Publicado em 7 de novembro de 2020 às 16:31
Uma disputa muito mais apertada que a prevista pela Presidência dos Estados Unidos deu status de urgência a algo que vinha sendo tratado como uma vaga intenção da União Europeia: conquistar autonomia estratégica em relação às duas potências globais, China e EUA. >
Seis horas à frente do horário de Washington, a Europa acordou na quarta-feira (4) quando a apuração noturna nos EUA mostrava vitórias do presidente Donald Trump em estados importantes como Flórida e Texas e avanços na chamada "parede azul" de Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.>
No meio do dia, um post em rede social resumiu o recado ouvido em vários países e diferentes correntes políticas. "Qualquer que seja o resultado final, a Europa precisa crescer, e crescer rápido", escreveu a eurodeputada holandesa Sophie in't Veld, do grupo de centro Renova Europa.>
"Em qualquer caso, a Europa tem seus próprios interesses a representar", afirmou à TV o ministro da maior economia europeia, o alemão Peter Altmaier. "É chegada a hora de a Europa assumir suas responsabilidades", ecoou em uma rádio francesa Bruno Le Maire, ministro da Economia da França, um dos países mais envolvidos em conflitos com Trump.>
>
Com os números mostrando maior chance para o democrata Joe Biden no começo da noite, persistia a sensação de alguém que escapou de um acidente sério e ainda oscila entre alívio e choque.>
O fantasma de uma reeleição de Trump deveria ser "o impulso que faltava para que os europeus deixem de falar apenas em soberania e comecem a agir", defendeu Susi Dennison, diretora do programa European Power do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR).>
"Vale para a digitalização e a proteção do clima, os investimentos em nossa segurança e na construção da Europa após a crise da Covid-19", disse em um seminário online Martin Selmayr, chefe da representação da Comissão Europeia na Áustria.>
Se os europeus antes podiam contar com o socorro americano, "isso acabou para sempre", disse Selmayr: "Nenhum presidente dos EUA fará o trabalho pela Europa. Não há como voltar para a zona de conforto".>
Apesar do abuso da expressão "seja qual for o resultado", porém, o resultado afeta várias das prioridades europeias em áreas como meio ambiente, liberdades individuais, multilateralismo, regulação e tecnologia.>
A derrota de Trump enfraquece líderes autocratas como o premiê da Hungria, Viktor Orbán, e o líder do partido governista polonês, o vice-primeiro-ministro Jaroslaw Kaczynski, envolvidos em disputas com a União Europeia pelo respeito ao Estado de Direito.>
Também esfria o discurso populista ou francamente xenófobo, como o da expoente da extrema-direita francesa Marine Le Pen, que não escondia sua preferência por Trump: "Um líder que clama pelo retorno da nação, do patriotismo, das fronteiras e da soberania está caminhando na mesma direção da história".>
Vários políticos europeus ressaltaram na internet a importância de fortalecer os valores do bloco para evitar uma corrosão da democracia como a que enxergaram na possibilidade de vitória do republicano.>
O ex-premiê da Bélgica Guy Verhofstadt afirmou ver "o caos do outro lado do Atlântico", o que tornou clara "a importância da união em um mundo incerto": "A UE precisa assumir o controle de seu próprio destino".>
A derrota de Trump é um alívio para organizações multilaterais importantes como as Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), com reflexos em blocos baseados na cooperação multilateral, como a União Europeia.>
Abertamente antimultilateralismo, Trump tirou os EUA do Acordo do Clima de Paris e ameaçou sair da Otan (aliança militar entre países europeus e norte-americanos). Também cortou o financiamento à Organização Mundial da Saúde em plena pandemia de Covid-19, e seu projeto orçamentário previa condicionar programas de ajuda externa a compromissos com interesses americanos.>
É esperado que Biden também defenda os interesses dos EUA nas negociações internacionais, mas ele já declarou na campanha que o país não pode enfrentar seus desafios sem cooperação de instituições internacionais e parceria com aliados.>
