Publicado em 7 de novembro de 2020 às 16:17
A derrota de Donald Trump nos EUA aumenta a sensação de isolamento do governo brasileiro nas Américas e enterra definitivamente o sonho de uma coalizão de direita no continente. >
Em dezembro de 2018, antes mesmo da posse de Jair Bolsonaro na Presidência, o futuro parecia promissor para as lideranças da direita hemisférica reunidas em Foz do Iguaçu (PR), no que foi batizado de 1ª Cúpula Conservadoras das Américas.>
Seu organizador e anfitrião era um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o que emprestava à reunião um ar de evento semioficial.>
Naquele momento, a Argentina era presidida por Mauricio Macri, enquanto o chileno Sebastián Piñera era visto como um possível modelo de líder conservador para Bolsonaro. Mais importante, obviamente, havia a força política de Trump pairando sobre a direita das Américas.>
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No mês seguinte, janeiro de 2019, o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Juan Guaidó, declarou-se chefe de Estado e pareceu por um certo momento ser uma alternativa real ao regime chavista.>
Num cenário em que controlasse Argentina, Brasil e Venezuela, a direita formaria uma espécie de cordão na América do Sul, inviabilizando a reedição da onda vermelha da primeira década deste século.>
Em novembro de 2019, a direita avançou ainda mais uma casa, com a renúncia do presidente boliviano, Evo Morales, após pressão dos militares. Um dos expoentes da esquerda sul-americana, ele foi substituído por uma direitista até então pouco conhecida e de credenciais conservadoras inegáveis, Jeanine Añez.>
Rapidamente, a nova presidente boliviana, ligada a movimentos evangélicos, e o governo Bolsonaro deram início a uma aliança com intensa afinidade ideológica.>
No último ano, no entanto, a curva política se inverteu. Bolsonaro passou por um processo crescente de isolamento no continente, que culmina agora com a derrota do maior dos aliados, Trump.>
"Bolsonaro, ao fazer torcida aberta por Trump, colocou-se numa posição de vulnerabilidade em sua política externa. [Joe] Biden já disse que não vai ter relação cordial com o Brasil se não houver reciprocidade", diz Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas.>
Essa reciprocidade, segundo ele, passaria pela substituição de duas figuras-chave da política externa brasileira: o chanceler Ernesto Araújo e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.>
Para Casarões, a política externa do governo Bolsonaro é "muita narrativa, muita espuma e pouca ação". "A estratégia agora é de tentar readequar a narrativa para fingir que o Trump não é tão importante", diz.>
Guilherme Casarões
Professor de relações internacionais da Fundação Getulio VargasNa América do Sul, o cenário para o Brasil é de poucos amigos. Em dezembro de 2019, a Argentina deu posse a um governo do campo progressista, com Alberto Fernández na Presidência e a ex-presidente Cristina Kirchner, outro símbolo da era de ouro da esquerda sul-americana, como vice.>
Na Venezuela, a força de Guaidó esvaiu-se gradualmente, após uma fracassada tentativa de derrubar Nicolás Maduro e divisões no campo oposicionista. O autoproclamado presidente não representa hoje ameaça real ao controle que o ditador tem do país. No mês passado, a Bolívia voltou para o campo da esquerda com a vitória em primeiro turno de Luis Arce, aliado de Evo, na eleição presidencial.>
Para Bolsonaro, restam agora poucos aliados naturais na vizinhança. O Chile permanece sob o comando de Piñera, mas seu conservadorismo moderado nunca combinou com a vertente exacerbada do brasileiro.>
Além disso, o plebiscito que enterrou a Constituição legada pelo ditador Augusto Pinochet sinaliza uma sociedade chilena com valores mais progressistas para o futuro próximo.>
Olhando para o sul, Bolsonaro pode estreitar a aliança com o uruguaio Luis Lacalle Pou, mas o país é muito pequeno para servir como um contraponto à esquerda argentina. E o próprio Lacalle Pou, à frente de um governo moderado, não parece muito disposto a se associar a um líder radical de direita.>
Na parte norte do continente, há afinidade com o colombiano Iván Duque, um direitista de discurso mais duro, e o equatoriano Lenín Moreno, que já foi alinhado à esquerda. No Paraguai, Marito Abdo é um aliado próximo, que deve favores a Bolsonaro quando esteve perto de perder o cargo, mas é frágil politicamente.>
Tudo somado, no entanto, é muito pouco para um governo que almejava mudar o eixo ideológico do continente há menos de dois anos.>
"O Brasil esvaziou o seu leque de possibilidades na América do Sul, o que é um problema grave", diz Casarões, citando a relação inexistente com a Argentina e as dificuldades de Guaidó na Venezuela.>
Apesar dos reveses, pouco mudará na relação entre Brasil e EUA, segundo o deputado Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PSL-SP), uma das principais vozes do bolsonarismo na área de política externa.>
"O que nós perdemos na essência? Não temos status de nação mais favorecida, acordo de livre comércio, livre entrada nos EUA. O que temos é nada. Portanto, não estamos perdendo nada", afirma ele, que é vice-presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara.>
O prejuízo, afirma o deputado federal, resume-se ao campo das expectativas. "O Brasil perdeu a esperança, a expectativa de fazer uma parceira duradoura com os EUA. Mas nós não devemos ter medo de isolamento, porque nós nunca tivemos um país que realmente nos apoiasse", diz.>
Da mesma forma, ele minimiza os problemas com a vizinhança na América do Sul. "A iniciativa tem que ser dos nossos vizinhos. Jair já disse ao que veio e quais são as suas propostas. Não temos problema de relacionamento com ninguém", afirma.>
Em outras partes do mundo, Bolsonaro também teve perdas. Já viu um governo aliado ser apeado do poder na Itália, e o mesmo ocorrerá daqui a menos de um ano em Israel, onde o premiê Binyamin Netanyahu cederá o cargo para outro líder, seguindo o acordo que formou o gabinete de coalizão.>
Restam apenas a Hungria de Viktor Orbán e a Índia de Narendra Modi como aliados ideológicos do Brasil.>
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