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Publicado em 28 de março de 2025 às 11:03
Apesar de ser ambientada na Inglaterra, a série "Adolescência", da Netflix, extrapolou fronteiras e é sucesso da plataforma em vários países, inclusive no Brasil. A distância geográfica não é um limite porque os temas abordados encontram identificação na sociedade contemporânea, que assiste — às vezes, passivamente — ao uso inadequado da internet como forma de estimular violências. E quando adolescentes estão imersos nesse universo, o resultado pode ser trágico, a exemplo do retratado nos quatro episódios do streaming. Ao trazer o debate para a realidade local, escolas do Espírito Santo mostram como encaram esses desafios. >
Redes de ensino têm ações para o enfrentamento à violência no ambiente escolar, como a de gênero, explicitada na série. A misoginia, isto é, o ódio às mulheres tem encontrado espaço na internet e essa conduta reverbera fora das redes. Assim, é preciso adotar medidas educativas capazes de prevenir esse comportamento violento. >
Andréa Guzzo Pereira, subsecretária de Estado da Educação Básica e Profissional, explica que o conceito de gênero e tudo o que está ligado à violência contra mulheres, como a misoginia, é tratado como um tema integrador da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e trabalhado de forma transversal, ou seja, deve ser discutido em todas as disciplinas. Entre outras abordagens, a proposta é promover o letramento de gênero, combater as diversas violências contra o público feminino e estabelecer a cultura de paz. >
Além do que é proposto pelo currículo, Andréa Guzzo destaca que a rede estadual desenvolve outras ações, como o "Escolas Plurais", em parceria com o Núcleo Interinstitucional de Pesquisa em Gêneros e Sexualidades (Nupeges) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). O projeto-piloto foi implementado em 2024 em 20 escolas.>
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O resultado dessa iniciativa, que envolveu a equipe pedagógica, foi a produção de um caderno metodológico com propostas de atividades para serem realizadas em sala de aula visando à prevenção da violência de gênero. Neste ano, um novo caderno será produzido, dando continuidade ao trabalho em mais unidades de ensino e ampliando a discussão em torno do tema. >
Desde 2019, a rede estadual também dispõe do Apoie, um programa com psicólogos e assistentes sociais que atuam em todas as escolas do Estado. O atendimento não é exclusivo para tratar de violência de gênero, mas o tema está em pauta. As ações promovidas pelos profissionais atendem solicitações das unidades de ensino para, por exemplo, prevenir casos de bullying e outros comportamentos agressivos. No atendimento a alunos, a equipe acolhe, identifica as demandas e faz os encaminhamentos, quando necessário, para as redes de apoio, seja de saúde, seja de assistência.>
No início, afirma Andréa Guzzo, havia uma demanda enorme, que estava represada, não tinha fluxo. Mas, atualmente, o Apoie tem tido uma relação com as escolas, principalmente, de parceria preventiva. >
Andréa Guzzo Pereira
Subsecretária de Estado da Educação Básica e ProfissionalA Secretaria de Estado da Educação (Sedu) ainda tem outra parceria com a Ufes, por meio do programa Fordan, cujo foco é a cultura no enfrentamento às violências. Trata-se de uma ação de formação voltada para educadores que, entre outras habilidades, aprendem sobre acolhimento humanizado das mulheres, encaminhamento jurídico e psicológico. O trabalho é voltado para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). >
A rede particular também tem uma preocupação em preparar sua equipe de colaboradores para identificar e prevenir situações de conflitos, como o bullying e outras práticas violentas. O presidente do Sindicato das Empresas Particulares de Ensino do Espírito Santo (Sinepe-ES), Moacir Lellis, diz que já foram promovidos três ciclos de capacitação de profissionais de escolas vinculadas à entidade desde o ano passado — o mais recente, agora em março. >
Essa iniciativa é realizada em parceria com a PM, que designa a equipe ligada à Companhia Independente de Polícia Escolar (Cipe) para a formação. "A polícia está muito bem treinada para capacitar nossos colaboradores, inclusive com atividades práticas, simulando algum problema dentro da escola", pontua. >
Para Moacir Lellis, a intenção é se antecipar a eventual conflito. "Temos que trabalhar no preventivo. A professora que está em sala de aula, se observa alguma reação diferente do aluno, do adolescente, precisa saber o que fazer.">
Embora considere importante as escolas investirem na capacitação e outras ações, o presidente do Sinepe-ES faz questão de diferenciar o papel das unidades de ensino do que é atribuição dos pais.>
Moacir Lellis
