Publicado em 27 de agosto de 2020 às 08:54
Era uma vez uma princesa que toda vez que se olhava no espelho não conseguia enxergar o próprio reflexo. Este começo para um conto de fadas seria muito triste, certo? Imagine, então, quando a gente descobre que esta história se passava na vida real, repetidas vezes, até bem pouco tempo atrás. >
Muitas meninas negras se esqueceram do quanto eram especiais porque eram muito raras as bonecas negras no Brasil. Sem essa referência, não se reconheciam - como em um espelho defeituoso.>
Aos poucos, o mercado de brinquedos passa a perceber a importância de um catálogo mais diverso, e a vida das princesas modernas pode, enfim, ser mais feliz.>
Jaciana Melquiades, 36, teve duas bonecas na infância em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. A primeira era um bebê loiro, presente da sua avó. A segunda, uma Barbie.>
>
"Foi um processo de apagamento da minha imagem. Passei a infância inteira brincando de botar uma toalha na cabeça, representando. Eu sonhava em ser aquela boneca, em fazer transformações estéticas em mim quando fosse grande", conta.>
Por desejar que seu filho tivesse uma experiência diferente da sua, a empresária formalizou em 2013 uma ideia que já tinha fazia anos: a de uma loja de bonecos e bonecas com um recorte racial.>
"Pensei em quais referências ele teria quando nascesse", conta a mãe de Matias, hoje com nove anos. "Tive muita dificuldade em encontrar brinquedos, produtos e roupas que se parecessem com ele".>
Hoje, boa parte do catálogo da Era uma Vez o Mundo, no Rio, é inspirado no menino - especialmente o personagem Super Black Power. São livros de pano e bonecos, como Pequeno Príncipe Preto e Dandara, uma menina personalizável com vários looks ou fantasias de bailarina e sereia.>
"Consumidores mandam agradecimentos de crianças que se sentem melhor na escola ao levar uma boneca negra porque não há no colégio nenhuma boneca com a qual ela se pareça. A gente percebe um impacto muito rápido na autoestima ao criar um espelho positivo", diz Jaciana.>
De acordo com a psicóloga Eunice Porto, especializada em arte integrativa, "o mundo é branco na escola, com bonecas brancas e com livros e filmes de princesas brancas. Esse é um universo em que a criança negra não consegue se reconhecer ou entender, fazendo que se questione silenciosamente".>
Jaciana Melquiades
-A psicóloga continua: "Temos em nossa cultura uma enxurrada de bonecas brancas, com cabelos lisos e olhos verdes. Dentro dos kits de acessórios sempre existe um 'pentezinho' para pentear esse tipo de cabelo. Entretanto, sabemos que esse acessório não representa a realidade de um cabelo enrolado ou crespo".>
Segundo Eunice Porto, "quando uma criança tem bonecos com vários tipos de representatividade, ela aprende a não excluir a diferença, e sim aceitá-la desde cedo. Ao ser apresentada pelos pais a um boneco negro, a criança vai manifestar inocentemente o que ela se acostumou em ouvir do adulto".>
Ao se dar conta de que as duas bonecas da sua filha, Rita, eram brancas, a escritora e roteirista Tati Bernardi comprou um bebê negro de brinquedo. "Ela fica cuidando da boneca, dá mamadeira, tira febre, dá banho, coloca para fazer xixi", diz Tati.>
Quando perguntada se gosta da boneca, que chegou há quatro meses, Rita, de 2 anos, comenta: "Ela quer a mamãe".>
A professora de educação física Queili Isabel de Souza teve sua primeira boneca negra aos 25 anos, comprada em uma viagem a Disney. Quando engravidou de Larissa de Souza, hoje com 8 anos, Queili, 46, já começou a comprar bonecas negras para a menina.>
"Os negros são mais de 50% da população brasileira e não aparecem nos produtos", critica a professora.>
"Já que eu não tenho irmão, eu falo que as bonecas são minhas irmãzinhas", conta Larissa, que gosta de fazer chá e reuniões com os brinquedos".>
"Assim como é feito tradicionalmente com as bonecas brancas, é preciso que a criança negra também se reconheça numa Barbie Negra e num Ken negro", diz a psicóloga Eunice Porto.>
Mais cientes de que é preciso manter catálogos diversos, grandes fabricantes de brinquedos tem demonstrado maior preocupação em oferecer bonecos negros.>
É o caso da Mattel, com alguns itens da Barbie Fashionistas, e da Brinquedos Estrela, que já tem versões negras na linha Berçário, Meu Bebê e Nenezinho. Agora a Estrela lança o Bebê Surpresa com variações na cor da pele e uma edição especial negra do Falcon, a Expedição na Montanha Olhos de Águia.>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta