Tainha é uma das espécies mais pescadas na Grande Vitória
Tainha é uma das espécies mais pescadas na Grande Vitória. Crédito: Fernando Madeira

A ilha onde a economia azul é tradição há mais de 500 anos no ES

Trabalho de pescadores artesanais, de desfiadeiras e de marisqueiras na Ilha das Caieiras gera cadeia de empreendedorismo e de sustentabilidade em Vitória

Tempo de leitura: 8min
Vitória
Publicado em 05/06/2025 às 13h49

Tradição passada de geração em geração há mais de 500 anos no Espírito Santo, a pesca artesanal é a atividade que mantém geração de renda, preservação ambiental e economia sustentável na Ilha das Caieiras, em Vitória. Muito antes da colonização do solo espírito-santense, ocorrida a partir de 1535, o ofício já se desenvolvia às margens do continente. Junto ao crescimento da capital capixaba, formou a identidade de centenas de famílias que ainda hoje dependem de recursos ligados à chamada "economia azul", oriunda do oceano.

Na base dessas famílias, estão pescadores que se autointitulam como empreendedores. Afinal, no mar e até mesmo no Rio Santa Maria, é feito um trabalho diário que, graças à coleta de tainhas, siris, ostras, sururus e outras espécies, garante o sustento nas casas de quem pesca. Ao mesmo tempo, alimenta o estoque de mercados, feiras e restaurantes dentro e fora do Espírito Santo.

Bisneto de Maria Corrêa, a dona Maroca, conhecida como uma das primeiras marisqueiras de Vitória e como uma das responsáveis pela popularização da torta capixaba, o pescador José Renato Dias, o Renatinho, conta que o trabalho na Ilha das Caieiras, dia após dia, é feito conforme manda a maré — literalmente.

José Renato Dias

Pescador da Ilha das Caieiras

O pescador acorda e vem cedo para a beira da maré, onde se reúne com os parceiros e parte para o trabalho

“Eu nasci e fui criado aqui na Ilha. Minha família toda mexe com pesca e é através dela que temos diversas fontes de emprego e de renda na região. Tem pescador que fica por aqui, tem quem vai para Camburi e tem até mesmo quem sai do Espírito Santo com barcos maiores. Cada um com seu material e com seu jeito de pescar. É com um trabalho artesanal, todo feito a mão, que garantimos a nossa renda”, diz.

Pescadores da Ilha das Caieiras
Perto do píer onde ficam os barcos, grupos de trabalhadores se reúnem para organizar o que é pescado diariamente. Crédito: Fernando Madeira

Segundo Renato, a pesca na Ilha não se resume somente ao ato de lançar redes e colher os frutos do mar. A lida envolve saberes ancestrais transmitidos de pais para filhos, junto de um conhecimento sobre os ciclos da natureza e os períodos de maior ou menor fartura. Tudo isso, aliado à criatividade de homens e mulheres, além de se transformar em dinheiro no bolso, fortalece a cultura local e mantém viva a comunidade pesqueira.

“A maioria dos mariscos, por exemplo, vendemos na porta de casa mesmo. Tem gente que aproveita e encomenda mais produtos. Já fora daqui tem restaurantes que compram os siris das nossas desfiadeiras. Temos uma clientela certa”, comenta José Renato, mostrando como os recursos circulam na comunidade.

Pescadores da Ilha das Caieiras
José Renato Dias aprendeu o ofício da pesca com familiares, ainda na infância. Crédito: Fernando Madeira

O elo entre a pesca e o setor gastronômico, como destacado pelos pescadores, é fundamental para a economia local. Entretanto, para os profissionais do mar, é preciso cuidado com o discurso para que as atividades não se confundam. “A Ilha das Caieiras, antes de ser um polo gastronômico, é uma comunidade pesqueira”, enfatiza Wellington Leonel, presidente da Associação de Pescadores, Marisqueiras e Desfiadeiras do bairro.

