Publicado em 3 de março de 2022 às 14:22
A diplomacia brasileira viveu os seus piores dias nas últimas semanas, ao não condenar explicitamente a invasão da Ucrânia pela Rússia, na avaliação de Roberto Abdenur, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, o Cebri. >
A primeira mensagem de tom duro veio do representante do país na ONU, Ronaldo Costa Filho, em reunião nesta sexta (25), na qual o país votou a favor de resolução para condenar a ação de Moscou -que acabou barrada pelo veto dos próprios russos.>
Diplomata com 45 anos de carreira, com passagem pelo posto de embaixador em Pequim e Washington, Abdenur afirma que o presidente Jair Bolsonaro (PL) piorou a já comprometida imagem do Brasil na comunidade internacional ao declarar dias antes da guerra que "somos solidários à Rússia" -sem especificar a qual aspecto-, e o corpo diplomático não soube reagir. "O Itamaraty claramente se contorceu por pressão do Bolsonaro", afirma.>
Abdenur não acredita que o presidente Vladimir Putin tenha entre seus planos ir além da Ucrânia, mas está surpreso e preocupado com a escalada da tensão de ambos os lados. "Estamos vivendo uma ruptura na estrutura da chamada ordem internacional liberal, fundada nos princípios básicos da ONU e que preservou a paz no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mesmo atravessando a Guerra Fria", diz. "É um abalo gravíssimo e vai ter repercussões.">
>
Pergunta: Como interpretar uma ação bélica tão enfática de Putin na Ucrânia, mesmo após inúmeros apelos de chefes de Estado?>
Roberto Abdenur: Se olharmos a história, houve dois acontecimentos traumáticos para a Rússia, mais ou menos ao mesmo tempo. A decomposição da União Soviética e a perda da Ucrânia, território que russos consideravam seu. Em dezembro de 1991, a Ucrânia fez um referendo, mais de 80% compareceram às urnas e mais de 80% votaram a favor da independência -inclusive as regiões do Leste, onde hoje estão as duas autoproclamadas repúblicas independentes.>
Em um artigo de 2014, pouco depois da anexação da Crimeia, Henry Kissinger, um dos grandes estadistas do século passado, destaca que a Ucrânia está dividida entre duas porções que nem sempre se entendem -o leste predominantemente russo e voltado para Moscou, e o oeste ucraniano propriamente dito e voltado para o Ocidente. E que o país tem um problema de identidade nacional a resolver, sendo importante que nenhuma das partes tentasse se sobrepor.>
Isso foi rompido com a guerra civil, provocada pela insurgência de pró-russos do leste, insuflados e apoiados, inclusive militarmente, por Putin. Essa espécie de guerra civil velada provocou de 13 mil a 15 mil mortes dos dois lados. Assim, a Rússia czarista, a soviética, até a dos dias de hoje, sente que teve uma parte amputada. É por isso que Putin não reconhece a Ucrânia como um Estado independente>
P.: Nessa perspectiva, Putin teria razão para a invasão, então?>
RA: Absolutamente não. Putin deve ser condenado e boicotado da maneira mais veemente possível. Nos dias atuais, é preciso reconhecer que a Rússia tem preocupações válidas com sua segurança diante da expansão da Otan na direção de suas fronteiras. Em política internacional, é sempre mais complicado uma situação em que os dois lados têm razões fundadas. A adesão da Ucrânia à Otan seria o último dominó a cair na fronteira.>
O objetivo de Putin na Ucrânia não é só mudar o governo. É mudar o regime e instalar outro, que seja solidário e obediente a Moscou, e uma autocracia, como Hungria, Cazaquistão e a própria Rússia. Putin não vai anexar a Ucrânia, mas seguramente manterá uma ocupação até chegar a algum entendimento.>
P.: Era uma tensão histórica com riscos previsíveis.>
RA: Há dois fatos pouco conhecidos que mostram isso. Durante o governo de George Bush pai, o secretário de Estado James Baker se preocupou que, com a dissolução da União Soviética, armas nucleares estavam espalhadas por diferentes países, entre eles a Ucrânia de um lado e o Cazaquistão do outro. Os EUA fizeram um movimento muito grande junto a esses países e a própria Rússia, defendendo que todas as armas nucleares da ex-URSS ficassem concentradas nas mãos da nova Rússia, e assim ocorreu.>
Depois, Bill Clinton lançou a Parceria para Paz. Era uma tentativa para evitar uma nova divisão da Europa e de incluir todos os países, inclusive a Rússia, num grande esquema de segurança coletiva. Isso acabou não prosperando. Houve mudança de governo, e países que tinham sido parte da URSS se sentiram ameaçados pela nova Rússia e, depois, pela Rússia de Putin. Buscaram refúgio na Otan e foram acolhidos de braços abertos. Mas as últimas manifestações da Otan foram preocupantes.>
P.: Em que aspecto?>