Em entrevista à imprensa alemã nesta sexta (6), o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Heiko Maas, afirmou que o Ocidente "deve voltar a jogar como um time novamente".>
A eleição de Biden dá um cavalo de pau na política americana em relação ao meio ambiente, uma das prioridades europeias. O democrata prometeu recolocar os Estados Unidos no Acordo de Paris em seu primeiro dia de mandato, introduzir uma meta de zero emissões líquidas para os EUA até 2050 e investir US$ 2 trilhões em um pacote de estímulo climático.>
Para o ministro alemão, Heiko Maas, "ter o país com a segunda maior emissão a bordo seria muito, muito importante".>
A Europa e os EUA se envolveram em vários conflitos nos últimos anos sobre regulação e tributação das companhias de tecnologia americanas, as big techs (Facebook, Google, Amazon, Apple e Microsoft).>
Vários países ameaçam tributar operações das big techs em seus territórios, liderados pela França, e a União Europeia também tem agido para limitar o poder comercial das companhias no bloco e manter em território europeu os dados que trafegam por elas.>
Ao anunciar que levaria adiante o tributo sobre big techs, o ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, disse que uma Presidência de Biden poderia ajudar a acalmar as tensões crescentes sobre o imposto.>
Especialistas argumentam, porém, que o governo de Biden dificilmente adotará uma abordagem muito diferente em relação à defesa das companhias americanas. Trump já havia prometido retaliar a França com aumento de tarifa sobre produtos franceses como queijos, vinhos e perfumes.>
Talvez o mais profundo suspiro com a perspectiva de vitória de Biden tenha sido ouvido na Organização Mundial do Comércio (OMC), com sede em Genebra.>
A organização foi seriamente golpeada por Trump ao longo de 2020, a ponto de analistas perguntarem se ela seria capaz de sobreviver a mais quatro anos do republicano.>
Trump paralisou o principal tribunal de solução de controvérsias sobre comércio global, o Órgão de Apelação, ao bloquear a nomeação de juízes. A imobilização do pilar de julgamentos acabou afetando por tabela as negociações, já que segurança jurídica é básica para acordos comerciais.>
Há poucos dias, a gestão Trump atrapalhou a governança futura da OMC, ao vetar a candidata preferida da maioria dos 164 países membros para dirigir a organização, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala. A campanha democrata não falou sobre a disputa, mas espera-se mais boa vontade com o futuro da OMC.>
Uri Dadush e Guntram B. Wolff, analistas do centro de estudos Bruegel, argumentam que uma vitória de Biden não significa um retorno rápido às negociações comerciais abrangentes com a União Europeia, mas haverá muito mais espaço para cooperação, principalmente na reforma da OMC.>
A Alemanha também havia se tornado alvo frequente do presidente republicano, incomodado com a balança comercial muito favorável ao país europeu. Desde 2015, os EUA se tornaram o maior mercado para as exportações alemãs de bens.>
Acusando a Alemanha de protecionismo econômico, Trump ameaçava cobrar tarifa de 35% sobre carros alemães, embora grandes montadoras, como Volkswagen, Daimler ou BMW, tenham fábricas nos EUA.>
Para o coordenador de cooperação transatlântica do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, Peter Beyer, ainda que Biden mantenha exigências sobre a Europa, as perspectivas se ampliam. "Haverá comunicação melhor, respeito mútuo e intenção de cooperar", disse ele em entrevista.>
Sam Lowe, do Center for European Reform, é menos otimista. "Haverá muitos desacordos transatlânticos à frente; e a prioridade de Biden será os interesses dos EUA e de seus eleitores, não a promoção de um comércio transatlântico mais livre", escreveu.>
Os EUA são o parceiro comercial mais importante da UE: no ano passado, comprou o equivalente a 384 bilhões de euros de produtos europeus e vendeu bens equivalentes 232 bilhões de euros.>
