“Coloquei na câmera ao vivo e vi o cuidador inserindo a colher na garganta do meu pai a ponto de matá-lo.” Esse é o relato dolorido de um advogado de 51 anos, morador de Vitória, que flagrou o momento em que o pai dele, de 86 anos e com Alzheimer, era agredido pelo homem que havia sido contratado para cuidá-lo. A história não é um caso isolado: no Espírito Santo, pelo menos uma pessoa idosa é vítima de violência por dia. E os abusos acontecem, na maioria das vezes, dentro de casa.
Só em junho deste ano, mês de conscientização sobre a violência contra a pessoa idosa, foram registrados 54 casos de lesão corporal e dois de maus-tratos contra a pessoa idosa, segundo os últimos dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp). Em 2024, ao todo, foram 722 ocorrências — quase duas por dia. De acordo com especialistas, o número deve ser muito maior, já que a subnotificação desses crimes é grande, uma vez que as vítimas costumam ser coagidas dentro de suas casas.
O caso do aposentado agredido pelo cuidador, flagrado pela câmera de segurança, aconteceu , por coincidência, também em junho. O filho da vítima contou que a família contratou uma empresa especializada em cuidados. O pai dele, que além da doença neurodegenerativa tem artrose no joelho, não consegue andar e nem falar mais: para sair da cama é necessário o uso de um uma espécie de guincho, por exemplo.
No dia 7 de junho, o cuidador estava na casa, como de costume. O advogado percebeu que o pai estava com certo medo do profissional. Em determinado momento, o aposentado chegou a fazer o sinal da cruz quando viu o cuidador. A atitude chamou a atenção do filho, que começou a verificar as imagens das câmeras.
“Vi ele dando um tapa na cabeça do meu pai. Quando meu pai chamou pela minha mãe, ele o mandou calar a boca, sussurrando, mas de forma agressiva. Depois disso, eu comecei a verificar todas as câmeras da casa, do início do dia até aquele momento, e foi aí que escutei meu pai gritando um ‘ai’ alto. Nisso eu coloquei na câmera ao vivo e vi meu pai sendo alimentado”, lembrou o advogado. Para preservar a identidade da vítima, ninguém será identificado.
As imagens são fortes: elas mostram o cuidador enfiando a colher com a comida na garganta do aposentado, que tenta empurrar a mão dele e acaba levando um beliscão e tendo a mão torcida (veja acima). A situação se repete por algumas vezes. Imediatamente, o filho foi até a sala e expulsou o suspeito da casa, chamando a polícia em seguida.
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Advogado, filho de aposentado agredido por cuidador
"Corria o risco do meu pai broncoaspirar o alimento, ou mesmo uma colher inserida com tanta violência poderia matá-lo ali mesmo com uma lesão"
Depois desse episódio, a família encontrou marcas de beliscões e hematomas em partes escondidas do corpo do idoso, como as axilas e a virilha. O caso foi registrado na Delegacia Especializada de Proteção à Pessoa Idosa (DEPPI), em Vitória, e segue sob investigação. Até hoje, o advogado não consegue esquecer as cenas que viu.
“Você não espera nunca que a pessoa que está ali trabalhando para cuidar esteja agredindo o seu pai a ponto de quase matar. Eu, minha mãe, a gente está até com medo, dentro de casa a gente está com os quartos trancados, esperando justiça. A gente quer esse cara na cadeia, preso, que ele pague por tudo o que fez”, desabafou.
DENTRO DE CASA
Segundo a delegada Milena Gireli, titular da DEPPI, 80% das ocorrências envolvem familiares cometendo os abusos contra os pais, mães ou avós.
Esse número foi detalhado no artigo “Denúncias de violência ao idoso no período de 2020 a 2023 na perspectiva Bioética”, onde pesquisadoras da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) analisaram as denúncias de violência contra pessoas idosas em todo o Brasil no período de 2020 e 2023.
Conforme o levantamento, os filhos são maioria dos suspeitos em casos registrados no Brasil. Nos anos analisados, eles representaram 47,78% em 2020, 47,07% em 2021, 50,25% em 2022 e 56,29% em 2023. Em segundo lugar vem outro tipo de familiar, em terceiro o marido/esposa, em quarto um prestador de serviço, e em quinto, o cuidador.
NETO PRESO POR MATAR AVÔ
Foi o caso de Igor Cassine, 27 anos, preso por matar o avô a facadas em casa, na frente da família, em 10 de junho deste ano no interior de Irupi, na Região do Caparaó capixaba. Lauteir Cassine, de 69 anos, estava sentado na cozinha quando o neto chegou, questionando quem tinha entrado no quarto dele, e já começou com os golpes. A vítima chegou a ser socorrida, mas não resistiu.
PAI MORRE APÓS SER AGREDIDO PELO FILHO
Outro caso de repercussão no Estado ocorreu em Bela Vista, Cariacica, quando um idoso de 66 anos morreu após ser brutalmente agredido pelo próprio filho, de 45 anos, usuário de drogas. Na ocasião, em novembro de 2021, o suspeito queria pegar uma galinha da casa do pai. Com a recusa, ele passou a dar socos, chutes e pauladas na vítima.