Presidente do Sinepe-ESApós assistir à série "Adolescência", a reflexão que Moacir Lellis fez e que, em sua opinião, vale para todos os cuidadores de crianças e adolescentes, se resume em três atitudes: mais diálogo familiar, conhecer os conteúdos acessados pelos pequenos e entender melhor a linguagem adotada por eles que, com a diferença geracional, muitas vezes deixa de ser compreensível. >
O diálogo entre pais e filhos é o ponto-chave, na avaliação de Stéfani Martins Pereira, vice-presidente do Conselho Regional de Psicologia (CRP). Ela diz que, quando se trata de acesso à internet, não basta só restringir, proibir. A criança e o adolescente precisam entender o porquê de determinadas medidas e, mais que isso, desenvolver o senso crítico, saber analisar, distinguir o certo do erro, o que faz bem e o que não faz. Esse aprendizado é gradativo e ocorre à medida que a família conversa, orienta sem julgamento, escutando também o que eles têm a dizer. >
Stéfani Martins aponta que, mesmo com aplicativos de controle parental, não é tarefa difícil para muitos adolescentes, nativos digitais, burlar as restrições. Assim, reforça a psicóloga, é fundamental ter uma relação familiar de muita conversa para que os filhos sintam-se à vontade para falar, demonstrar seus interesses — dentro e fora das telas — e também seus medos e preocupações. >
Ela afirma que a misoginia reproduzida na série "Adolescência" não é diferente da constatada em outros espaços. >
Stéfani Martins Pereira
Vice-presidente do CRP-ESA psicóloga ressalta ainda que, quando há diálogo em casa, eles conseguem fazer a análise do que é ruim e conversam sobre isso com os pais. >
Para ela, tanto meninos quanto meninas são vulneráveis na internet para casos de violência, como o cyberbullying, mas as garotas acabam ficando mais expostas, do mesmo modo que na vida fora das redes as mulheres são mais suscetíveis a ataques violentos, apenas por sua condição feminina. >
A doutora em Educação e psicóloga Bianca Orrico, da Safernet — organização que atua pela promoção do uso seguro e defesa dos direitos humanos na internet —, conta que, na pesquisa TIC Kids realizada no ano passado com um público de 9 a 17 anos, 29% dos 2.424 participantes no país reportaram ter se deparado com conteúdos que consideraram ofensivos, que não gostaram ou ficaram "chateados". >
"É preciso pensar a internet na perspectiva de democratização de acesso, avanço tecnológico e benefícios que oferecem, mas é importante ficar atento aos riscos e desafios que podem surgir para esses públicos (crianças e adolescentes) e um dos principais é o acesso a conteúdos inapropriados e extremistas", frisa, acrescentando que, no ambiente virtual, há, entre outras violências, casos de cyberbullying e sextorsão — ameaça de divulgar imagens íntimas para obrigar a vítima a fazer algo que não deseja. >
Bianca Orrico também destaca a importância do diálogo familiar, sobretudo após o retrocesso na moderação dos conteúdos das plataformas, como o definido pela Meta (dona do Facebook, Instragram, Threads e WhatsApp) no início do ano. >
"Sem uma moderação mais ativa, principalmente nos conteúdos que violam os direitos humanos, que estimulam a violência contra a mulher, contra a população LGBTQIAPN+, por exemplo, os pais precisam dialogar mais, procurar entender a experiência dos filhos na internet, e falar sobre respeito e empatia nas redes.">
Bianca Orrico adverte que muitos conteúdos que propagam o ódio e condutas violentas são impulsionados pelas plataformas digitais porque são extremamente lucrativos. E, quanto mais uma pessoa assiste, mais e mais vão surgindo na tela, incentivando a violência. Para piorar, a ausência de moderação, dificulta a remoção desses conteúdos. >
Por isso a importância das conversas, mas a psicóloga da Safernet orienta para que não sejam muito prescritivas e moralistas, o que poderia acabar distanciando os filhos desse bate-papo. >
Bianca Orrico
Doutora em Educação e psicóloga da SafernetA Safernet tem uma série de ações para tornar a internet um espaço mais seguro para todos. Uma das iniciativas é a disciplina "Cidadania Digital", que visa a apoiar escolas e, particularmente, os professores em sala aula para orientar alunos sobre o uso consciente do ambiente virtual. Há publicações com planos de aula que, segundo Bianca Orrico, seguem as diretrizes da BNCC.>
O curso é gratuito e, conforme afirma a psicóloga, os interessados em trabalhar esse tema terão a oportunidade de discutir violência de gênero, discurso de ódio, contra-narrativas desses discursos, entre outros pontos, com turmas do fundamental II (6º ao 9º ano) e ensino médio. >
Outra iniciativa é um serviço de orientação para casos de crimes e violações de direitos humanos na internet: o Canal de Ajuda. Quem busca o "helpline" recebe atendimento de profissionais especializados e é garantido o anonimato. Pela assistência, é possível fazer encaminhamentos, como boletim de ocorrência. >
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