Sendo uma norma democrática, elaborada por representantes do povo, espera-se que ela reflita o interesse social.

O que se deve levar ao Judiciário, portanto, não são situações apenas “injustas”, mas violações ao ordenamento jurídico — desrespeito à norma. Juízes não são justiceiros: aplicam a lei ao caso concreto, operando a justiça construída pelo legislador, salvo em hipóteses excepcionalíssimas, quando presentes os quatro critérios clássicos: omissão legal, urgência, violação de direito fundamental e ausência de conteúdo estritamente político.

Por exemplo, uma forma legítima de equalizar o trabalho feminino e combater o machismo estrutural seria conceder ao pai, de um bebê real, o mesmo tempo de licença da mãe. É injusto que ele tenha apenas cinco dias. Essa assimetria reforça a ideia de que a mulher deve cuidar da criança e o homem retornar ao trabalho — como se não compartilhassem a responsabilidade pelo lar. Contudo, embora justa, essa equiparação ainda não tem respaldo legal.

Em inúmeras outras situações, no entanto, a Justiça tem, historicamente, recebido pedidos baseados apenas nessa concepção pessoal e subjetiva do justo — sem qualquer amparo normativo. Quando aceita, a parte contrária pode ser condenada mesmo sem ter descumprido a lei, e a sociedade, como um todo, paga o preço.

Na Justiça do Trabalho não são poucos os casos em que decisões judiciais criaram regras sem qualquer trâmite legislativo ou negociação coletiva. Pedidos individuais, fundados em visões particulares do que seria justo (e coincidentes com a percepção do julgador), acabaram convertidos em jurisprudência criadora de normas. É o caso da exigência de que o preposto da empresa seja empregado; do adicional por desvio de função, no qual o juiz arbitra percentuais (sem ser árbitro); entre outros.

Justiça
Justiça. Crédito: Pixabay

O Supremo Tribunal Federal também tem protagonizado a criação de direitos. O professor Oscar Vilhena Vieira cunhou o termo “supremocracia” para descrever esse fenômeno. Segundo ele, “o Supremo não vem apenas exercendo a função de órgão de ‘proteção de regras’, (...) como também vem exercendo (...) a função de criação de regras” (Vilhena, 2008).

Diante disso, percebe-se que o caso da mãe do bebê reborn, embora alvo de escárnio público, não está tão distante de outros pedidos que, embora menos midiáticos, também se assentam mais na percepção individual do que é justo do que em normas legais. A diferença é que, nesses outros casos, a sociedade se cala — e às vezes aplaude.

Talvez esteja aí o ponto que mereça mais atenção: o problema não é apenas o pedido inusitado ou a atuação do juiz que o acolhe. É o ambiente que se criou, onde toda demanda — por mais pessoal, simbólica ou emocional que seja — encontra no Judiciário a primeira e última instância de validação. Se falta norma, inventa-se. Se há lei contrária, relativiza-se.

Em vez de diálogo social, opta-se pela sentença. Em vez de construção coletiva, busca-se a tutela imediata. O resultado é uma sobrecarga de expectativas sobre o sistema judicial, que acaba atuando como esteio de vontades difusas — ainda que bem-intencionadas.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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