Delegada Milena Gireli
Titular da Delegacia Especializada de Proteção à Pessoa Idosa (DEPPI)
"Para a vítima na nossa delegacia, o agressor é a pessoa que ela mais ama"
OS TIPOS DE VIOLÊNCIA
O uso de drogas é um fator que, muitas vezes, termina em violência contra a pessoa idosa. E a delegada Milena explicou que, normalmente, o abuso não começa já com a agressão física.
“No caso da pessoa idosa, antes de acontecer a violência física, já aconteceram outras violências. Ela foi ameaçada, maltratada, negligenciada, abandonada e já aconteceu o abuso financeiro. A gente tem situações de usuários de drogas e álcool que acabam usando o benefício, o dinheiro da pessoa idosa, para realmente manter o vício”, destacou a delegada.
COMO COMBATER OS ABUSOS?
Com a dificuldade da vítima em denunciar, seja por medo do agressor — que está dentro da casa dela —, por achar que vai prejudicar aquele familiar, ou por dificuldade de locomoção, é muito importante que pessoas ao redor estejam atentas e denunciem, através do 181.
Já para as vítimas da violência, segundo a delegada, elas podem pedir ajuda em qualquer lugar, não precisa ser apenas na DEPPI. “Vá onde for mais próximo, mais cômodo. Vá à delegacia distrital, ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras), ao Pronto Atendimento (PA), mas denuncie. Essa denúncia vai chegar até a Delegacia Especializada e nós vamos verificar.”
CANAL CAPIXABA DE DENÚNCIAS
Além dos canais nacionais para denúncias, como o Disque 100 e 181, há um canal capixaba, o Serviço de Atendimento Humanizado a Vítimas de Violação de Direitos Humanos (Sahuv). Ele foi criado em 2021 e tem como diferencial ir além do registro de denúncias: segundo a Secretaria de Direitos Humanos (SEDH), a proposta é atender, fazer encaminhamento às entidades e equipamentos responsáveis, acompanhando o andamento até a finalização dos casos.
A Defensoria Pública do Espírito Santo acompanha as denúncias que chegam por lá, como detalhou Rafael Vianna, do Núcleo de Direitos Humanos da instituição.
“Esse órgão se propõe não só a fazer o acionamento da rede como um todo, mas também fazer o acompanhamento. Então, de tempos em tempos, busca as informações de atualizações sobre eventuais procedimentos que outros órgãos tenham instaurado, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Delegacia de Polícia, os órgãos de assistência social. É bastante importante que a população saiba desse fluxo para que a gente possa aumentar ainda mais o número de situações que permitam a gente auxiliar a população idosa”, ressaltou o defensor público.
O Sahuv recebe a denúncia e faz a análise para verificar qual é a principal demanda. “Pode ser uma demanda de natureza material, processamento de órgão assistencial. Mas pode ser uma demanda jurídica, que envolva um crime, e aí você faz o acionamento também da Delegacia de Polícia, do Ministério Público, e a Defensoria Pública entra nesse fluxo”, detalhou Rafael Vianna.
Outra atuação da Defensoria Pública para combater a violência contra a pessoa idosa envolve o mapeamento dos conselhos municipais, para que a vítima tenha mais locais onde possa buscar ajuda.
“Infelizmente nós temos ainda alguns municípios que não têm implementados esses conselhos municipais. Isso seria importante, porque a gente daria capilaridade ao sistema. Então a pessoa que sofre a violência ou mesmo os órgãos públicos que atuam juntamente da população idosa, eles teriam ali uma referência, que seria o conselho municipal. E a partir dessa referência você conseguiria acionar todos os outros órgãos.”
Rafael Vianna
Membro do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública
"Nós do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública estamos fazendo esse levantamento; a gente vem fazendo esse diálogo com as prefeituras para conseguir fazer um mapeamento melhor e aí assim pensar uma estratégia de conseguir melhorar esse cenário"
COMO CONTACTAR O SAHUV
O Sahuv recebe as denúncias por meio de e-mail, telefone, WhatsApp e também de forma presencial, na Casa dos Direitos, localizada no Centro de Vitória, onde há um espaço exclusivo para receber as pessoas que querem realizar uma denúncia. Todas as informações são mantidas em sigilo, e há a possibilidade, em alguns casos, de inserir as vítimas em programas de proteção. Os contatos são:
- E-mail: [email protected] / [email protected] / [email protected]
- Telefone: (27) 3636-1321 e (27) 3222-4207
- WhatsApp: (27) 99297 -2776
- Atendimento presencial: Casa dos Direitos do Espírito Santo “Advogado Ewerton Montenegro Guimarães” - Rua General Osório, 83, Centro de Vitória, Edifício Portugal, 16º andar. De segunda a sexta-feira, das 8h às 17h.
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