A relação é forte também em serviços: os americanos compraram cerca de 179 bilhões de euros, e a UE, por sua vez, importou serviços dos EUA de 196 bilhões de euros em 2018.>
Trump estava em rota aberta de colisão com parceiros na Otan, aliança militar entre países europeus e norte-americanos, e chegou a ameaçar sair da organização. A iniciativa foi contida por uma votação no Senado, em dezembro de 2019, que tornou o consentimento dos senadores obrigatório para uma retirada dos EUA.>
Ainda assim, a Europa se preocupava com pressões americanas sobre a aliança. Trump, que queria maior investimento dos parceiros europeus, entrou em confronto especificamente com a Alemanha, que acusou de caloteira e gastadora, e de onde retirou 12 mil soldados.>
A vitória de Biden não muda completamente o clima de insatisfação com os gastos da aliança militar, ainda que o relatório anual da Otan, divulgado em outubro, mostre um aumento do número de aliados que contribuem com 2% do PIB, de 3, em 2014, para 10 entre os 30 membros.>
Diplomatas já propuseram uma reunião no primeiro semestre, para tentar aparar arestas com a nova gestão americana e reaproximar os EUA de seus aliados europeus.>
Países do entorno da Rússia, principalmente a Polônia e os estados bálticos, são os principais defensores de uma Otan forte, no qual o compromisso dos EUA seja garantido. Estônia, Lituânia e Letônia viam com preocupação os ataques de Trump à aliança e as relações cordiais com o presidente russo, Vladimir Putin.>
Biden se pronunciou na campanha de modo mais firme em relação à Rússia, ao menos em relação à interferência nas eleições americanas em 2016 e em ações de defesa.>
"Não entendo por que este presidente não está disposto a enfrentar Putin, que está envolvido em atividades que tentam desestabilizar toda a Otan", disse o democrata.>
Essa é uma área em que uma aproximação entre Europa e Estados Unidos já é esperada, independentemente de quem ocupar a Casa Branca. O responsável por política externa da UE, Josep Borrell, já havia concordado em se juntar a um diálogo sobre a China com o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, e a cooperação deve ser mantida sob Biden.>
Desde 2018 Trump trava uma guerra comercial contra o domínio do país asiático na tecnologia 5G, e os países devem trabalhar em padrões e regras conjuntas para reduzir a influência chinesa nessa área.>
O republicano já conseguiu tirar a Huawei de mercados europeus, o que favorece as empresas Ericsson (da Suécia) e Nokia (da Finlândia), concorrentes da chinesa pela tecnologia de comunicação móvel.>
A campanha de Biden não foi clara sobre como abordará a questão do 5G, mas ele se comprometeu a trabalhar com "outras democracias" para desenvolver regras sobre crimes cibernéticos, proteção de dados e roubo de propriedade intelectual.>
A derrota de Trump aumenta a pressão sobre o Reino Unido para chegar a um bom acordo com a União Europeia até o final deste ano. O republicano apoiava abertamente o brexit desde a campanha do referendo e prometia um ambicioso acordo comercial entre EUA e Reino Unido.>
Embaixadores britânicos afirmam acreditar que a Presidência de Biden se inclina mais para a União Europeia. Em um evento em 2018, o democrata afirmou que, "se fosse cidadão britânico, teria votado contra a saída", e a presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, a democrata Nancy Pelosi, já avisou Boris que um acordo comercial com os EUA não será aprovado se ele continuar ameaçando quebrar o acordo de retirada e o pacto sobre as fronteiras da Irlanda.>
Já na política ambiental a vitória de Biden favorece o Reino Unido, que presidirá a próxima conferência internacional sobre mudanças climáticas COP26, em 2021. O ambientalismo pode ser a ponte para estreitar o relacionamento com a Casa Branca democrata.>
"Pode-se imaginar que um desses candidatos estaria mais entusiasmado como presidente do que o outro", disse na noite de quarta (4) o secretário britânico de Transportes, Grant Shapps, respondendo a pergunta sobre trabalhos conjuntos dos dois países contra a mudança climática.>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta