Os portos, as cadeias logísticas e até a agricultura do Espírito Santo podem ser transformados pela próxima grande revolução tecnológica: a computação quântica. É o que acredita o físico israelense Roee Ozeri, diretor do Instituto Weizmann de Ciências, um dos centros de pesquisa mais renomados do mundo.
Em entrevista durante visita ao Brasil, Ozeri destacou que o Espírito Santo reúne condições ideais para aproveitar os avanços da tecnologia quântica, especialmente em setores como logística e agronegócio, áreas em que o Estado é referência.
Segundo Ozeri, máquinas quânticas terão a capacidade de resolver problemas complexos de logística e otimização que hoje estão além do alcance da computação tradicional. Ela firma que o computador quântico poderia, um dia, ajudar a resolver gargalos logísticos e tornar as exportações capixabas mais competitivas. Para ele, mesmo pequenas melhorias de eficiência, da ordem de 10%, já representariam impactos significativos em custos, consumo de energia e emissões de carbono.
No Instituto Weizmann, um computador quântico ainda maior está atualmente em desenvolvimento no laboratório do professor Ozeri.
“Se um computador quântico conseguir melhorar as soluções logísticas em apenas 10%, isso já teria um impacto enorme em custos e emissões”, afirma Ozeri.
Nascido em Israel, o professor obteve o bacharelado em Física pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Recebeu os títulos de mestre e doutor em Física pelo Instituto Weizmann de Ciências. Realizou seu pós-doutorado no Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST), em Boulder, Colorado (EUA), no grupo do professor David Wineland, laureado com o Prêmio Nobel de Física de 2012.
Entre seus diversos prêmios e reconhecimentos, destacam-se: o Prêmio de Pesquisa Rosa e Emilio Segre (2019), o Prêmio Morris L. Levinson em Física (2012) e a prestigiada Bolsa de Pós-Doutorado da Fundação Rothschild (2003).
Na conversa, o cientista também explicou como a tecnologia deve evoluir nos próximos anos, falou sobre os desafios de engenharia para ampliar a escala de operação e como a curiosidade e o ensino científico são fundamentais para preparar as próximas gerações para esse novo paradigma da computação. Confira abaixo a entrevista completa:
Professor, vamos falar um pouco sobre o seu trabalho no Instituto Weizmann, onde o senhor lidera um projeto de computação quântica. Em termos simples, como o computador quântico se encaixa na missão do instituto de fazer ciência para o benefício da humanidade?
Acho que se encaixa perfeitamente na missão do Instituto Weizmann. Os computadores quânticos são máquinas que poderão resolver problemas importantes para a humanidade — e que não podemos resolver de outra forma se não tivermos computadores quânticos. Eles abrangem muitas áreas: a química, o design de novos materiais e moléculas, a área de logística, de finanças — enfim, campos diversos da atividade humana. Ter um computador quântico certamente ampliaria a capacidade humana de solucionar seus problemas mais urgentes. Agora, pode-se perguntar: por que uma instituição científica se envolveria no desenvolvimento de uma máquina como essa? Existem duas razões. Primeiro, porque os computadores quânticos ainda estão na fronteira entre a ciência e a engenharia — então, construir uma máquina dessas é, por si só, um projeto científico. Segundo, porque, ao termos um computador quântico, poderemos integrá-lo à própria ciência feita no Instituto Weizmann: poderíamos estudar melhor a química, os sistemas biológicos... Enfim, seria uma ferramenta para fazermos ciência de forma ainda mais avançada.
Para o nosso público que talvez nunca tenha ouvido falar de “qubits”, que analogia o senhor usaria para explicar por que eles são muito mais poderosos do que os bits de um computador clássico?
Boa pergunta. Os qubits — ou bits quânticos — são unidades feitas a partir de sistemas físicos que obedecem às leis da física quântica. Na física quântica, ao contrário do mundo que conhecemos, os sistemas não precisam existir em apenas um estado físico de cada vez. Eles podem existir em múltiplos estados simultaneamente. Chamamos isso de princípio da superposição. Um qubit não precisa estar em “1” ou “0”; ele pode coexistir nos dois estados ao mesmo tempo. Portanto, um qubit já tem uma vantagem de dois para um em relação ao bit clássico. Dois qubits podem coexistir em quatro estados físicos diferentes — uma vantagem de quatro vezes. Agora imagine 300 qubits. Eles podem estar em 2 elevado a 300 estados físicos simultâneos — um número maior do que o total de átomos do universo. Um computador clássico jamais conseguiria percorrer tantas possibilidades, nem em 10 bilhões de anos. Um computador quântico com 300 qubits, porém, pode coexistir em todos esses estados ao mesmo tempo. E as pessoas desenvolveram técnicas engenhosas para aproveitar esse fenômeno — especialmente em problemas que exigem analisar um espaço de possibilidades exponencialmente grande.Usando a superposição, podemos encontrar soluções em tempo razoável, sem precisar testar cada opção uma por uma.
Conte um pouco sobre a conexão do Instituto Weizmann com o Brasil e a América Latina.
O Instituto Weizmann está sempre em busca de parcerias. Os desafios científicos que enfrentamos são tão grandes que não faz sentido enfrentá-los sozinhos. Precisamos de parceiros — de todos os tipos. Ficamos sempre felizes em colaborar com comunidades científicas fortes, e o Brasil tem uma comunidade científica muito sólida, assim como outros países da América do Sul. Temos, por exemplo, colaborações com a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e outras instituições. Também buscamos parcerias para que estudantes de graduação brasileiros interessados em carreiras científicas conheçam as oportunidades de fazer pós-graduação no Instituto Weizmann. E, quando encontramos ótimos alunos, oferecemos bolsas e os convidamos a estudar conosco. Além disso, há comunidades de apoiadores que se interessam em conhecer a ciência feita no Instituto e que nos ajudam com conexões e redes de apoio, permitindo que continuemos fazendo o que fazemos.
Voltando à computação quântica: como o senhor acredita que essa tecnologia vai transformar a forma como interagimos com a tecnologia daqui para frente?
A computação quântica é, antes de tudo, uma revolução no hardware de computação — ela pertence à classe dos computadores de alto desempenho (HPC). Se olharmos o impacto do HPC na nossa vida, veremos que ele tornou possível, por exemplo, treinar grandes modelos de linguagem — como o ChatGPT — e também viabilizar carros autônomos. No setor financeiro, o HPC impulsionou moedas digitais, como as criptomoedas e as moedas digitais de bancos centrais (CBDCs). A computação quântica levará o HPC a um novo patamar — e, como em revoluções anteriores, seu impacto será abrangente, afetando diversos aspectos da vida.
E quais são os principais desafios científicos e de engenharia para desenvolver essa tecnologia hoje?
Atualmente, há várias tecnologias competindo no campo da computação quântica: circuitos supercondutores, íons aprisionados (a tecnologia que eu uso), átomos neutros presos em campos de laser, qubits fotônicos, entre outros. Cada tecnologia enfrenta desafios diferentes para escalar. Mas há um desafio comum a todas: construir um computador resistente ao ruído, em que os erros não corrompam as informações quânticas. Quanto mais qubits você tem e quanto mais instruções executa, maior é o risco de ruído atrapalhar o resultado. Por isso, o caminho mais promissor não é eliminar totalmente o erro (porque isso é impossível), mas corrigir os erros conforme eles acontecem — assim como já fazemos em transmissões digitais. No passado, nas transmissões analógicas, víamos os “chuviscos” na tela da TV quando havia interferência. Hoje, na era digital, os erros ainda acontecem, mas são corrigidos automaticamente. Na computação quântica, precisaremos aplicar o mesmo princípio, por meio de protocolos de correção de erro quântico. Esse é, sem dúvida, o principal desafio técnico e de engenharia para a computação quântica em larga escala.
Em quais setores o senhor espera ver transformações mais profundas com a computação quântica? Por exemplo, na saúde ou nas finanças?
Há vários setores onde sabemos que o impacto será transformador. Um deles é a química, com o design e a fabricação de novas moléculas e materiais. Outro é a criptografia — os computadores quânticos poderão quebrar os principais códigos criptográficos usados hoje. Além disso, qualquer setor que lide com grandes volumes de dados — como finanças, indústria automotiva, aeroespacial — se beneficiará. Mas é difícil prever tudo. Se, nos anos 1950, alguém perguntasse quais indústrias seriam mais impactadas pelos computadores eletrônicos, ninguém conseguiria imaginar a internet. Portanto, o mais provável é que todas as indústrias sejam afetadas por essa nova capacidade computacional.
Professor, falando agora sobre o Espírito Santo, nossa economia é fortemente baseada em setores como siderurgia e mineração, que enfrentam desafios na criação de novos materiais e na otimização de cadeias logísticas globais. Como a computação quântica pode ajudar nesses desafios?
Embora eu não seja especialista em mineração ou cadeias de suprimento, é claro que otimizar operações é essencial em qualquer indústria. Se pensarmos em empresas como a Amazon, por exemplo, seria impossível distribuir bilhões de produtos de forma eficiente sem poder computacional avançado. O mesmo vale para a logística e para o setor de mineração: quanto mais eficiente o processamento, maior o impacto na redução de custos e energia.
Aqui no Espírito Santo, temos portos importantes e o setor de logística é muito relevante. Um computador quântico poderia, um dia, ajudar a resolver gargalos logísticos e tornar nossas exportações mais competitivas?
Com certeza. A logística é, essencialmente, um problema de movimentar coisas da forma mais eficiente possível. Existe um problema clássico chamado “problema do caixeiro-viajante” — encontrar a rota mais eficiente para visitar um conjunto de cidades. Mesmo com apenas 100 cidades, nenhum computador clássico consegue resolver esse problema de forma exata. Se um computador quântico pudesse melhorar as soluções existentes em apenas 10%, isso já teria impacto enorme em custos, consumo de energia e emissões de carbono. Portanto, em problemas logísticos de grande escala, mesmo uma pequena melhoria pode gerar um valor enorme para os usuários.
Outro setor fundamental aqui é o agronegócio, especialmente o café. Podemos imaginar um futuro em que a computação quântica ajude a desenvolver fertilizantes mais sustentáveis ou prever safras com mais precisão?
Sobre a questão dos fertilizantes é, sem dúvida, muito relevante. Hoje, alimentamos a humanidade com fertilizantes sintéticos, produzidos pelo processo Haber-Bosch, criado há mais de 100 anos. Esse processo é vital, mas está longe de ser o mais eficiente — e é um dos maiores responsáveis pelo consumo de energia e pela pegada de carbono na agricultura. O motivo pelo qual não conseguimos otimizá-lo é que nenhum computador clássico consegue calcular a rota ideal de síntese da molécula de amônia, que é um sistema quântico. Um computador quântico suficientemente grande poderá resolver isso, reduzindo custos e consumo de energia na produção de fertilizantes — e, portanto, de qualquer cultivo, inclusive o café.
Estamos falando de algo que ainda parece ficção científica. Qual seria um prazo realista? Estamos falando de 5, 10 ou 50 anos para ver esses impactos?
Os computadores quânticos já existem — e estão disponíveis na nuvem. Hoje, eles têm cerca de 100 qubits e já resolvem alguns problemas que os computadores clássicos não conseguem. Para alcançar aplicações maiores, como otimizar fertilizantes ou quebrar códigos criptográficos, precisaríamos de máquinas com cerca de 1 milhão de qubits — um aumento de 10.000 vezes. Mas isso não é impossível: a indústria da computação já fez saltos desse tamanho antes. Os desenvolvedores estimam chegar a essa escala em 7 a 8 anos. Pode levar um pouco mais ou um pouco menos, mas os próximos anos certamente serão muito interessantes.
E sobre educação: que sugestões o senhor daria para estimular o ensino de ciências?
Educar hoje é um enorme desafio. Estamos preparando crianças para viver em um mundo que ainda não existe — um mundo que mudará muito em 10, 20 ou 30 anos. Elas precisam de letramento científico para entender temas tecnológicos e ambientais e participar de forma consciente em sociedades democráticas. Para isso, devemos ensinar duas coisas: valores sólidos e a capacidade de aprender rapidamente. O melhor caminho para aprender é manter a curiosidade — fazer perguntas, desafiar conceitos, explorar. A curiosidade é o motor mais poderoso da educação científica.
O senhor gostaria de deixar uma mensagem para nossos leitores no Espírito Santo e no Brasil?
Claro! O que fazemos no Instituto Weizmann — no Brasil e em outros países — é construir pontes entre nações, pessoas e comunidades, usando o que fazemos de melhor: a ciência. A ciência é uma linguagem universal — as leis da física, da biologia e da química são as mesmas em qualquer lugar do mundo. Por isso, ela é uma ferramenta poderosa para conectar pessoas e melhorar as condições humanas. Num mundo cada vez mais polarizado e cheio de tensões, é essencial fortalecer essas pontes e conexões, para trabalharmos juntos por um futuro mais brilhante.
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