Wellington Leonel da Silva Júnior

Pescador e presidente da Associação de Pescadores e Marisqueiros da Ilha das Caieiras

Uma atividade complementa a outra. Para existir o empreendedorismo dos restaurantes, primeiro vem o trabalho de quem pesca o que é vendido dentro deles

Mesmo com um público-alvo definido e uma cartela antiga de clientes dentro e fora da comunidade, os desafios para os pescadores também se apresentam em meio a mudanças climáticas, poluição e concorrência de outras regiões pesqueiras, por exemplo. Os problemas comprometem a renda. Para eles, políticas governamentais poderiam mudar o cenário negativo.

“Se o tempo ajuda e a venda sai, dá para tirar mais de R$ 1,2 mil no mês. E isso é só na pesca, fazendo tudo na mão. Eu mesmo, assim como muitos, só sei pescar. Se precisar parar, muita gente não sabe o que fazer”, diz José Renato, enfatizando que a capacitação dos trabalhadores pode aumentar as cifras no fim do mês.

Além disso, os trabalhadores relatam que o maior custo da atividade não é financeiro — com a aquisição de materiais e construção de barcos —, mas físico.

“É uma profissão que dá muito trabalho. Então, o maior custo para o pescador é no corpo. Muitos, entre homens e mulheres, param de trabalhar por problemas de coluna, por exemplo. As mulheres que trabalham desfiando siri também sofrem. Elas ficam o dia inteiro sentadas e isso resulta em bursite, problemas na lombar. O profissional aqui se entrega por inteiro ao trabalho”, destaca Wellington.

Pescadores da Ilha das Caieiras
Wellington Leonel, o Juninho, preside a associação que troca conhecimentos sobre a pesca na Ilha das Caieiras. Crédito: Fernando Madeira

A situação preocupa e ainda abre brecha para outra inquietação: a dificuldade de transmitir o ofício para as novas gerações. 

“A pesca é a profissão mais antiga do mundo e, hoje, parece ser a mais desvalorizada. Nossos jovens não querem mais seguir porque veem que é muito trabalho para pouco retorno”, lamenta o presidente da associação.

Quem compartilha a preocupação é Celso Henrico, presidente do Movimento Comunitário da Ilha das Caieiras e vice da Associação dos Pescadores. Para ele, embora obras recentes na região tenham fortalecido o turismo e trazido movimentação para restaurantes, é necessário que autoridades e sociedade não se esqueçam que o que formou o bairro há muitos anos foi a pesca.

“Nós não somos só um polo gastronômico, mas temos um polo. Somos, sim, uma comunidade tradicional de pescadores e de marisqueiras. Se não tiver quem tire do mar, não tem prato na mesa e economia girando”, afirma Celso.

Pescadores da Ilha das Caieiras
Celso Henrico é uma das liderenças da comunidade pesqueira na Ilha. Crédito: Fernando Madeira

Apesar dos desafios para o fortalecimento da cultura pesqueira, o trabalho não para. Os esforços, além da garantia de renda, são para resgatar a tradição. Apoiados pela troca de experiências e informações por meio da associação, cada profissional investe em conhecimento e em ferramentas para um trabalho cada vez mais proveitoso, que pode voltar a encher os olhos dos moradores mais jovens da Ilha.

Para os mais experientes, o empreendedorismo está no entendimento das marés e na resistência de quem entende que o mar não é só trabalho e turismo, mas fonte de vida, memória e caminho para o futuro.

Políticas públicas

Pescadores da Ilha das Caieiras
Trabalho de limpeza do pescado é um dos processos mais importantes antes do repasse aos consumidores. Crédito: Fernando Madeira

Alejandro Garcia-Prado, biólogo, mestre em biologia marinha e especialista em recursos pesqueiros e maricultura, reconhece que, embora os pescadores da Ilha das Caieiras desenvolvam um trabalho essencial para a economia e cultura locais, ainda enfrentam desafios comuns à pesca artesanal em todo o Espírito Santo: a informalidade, a baixa organização produtiva e a dificuldade de acesso às políticas públicas.

Para superação dessas barreiras, a Secretaria de Estado da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca (Seag), segundo Alejandro, tem projetos voltados para apoio de ações de regularização da pesca, qualificação, estímulo à organização e apoio à comercialização.

➥ De acordo com o biólogo, entidades representativas de pescadores podem solicitar parcerias junto à Seag, que atua como articuladora com os demais órgãos envolvidos.

Alejandro Garcia-Prado

Coordenador estadual de Pesca e Aquicultura da Seag

Esses trabalhadores podem conquistar desde a regularização para acessar benefícios sociais até apoio técnico direto e inserção em programas públicos de comercialização
Pescadores da Ilha das Caieiras
Pescadores da Ilha das Caieiras. Crédito: Fernando Madeira

Especificamente para a Ilha, está prevista para o segundo semestre deste ano, por mediação da Seag, a incorporação dos pescadores e marisqueiras no projeto estadual Marisqueiras em Rede, junto com a Associação de Pescadores de Jacaraípe (Aspej) e com recursos da Petrobras. A intenção é fortalecer a atuação das mulheres da comunidade, com inclusão produtiva e geração de renda.

Além disso, a pasta estadual busca incentivar alternativas complementares, como a piscicultura ornamental, atividade que demanda pequenos espaços e pode gerar renda para quem deseja diversificar a atividade. Contudo, segundo Alejandro, ainda existem desafios para viabilizar esses projetos na prática, como a falta de espaços adequados para instalação de culturas para aquicultura.

“Para superação disso, destacam-se ações como o Mutirão de Regularização da Pesca Artesanal, em parceria com prefeituras e órgãos estaduais e federais, com atribuições na área da pesca, incentivo à organização social da pesca, capacitações técnicas e apoio à infraestrutura comunitária pesqueira”, aponta o biólogo.

É justamente isso que os empreendedores da pesca procuram. Para eles, as oportunidades de crescimento e valorização local passam por programas e atividades como as citadas por Alejandro.

“A comunidade da Ilha das Caieiras precisa voltar a ser olhada com mais atenção, como era no passado. A pesca artesanal por aqui consegue ser bastante sustentável e isso não pode ficar à margem dos desafios que enfrentamos”, diz Wellington Leonel.

Maré de oportunidades

Para ajudar a manter viva a tradição da pesca artesanal, profissionais da Ilha das Caieiras e demais colônias capixabas podem passar a contar com novidades em um futuro próximo. Segundo Alejandro Garcia-Prado, a Seag está finalizando uma série de propostas com foco em inclusão produtiva, segurança alimentar, inovação e fortalecimento da economia azul.

Entre as novidades está a criação de uma rede de marisqueiras entre os municípios da Serra e de Presidente Kennedy, com implantação e reestruturação de unidades de beneficiamento, apoio à comercialização e qualificação das trabalhadoras, além do uso do Fundo Social de Apoio à Agricultura Familiar (Funsaf), que prevê a doação de equipamentos e veículos para associações organizadas.

Além disso, segundo Alejandro Garcia, ainda há a expectativa de ampliação da maricultura (cultivo de mexilhões e ostras) para o litoral sul do Espírito Santo, onde o protagonismo feminino, com as marisqueiras, será o foco de valorização da atividade.

“Já em relação ao litoral norte do Estado, especialmente entre Aracruz e Conceição da Barra, ainda estamos planejando ações junto a outras secretarias de Estado, considerando os impactos no Rio Doce e na área litorânea, decorrentes do rompimento da barragem de Mariana (Minas Gerais), em 2015”, projeta Alejandro.

Enquanto as teorias das políticas são estruturadas para avançar, na prática, a resiliência e o espírito empreendedor se transformam na maré que move a pesca artesanal da Ilha das Caieiras, onde cada rede e cada linha puxadas do mar carregam não só o sustento de famílias, mas também a preservação de uma cultura viva há mais de cinco séculos.

“Como pescadores que somos, jamais vamos deixar a tradição da Ilha das Caieiras morrer. Isso vem de família, de geração em geração, e é o que nos mantém como resistência”, finaliza Wellington Leonel.

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.