Tradição passada de geração em geração há mais de 500 anos no Espírito Santo, a pesca artesanal é a atividade que mantém geração de renda, preservação ambiental e economia sustentável na Ilha das Caieiras, em Vitória. Muito antes da colonização do solo espírito-santense, ocorrida a partir de 1535, o ofício já se desenvolvia às margens do continente. Junto ao crescimento da capital capixaba, formou a identidade de centenas de famílias que ainda hoje dependem de recursos ligados à chamada "economia azul", oriunda do oceano.
Na base dessas famílias, estão pescadores que se autointitulam como empreendedores. Afinal, no mar e até mesmo no Rio Santa Maria, é feito um trabalho diário que, graças à coleta de tainhas, siris, ostras, sururus e outras espécies, garante o sustento nas casas de quem pesca. Ao mesmo tempo, alimenta o estoque de mercados, feiras e restaurantes dentro e fora do Espírito Santo.
Bisneto de Maria Corrêa, a dona Maroca, conhecida como uma das primeiras marisqueiras de Vitória e como uma das responsáveis pela popularização da torta capixaba, o pescador José Renato Dias, o Renatinho, conta que o trabalho na Ilha das Caieiras, dia após dia, é feito conforme manda a maré — literalmente.
José Renato Dias
Pescador da Ilha das Caieiras
O pescador acorda e vem cedo para a beira da maré, onde se reúne com os parceiros e parte para o trabalho
“Eu nasci e fui criado aqui na Ilha. Minha família toda mexe com pesca e é através dela que temos diversas fontes de emprego e de renda na região. Tem pescador que fica por aqui, tem quem vai para Camburi e tem até mesmo quem sai do Espírito Santo com barcos maiores. Cada um com seu material e com seu jeito de pescar. É com um trabalho artesanal, todo feito a mão, que garantimos a nossa renda”, diz.
Segundo Renato, a pesca na Ilha não se resume somente ao ato de lançar redes e colher os frutos do mar. A lida envolve saberes ancestrais transmitidos de pais para filhos, junto de um conhecimento sobre os ciclos da natureza e os períodos de maior ou menor fartura. Tudo isso, aliado à criatividade de homens e mulheres, além de se transformar em dinheiro no bolso, fortalece a cultura local e mantém viva a comunidade pesqueira.
“A maioria dos mariscos, por exemplo, vendemos na porta de casa mesmo. Tem gente que aproveita e encomenda mais produtos. Já fora daqui tem restaurantes que compram os siris das nossas desfiadeiras. Temos uma clientela certa”, comenta José Renato, mostrando como os recursos circulam na comunidade.
O elo entre a pesca e o setor gastronômico, como destacado pelos pescadores, é fundamental para a economia local. Entretanto, para os profissionais do mar, é preciso cuidado com o discurso para que as atividades não se confundam. “A Ilha das Caieiras, antes de ser um polo gastronômico, é uma comunidade pesqueira”, enfatiza Wellington Leonel, presidente da Associação de Pescadores, Marisqueiras e Desfiadeiras do bairro.
Wellington Leonel da Silva Júnior
Pescador e presidente da Associação de Pescadores e Marisqueiros da Ilha das Caieiras
Uma atividade complementa a outra. Para existir o empreendedorismo dos restaurantes, primeiro vem o trabalho de quem pesca o que é vendido dentro deles
Mesmo com um público-alvo definido e uma cartela antiga de clientes dentro e fora da comunidade, os desafios para os pescadores também se apresentam em meio a mudanças climáticas, poluição e concorrência de outras regiões pesqueiras, por exemplo. Os problemas comprometem a renda. Para eles, políticas governamentais poderiam mudar o cenário negativo.
“Se o tempo ajuda e a venda sai, dá para tirar mais de R$ 1,2 mil no mês. E isso é só na pesca, fazendo tudo na mão. Eu mesmo, assim como muitos, só sei pescar. Se precisar parar, muita gente não sabe o que fazer”, diz José Renato, enfatizando que a capacitação dos trabalhadores pode aumentar as cifras no fim do mês.
Além disso, os trabalhadores relatam que o maior custo da atividade não é financeiro — com a aquisição de materiais e construção de barcos —, mas físico.
“É uma profissão que dá muito trabalho. Então, o maior custo para o pescador é no corpo. Muitos, entre homens e mulheres, param de trabalhar por problemas de coluna, por exemplo. As mulheres que trabalham desfiando siri também sofrem. Elas ficam o dia inteiro sentadas e isso resulta em bursite, problemas na lombar. O profissional aqui se entrega por inteiro ao trabalho”, destaca Wellington.
A situação preocupa e ainda abre brecha para outra inquietação: a dificuldade de transmitir o ofício para as novas gerações.
“A pesca é a profissão mais antiga do mundo e, hoje, parece ser a mais desvalorizada. Nossos jovens não querem mais seguir porque veem que é muito trabalho para pouco retorno”, lamenta o presidente da associação.
Quem compartilha a preocupação é Celso Henrico, presidente do Movimento Comunitário da Ilha das Caieiras e vice da Associação dos Pescadores. Para ele, embora obras recentes na região tenham fortalecido o turismo e trazido movimentação para restaurantes, é necessário que autoridades e sociedade não se esqueçam que o que formou o bairro há muitos anos foi a pesca.
“Nós não somos só um polo gastronômico, mas temos um polo. Somos, sim, uma comunidade tradicional de pescadores e de marisqueiras. Se não tiver quem tire do mar, não tem prato na mesa e economia girando”, afirma Celso.
Apesar dos desafios para o fortalecimento da cultura pesqueira, o trabalho não para. Os esforços, além da garantia de renda, são para resgatar a tradição. Apoiados pela troca de experiências e informações por meio da associação, cada profissional investe em conhecimento e em ferramentas para um trabalho cada vez mais proveitoso, que pode voltar a encher os olhos dos moradores mais jovens da Ilha.
Para os mais experientes, o empreendedorismo está no entendimento das marés e na resistência de quem entende que o mar não é só trabalho e turismo, mas fonte de vida, memória e caminho para o futuro.
Políticas públicas
Alejandro Garcia-Prado, biólogo, mestre em biologia marinha e especialista em recursos pesqueiros e maricultura, reconhece que, embora os pescadores da Ilha das Caieiras desenvolvam um trabalho essencial para a economia e cultura locais, ainda enfrentam desafios comuns à pesca artesanal em todo o Espírito Santo: a informalidade, a baixa organização produtiva e a dificuldade de acesso às políticas públicas.
Para superação dessas barreiras, a Secretaria de Estado da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca (Seag), segundo Alejandro, tem projetos voltados para apoio de ações de regularização da pesca, qualificação, estímulo à organização e apoio à comercialização.
Isso pode ser feito em parceria com instituições como o Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper); o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf); a Superintendência Federal da Pesca; o Instituto Federal (Ifes); e o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), por exemplo.
➥ De acordo com o biólogo, entidades representativas de pescadores podem solicitar parcerias junto à Seag, que atua como articuladora com os demais órgãos envolvidos.
Alejandro Garcia-Prado
Coordenador estadual de Pesca e Aquicultura da Seag
Esses trabalhadores podem conquistar desde a regularização para acessar benefícios sociais até apoio técnico direto e inserção em programas públicos de comercialização
Especificamente para a Ilha, está prevista para o segundo semestre deste ano, por mediação da Seag, a incorporação dos pescadores e marisqueiras no projeto estadual Marisqueiras em Rede, junto com a Associação de Pescadores de Jacaraípe (Aspej) e com recursos da Petrobras. A intenção é fortalecer a atuação das mulheres da comunidade, com inclusão produtiva e geração de renda.
Além disso, a pasta estadual busca incentivar alternativas complementares, como a piscicultura ornamental, atividade que demanda pequenos espaços e pode gerar renda para quem deseja diversificar a atividade. Contudo, segundo Alejandro, ainda existem desafios para viabilizar esses projetos na prática, como a falta de espaços adequados para instalação de culturas para aquicultura.
“Para superação disso, destacam-se ações como o Mutirão de Regularização da Pesca Artesanal, em parceria com prefeituras e órgãos estaduais e federais, com atribuições na área da pesca, incentivo à organização social da pesca, capacitações técnicas e apoio à infraestrutura comunitária pesqueira”, aponta o biólogo.
É justamente isso que os empreendedores da pesca procuram. Para eles, as oportunidades de crescimento e valorização local passam por programas e atividades como as citadas por Alejandro.
“A comunidade da Ilha das Caieiras precisa voltar a ser olhada com mais atenção, como era no passado. A pesca artesanal por aqui consegue ser bastante sustentável e isso não pode ficar à margem dos desafios que enfrentamos”, diz Wellington Leonel.
Maré de oportunidades
Para ajudar a manter viva a tradição da pesca artesanal, profissionais da Ilha das Caieiras e demais colônias capixabas podem passar a contar com novidades em um futuro próximo. Segundo Alejandro Garcia-Prado, a Seag está finalizando uma série de propostas com foco em inclusão produtiva, segurança alimentar, inovação e fortalecimento da economia azul.
Entre as novidades está a criação de uma rede de marisqueiras entre os municípios da Serra e de Presidente Kennedy, com implantação e reestruturação de unidades de beneficiamento, apoio à comercialização e qualificação das trabalhadoras, além do uso do Fundo Social de Apoio à Agricultura Familiar (Funsaf), que prevê a doação de equipamentos e veículos para associações organizadas.
Além disso, segundo Alejandro Garcia, ainda há a expectativa de ampliação da maricultura (cultivo de mexilhões e ostras) para o litoral sul do Espírito Santo, onde o protagonismo feminino, com as marisqueiras, será o foco de valorização da atividade.
“Já em relação ao litoral norte do Estado, especialmente entre Aracruz e Conceição da Barra, ainda estamos planejando ações junto a outras secretarias de Estado, considerando os impactos no Rio Doce e na área litorânea, decorrentes do rompimento da barragem de Mariana (Minas Gerais), em 2015”, projeta Alejandro.
Enquanto as teorias das políticas são estruturadas para avançar, na prática, a resiliência e o espírito empreendedor se transformam na maré que move a pesca artesanal da Ilha das Caieiras, onde cada rede e cada linha puxadas do mar carregam não só o sustento de famílias, mas também a preservação de uma cultura viva há mais de cinco séculos.
“Como pescadores que somos, jamais vamos deixar a tradição da Ilha das Caieiras morrer. Isso vem de família, de geração em geração, e é o que nos mantém como resistência”, finaliza Wellington Leonel.
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