Publicado em 24 de maio de 2025 às 15:38
Uma busca rápida nas redes sociais mostra que conteúdos sobre as bonecas hiper realistas chamadas de "bebês reborn" tem ganhado cada vez mais repercussão.>
Com peso semelhante ao de bebês de verdade, fios de cabelo pintados à mão, veias visíveis na pele maleável e aparência incrivelmente realista, as bonecas custam entre cerca de R$ 800 e até mais de R$ 10 mil, dependendo do nível de detalhamento.>
Entre perfis de colecionadoras das bonecas e pessoas fazendo role playing (interpretações em que cuidam das bonecas como se fossem filhos reais), o número de vídeos, fotos e depoimentos vem crescendo, principalmente no TikTok e no Instagram.>
Há cenas de criação de enxovais, passeios com carrinhos de bebê, trocas de roupa, alimentação com mamadeiras, consultas médicas simuladas e até registros de "aniversários" dos bonecos.>
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Em alguns casos, as postagens se confundem com a rotina de mães de recém-nascidos, o que tem despertado tanto curiosidade quanto críticas e questionamentos sobre saúde mental, solidão e o papel das redes na amplificação e influência de comportamentos.>
A psicóloga Daniela Bittar, especialista em luto perinatal, explica que ainda não é possível afirmar se há, de fato, um aumento no número de pessoas com algum tipo de disfunção afetiva — projetando sentimentos e atribuindo significados às bonecas além do que seria considerado saudável — ou se o fenômeno reflete apenas uma tendência de consumo, uma busca por atenção nas redes sociais, ou mesmo um recorte específico que ganhou visibilidade e dá a impressão de ser mais comum do que realmente é.>
Vale também considerar que para uns pode se tratar de um passatempo, como qualquer outro hobby.>
"É algo muito novo e parece estar mais focado no Brasil, então por enquanto não temos nenhum estudo científico, nenhum artigo, nada que nos possibilite avaliar de fato o que está acontecendo. Mas podemos considerar possibilidades - e uma delas é a vontade de nutrir relações nas quais temos total controle", diz a psicóloga.>
O uso das bonecas pode se tornar um problema quando se desenvolve um apego excessivo, adverte Bittar, que trabalha com psicologia feminina e familiar, e atende mulheres que tiveram bebês natimortos e perdas gestacionais. >
Embora faltem dados para avaliar se este é realmente o cenário, a psicóloga considera que é uma possibilidade.>
"Nós vivemos uma sociedade muito opressora, principalmente se a gente for pensar no feminino e na maternidade. Então, será que nós estamos buscando relações em que não tem uma investida do outro? Relações onde eu me relaciono completamente no controle?">
"Esses bebês reborn, apesar de trazerem a sensação sensorial de um bebê, eles não se relacionam de volta. A relação só tem uma via.">
Bittar propõe uma reflexão sobre o que o aumento de vínculos com bonecas e outras formas não humanas pode estar revelando.>
"O primeiro pensamento que eu tenho é: se isso está acontecendo, o que isso está nos dizendo?", questiona. "Talvez vivamos em um mundo onde ninguém olha mais para o outro, em que as pessoas se sentem tão solitárias que começam a se relacionar com formas não humanas.">
Ela cita exemplos que vão além dos bebês reborn: homens que se relacionam com bonecas, pessoas que tratam a inteligência artificial como melhor amiga, mulheres que têm Alexa como confidente.>
"No Japão, as bonecas até falam. Existem hotéis em que, em vez de encontrar uma acompanhante, o homem vai a um quarto onde está uma boneca que fala, responde, interage — mas ainda é uma boneca.">
"E os bebês reborn agora entram nisso. Eu ainda tenho dúvidas se estamos diante de um fenômeno coletivo, uma distorção midiática ou se realmente há mulheres tratando essas bonecas como filhos.">
O controle total sobre esse tipo de relação seria parte do apelo. "Quando me relaciono com uma forma não humana, eu estou no controle. Posso projetar amor, posso evitar a rejeição. Crio uma ilusão. Um cenário de fantasia em que finjo, inclusive, que estou sendo amada.">
O perigo, descreve, está em "realmente se afeiçoar muito a um objeto e acabar criando uma conexão que não é saudável, e começar a trazê-lo como um preenchimento de um vazio vivencial e existencial que você tem.">
"Se consideramos uma mulher extremamente machucada por conta de vários processos da vida dela, ela pode trazer esse boneco como uma substituição de relação e de um vazio existencial. ">
Nesses cenários, explica a psicóloga, a necessidade de afeição, para além da dor, busca subterfúgios.>
"Mulheres que enfrentam o luto, a infertilidade ou o fato de os filhos já terem saído de casa estão lidando com um vazio existencial — e tentar preenchê-lo pode se tornar algo patológico. Nesse ponto, muitas já estão em um processo psíquico delicado e precisam de ajuda, não de julgamento.">
As 'bebês reborn' começaram a ganhar popularidade nos anos 1990 — tanto como brinquedos e itens de coleção como para ajudar em processos terapêuticos específicos.>
"Elas são usadas há muito tempo por profissionais que trabalham com, por exemplo, a psicologia perinatal, que é gestação, parto e pós-parto, e também em processos de ressignificação de luto", diz Bittar.>
Um exemplo, explica a psicóloga, seria o de um casal à espera de um filho que sente muita ansiedade e medo em relação aos cuidados com um recém-nascido. Nesse contexto, a boneca pode ser utilizada como uma ferramenta de preparação emocional.>
"Se torna uma ferramenta porque ela é realmente maleável e flexível e, na textura, por conta dos materiais que usam, se assemelha muito a um bebê de verdade. Ela te faz acreditar que está com uma criança no colo. Sensorialmente, a percepção da pessoa é essa.">
Em casos de luto perinatal, as bonecas também podem ser incorporadas como parte de um processo terapêutico.>
"Para trazer um luto simbólico para uma mãe que não conseguiu enterrar um bebê, por exemplo. Ela pode usar o boneco para segurar de vez em quando, para abraçar quando ela estiver chorando muito — também é terapêutico, mas deve ser feito com cuidado e dentro de um processo de terapia para que não se desenvolva um apego desproporcional ao objeto.">
O uso das bonecas com idosos e pessoas com demência, explica Bittar, também pode trazer benefícios terapêuticos.>
"A pessoa com Alzheimer, por exemplo, volta à infância. E o bebê reborn, por ser sensorial, desperta emoções e memórias. É fácil sentir algo ao abraçá-lo.">
Mesmo com limitações cognitivas, ela diz, o estímulo afetivo pode ser valioso, já que a boneca pode resgatar vínculos importantes.>
O efeito, segundo a psicóloga, também se aplica a pessoas idosas solitárias. "Não há problema em precisar de uma ferramenta terapêutica que aqueça o coração e provoque emoção. Isso é afeto.">
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