RA: A Otan emitiu um comunicado criticando duramente a Rússia. Mas o secretário-geral declarou que estão deslocando tropas de diferentes países para reforçar sua presença no Leste Europeu e deter eventuais aventuras da Rússia. Biden disse que não aceitarão a invasão de um centímetro de algum país da Otan. Então, a invasão da Ucrânia está levando a um nível de tensão inédito na Europa. Há 30 anos, desde o fim da Guerra Fria, não acontecia algo assim.>
P.: Como o sr. avalia a postura da China?>
RA: Xi Jinping, em uma ligação com Putin, o exortou a negociar. Mas Rússia e China promoveram recentemente um terremoto na ordem geopolítica. A aliança estratégica que anunciaram contém uma frase inédita nos anais da diplomacia, uma "parceria sem limites".>
Agora, na prática, não é tão sem limites assim. Na reunião do Conselho de Segurança da ONU na noite de 23 para 24 [de fevereiro], quando a invasão já tinha sido iniciada, o embaixador chinês disse que era preciso levar em conta os interesses legítimos de todas as nações, mas que a China reiterava seu compromisso inabalável com o princípio do respeito à soberania e integridade territorial de todas as nações. É interessante: no órgão mais importante, Pequim deu uma indireta a Putin, embora sem condenar abertamente a invasão, e exerce pressão para que Putin negocie com o outro lado.>
Ele não pode deixar de acatar Xi, porque a parceria com a China é fundamental para seu regime de poder.>
P.: É impossível imaginar que Putin não previu toda essa pressão, não?>
RA: Calculou tudo. Como disse Biden, enquanto ele dialogava e parecia estar disposto a negociar, preparava a escalada militar. E Volodimir Zelenski [presidente da Ucrânia], inocente e preocupado em evitar perturbações internas, dizia que tudo estava normal. Deixou de preparar o país para se defender.>
Putin sabia que isso teria repercussões sérias, levaria as sanções duras. Ele reuniu uma reserva de US$ 630 bilhões [R$ 3,2 trilhões] e fez substituições de importações. Mas a Rússia não está imune. Então, estamos vivendo uma ruptura na estrutura da chamada ordem internacional liberal, fundada nos princípios básicos da ONU e que preservou a paz no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mesmo atravessando a Guerra Fria. E um abalo gravíssimo, vai ter repercussões importantes.>
P.: No limite, uma Terceira Guerra Mundial é possível?>
RA: É uma hipótese tão distante, delirante, que prefiro não elaborar.>
P.: Como o sr. avalia a posição do Brasil?>
RA: O Itamaraty claramente se contorceu por pressão do Bolsonaro. O presidente cometeu um gravíssimo erro de política externa.>
P.: O sr. fala da viagem dele à Rússia?>
RA: Foi inoportuno e contraproducente. Veja bem, ele disse aquela frase irresponsavelmente, mas é séria. Teve repercussão, foi repudiada por países que esperavam do Brasil uma postura diferente. O Bolsonaro fez a afirmação levianamente, porque não percebe as consequências do que diz. Mas teve a oportunidade de se corrigir, podia falar: "Queria expressar minha fé na negociação, mas agora, diante da gravidade do que aconteceu, não posso deixar de criticar a Rússia".>
P.: A qual frase o sr. se refere?>
RA: "Somos solidários com a Rússia." Dizer isso significou apoiar um regime de força que ameaçava a soberania e a integridade do território de outro país. O governo Bolsonaro, desde a primeira hora, queimou as pontes com as democracias europeias, com os EUA depois da queda de Donald Trump, com a China, com a Argentina. Hoje pouco dialoga com seus vizinhos. Deixou de ser uma liderança na América do Sul e na América Latina. Não tem uma política externa digna desse nome.>
Tomou as piores posições sobre questões ambientais, de direitos humanos, de riscos à democracia, de ataques as instituições. É realmente um pária, e isso vai piorar se tiver postura leniente com a barbárie.>
E o Itamaraty se contorceu para tentar se expressar sobre a Rússia sem usar as palavras-chave na presente situação: invasão e condenação. O Brasil não pode se esconder atrás do pretexto de que tem relações importantes com a Rússia para se omitir diante da brutal violação. O Itamaraty usou linguagens elípticas para evitar falar em invasão.>
O momento é decisivo para a preservação da honra da diplomacia brasileira, da respeitabilidade do Itamaraty. As pessoas não pensam nisso, mas o Brasil é parte do Ocidente. Escolheu o Ocidente quando declarou guerra à Alemanha nazista e mandou tropas para Itália em 1944. Durante a Guerra Fria, quando aliado aos EUA. Esse pertencimento se deu até sob a égide de um governo ditatorial militar, capaz de conciliar na política externa o combate ao comunismo e ao então chamado terceiro mundo.>
Conselheiro do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais). Foi membro do Serviço Exterior brasileiro de 1963 a 2007, sendo embaixador no Equador, na China, na Alemanha, na Áustria e nos EUA. Como consultor, acompanhou câmaras de comércio e entidades empresariais. Entre 2011 e 2014, foi presidente-executivo do ETCO (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial)>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta