Mimoso do Sul foi devastada após a chuva registrada entre 22 e 23 de março de 2024
Mimoso do Sul foi devastada após a chuva registrada entre 22 e 23 de março de 2024. Crédito: Fernando Madeira

Mimoso do Sul foi alertada há dez anos sobre o risco de inundação

Relatório feito pelo governo do Espírito Santo entre 2013 e 2014 já apontava para áreas de perigo, caso obras de contenção não fossem realizadas no município. Três gestões passaram pela prefeitura desde então

Tempo de leitura: 7min
Vitória
Publicado em 07/05/2024 às 18h43

Em algumas horas, o município de Mimoso do Sul, no Sul do Espírito Santo, foi devastado por fortes chuvas entre a noite do dia 22 de março e a madrugada do dia 23, deixando ao menos 18 mortes. Embora a tragédia — que pegou a população de surpresa e desprevenida — tenha ocorrido da noite para o dia, o alerta de que algo dessa magnitude poderia acontecer veio bem antes. A cidade tinha sido avisada há uma década de que poderia ser vítima de inundações de grandes proporções.

A tempestade causou o transbordamento dos rios e córregos, cobrindo imóveis e chegando até o teto de prédios de dois andares. Casas, comércios e veículos foram destruídos. Entre estruturas públicas e privadas, o prejuízo ultrapassa R$ 182 milhões e, mais de um mês depois, ainda não há esclarecimento sobre quanto será necessário para reconstruir a cidade.

Foi a enchente mais letal no Espírito Santo desde as chuvas de 2013 — quando 24 pessoas morreram em diferentes cidades capixabas. Desde 2014, Mimoso do Sul já tinha sido alertada pelo governo do Estado sobre os riscos de grandes inundações e poderia ter tirado do papel medidas preventivas sugeridas no Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR), da Secretaria de Estado de Saneamento, Habitação e Desenvolvimento Urbano (Sedurb), elaborado em 2013 e 2014.

No estudo, feito após seis inundações que aconteceram entre 2005 e 2010 em Mimoso, foram apresentadas soluções cruciais para evitar enchentes nos pontos de risco identificados, além de deslizamentos de terra. Em relação às inundações, o plano apontou áreas com previsão de serem inundadas em um período de até 100 anos.

Um levantamento do Tribunal de Contas do Estado Espírito Santo (TCE-ES), solicitado pela reportagem de A Gazeta, também revela que, apesar de o plano do governo do Estado ter alertado a cidade sobre os riscos, nenhuma iniciativa preventiva foi realizada. Mimoso registrou ainda alagamentos com menor gravidade em 2019, 2021, 2022 e 2023, antes de passar pela enchente de 2024.

Entre as ações sugeridas, estavam a dragagem e a derrocagem do Rio Muqui do Sul, a dragagem e a construção de barragem no Córrego Belo Monte e as dragagens nos córregos da Serra e de Santa Marta.

Na época do PMRR, moradores de Mimoso já relatavam suas percepções de risco na cidade. Treze pessoas foram entrevistadas pela Sedurb e, dessas, dez afirmaram considerar que suas residências estavam localizadas em áreas de perigo.

“Vale ressaltar que 12 pessoas afirmaram ter lembrança de algum evento relacionado a deslizamentos ou inundações em seus bairros e, quando questionadas sobre as causas desses problemas, foram mencionadas as seguintes respostas: excesso de chuvas, falta de limpeza do rio, falta de fiscalização e obras de contenção e construções inadequadas”, diz o plano estadual.

Plano Municipal de Redução de Risco (PMRR) de Mimoso do Sul

Documento elaborado pelo governo do Estado em 2013 e 2014 listava as ações para mitigação de riscos geológicos e de inundação

Outros alertas

O TCE-ES também esclareceu que Mimoso do Sul abriu mão de levantar, com apoio do Serviço Geológico do Brasil (SGB), novas áreas com riscos de inundações, focando o pedido de estudo apenas para os locais que ofereciam perigo de deslizamentos. Diante disso, em 2020, a empresa federal encontrou 23 áreas de alto e muito alto risco para movimentação de terra, excluindo as áreas vulneráveis a enchentes da análise.

“Vale ressaltar que a Defesa Civil de Mimoso do Sul deu preferência à identificação de setores de risco a deslizamentos e queda de blocos em detrimento aos de inundação, informando que não havia setores de risco alto ou muito alto a tal processo. Sendo assim, não foram identificados, neste trabalho, locais com o risco devido a processos hidrológicos”, diz o relatório do SGB.

Setorização de áreas em alto e muito alto risco a movimentos de massa, enchentes e inundações

Relatório do Serviço Geológico do Brasil elaborado em 2020 para Mimoso do Sul

O que dizem as gestões de Mimoso?

Desde 2014, quando o Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR) foi finalizado, três prefeitos estiveram no comando da administração de Mimoso do Sul. A primeira a ter contato com as informações foi Flávia Cysne (PSB), que estava em seu segundo mandato e chefiou o Executivo até 2016.

Segundo ela, o motivo para não realizar as medidas sugeridas para a prevenção de enchentes foi a falta de recursos para essas obras, que custariam, na ocasião, R$ 24,5 milhões.

R$ 17,8 milhões

Dragagem e derrocagem Rio Muqui do Sul, dragagem do Córrego da Serra, Belo Monte e Santa Marta.

R$ 6,7 milhões

Construção de barragem no Córrego Belo Monte, a montante do bairro da Penha. Ainda neste cenário, era proposta a dragagem e derrocagem do Rio Muqui do Sul e dragagem do Córrego da Serra, Belo Monte e Santa Marta.

Apesar de a atenção ter ficado voltada para ações de prevenção a deslizamentos de terra, com obras para contenção de encostas em parceria com o governo federal, Flávia disse que também foram feitas algumas intervenções contra enchentes, como o aumento da caixa do Rio Muqui do Sul e a ampliação da ponte na Rua da Pratinha, dando maior vazão ao rio.

“[Sobre as inundações] tínhamos uma série de projetos para serem desenvolvidos. Um deles seria a represa no Córrego Belo Monte, mas não foi dado andamento por falta de dinheiro”, explica Flávia.

“A gente nunca imaginou que pudesse ter esse tipo de problema dentro da cidade mesmo. O problema foi a quantidade de água. Agora, se me perguntar o que faria para evitar que isso acontecesse, eu não sei”, diz Flávia.

Após a saída de Flávia, Ângelo Guarçoni (MBD), conhecido como Giló, foi eleito prefeito, sendo responsável pela gestão da cidade de 2017 a 2020, durante o estudo do Serviço Geológico do Brasil.

Questionado sobre a decisão de não mapear as áreas com risco de inundação em 2020 e sobre o fato de não ter tocado os projetos apontados na gestão anterior, Ângelo afirma não ter conhecimento sobre os documentos.

“Na cidade, havia uma pressão muito grande sobre o risco de deslizamento de terra, principalmente no Morro do Cristo. Isso foi resolvido. Agora, sobre projetos para sanar as inundações e sobre o relatório do Serviço Geólogico, não tenho conhecimento”.

De acordo com Ângelo, em 2020, a cidade estava com suas atenções voltadas para a pandemia de Covid-19. Por isso, mesmo que tivesse conhecimento sobre as obras para minimizar os impactos das chuvas, não teria como fazer nada naquele ano, devido à queda de arrecadação que impactou todas as cidades e os Estados brasileiros naquele período.

Além de Flávia e Giló, a reportagem de A Gazeta tentou, por diversas vezes, contato com a atual gestão da Prefeitura de Mimoso do Sul e com a Defesa Civil do município, a fim de esclarecer quais foram as obras realizadas na cidade, voltadas para diminuir os riscos de inundação.

O prefeito Peter Costa (Republicanos) não informou o que foi feito, mesmo com prorroção do prazo para responder as demandas.

Peter Costa

Prefeito de Mimoso do Sul

"São muitas perguntas que terei que estudar e pegar documentos. Peço desculpas, mas não consigo responder isso"

Quanto à Defesa Civil do município, a solicitação de entrevista e as ligações não foram atendidas.

Empurra-empurra é prejudicial, diz Tribunal de Contas

Diante do relatório estadual que apontou o risco de inundações em Mimoso e do estudo feito pelo Serviço Geológico Brasileiro, o Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE-ES) afirma que a falta de continuidade de ações para minimizar os impactos de fortes chuvas é prejudicial para a população.

“Se a primeira gestão tivesse iniciado e as demais não tivessem dado continuidade, o trabalho poderia acabar sendo perdido e aí o benefício para a população poderia também não ter sido alcançado. Acontece que nenhum dos três gestores teve a iniciativa de implementar as ações necessárias, o que é pior ainda”, diz o auditor do TCE-ES, Raffael Barboza Nunes.

Além disso, Raffael aponta a necessidade de desenvolvimento de mão de obra nas cidades, para que possam elaborar projetos voltados para diminuição de danos nas áreas urbanas.

“Se o município não consegue elaborar projetos que envolvem estudos maiores, que envolvem hidrologia e geotecnia, por exemplo, isso dificulta a captação de recursos junto ao Estado e à União. Talvez por isso Mimoso não tenha recebido verba, caso tenha solicitado”, explica o auditor.

Raffael Barboza Nunes

Auditor do Tribunal de Contas do Espírito Santo

"A gente sabe que muitos municípios têm escassez de recurso e que os gestores precisam decidir onde vão investir, como em saúde, educação e segurança pública. Mas o investimento em infraestrutura para a redução do risco de desastres se paga e é urgente para cidades como Mimoso. Antes, a cidade tinha a opção de fazer obras com custo aproximado de R$ 20 milhões e, agora, tem que lidar com danos que ultrapassam R$ 100 milhões"

O que aconteceu em Mimoso do Sul?

Imagens mostram cenário de destruição em Mimoso do Sul
Imagens mostram cenário de destruição em Mimoso do Sul. Crédito: Divulgação / Max Wender / Casa Militar ES

Entre os dias 22 e 23 de março de 2024, a Região Sul do Estado foi atingida por fortes chuvas, resultado do encontro de uma massa de ar quente com uma de ar frio, provocando tempestades que estavam previstas para o estado do Rio de Janeiro, mas que se deslocaram para o Espírito Santo.

Nos dias anteriores à chuva forte, o Estado foi acometido por uma onda de calor acima do normal, o que favoreceu a formação de nuvens.

“[...] Com a chegada dessa massa de ar de vento mais frio, a chuva se alimentou na região montanhosa do Espírito Santo e formou mais nuvens. Assim, chegamos a esse volume de chuva acima do normal”, explica Ivaniel Fôro, meteorologista do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper).

O meteorologista destaca que a característica geográfica do Estado também favorece à formação de chuvas fortes. “No Espírito Santo, temos um fator que contribui muito para esse fenômeno, que é a existência de uma região serrana muito próxima ao mar. Então, os ventos costeiros empurram a umidade do litoral contra as altas temperaturas que estão dentro do continente. Isso é combustível para a formação de nuvens de tempestade”, complementa Ivaniel.

Ele ainda acrescenta que, em pouco mais de 24 horas, a Região Sul do Espírito Santo recebeu a média de chuva que era esperada para todo o mês.

De acordo com a Lei Federal 12.608/2012, é competência dos municípios manter a população informada sobre a ocorrência de eventos extremos. No caso de Mimoso do Sul, na quarta-feira (20 de março), um alerta vermelho, que significa ‘grande perigo’, foi emitido pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), apontando para fortes chuvas em Mimoso e em outras trinta cidades capixabas. Apesar do alerta, nenhuma ação foi executada pela prefeitura, que viu a cidade ser devastada dois dias depois.

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